Governo Lula 3: continuidade ou ruptura?
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Governo Lula 3: continuidade ou ruptura?

Uma análise da política econômica do terceiro governo Lula

David Deccache 22 nov 2024, 09:04

Foto: Lula, Alckmin e Haddad (Ricardo Stuckert/PR)

Artigo publicado originalmente na edição nº 45-46 da Revista Movimento, de janeiro de 2024.

1. Introdução

Concluído o primeiro ano do terceiro governo Lula, já é possível avançar no debate sobre a caracterização do projeto econômico em curso de forma mais rigorosa. Para tal, não basta selecionar e analisar medidas econômicas, desconsiderando a totalidade do projeto ao qual estão submetidas

Aliás, uma medida econômica analisada isoladamente, seja ela benéfica ou prejudicial à classe trabalhadora, oferece uma compreensão limitada e, não raramente, conduz a graves equívocos. Contudo, quando essas medidas são analisadas em seu conjunto, tornam-se fundamentais para a investigação da essência econômica e da direção do projeto em questão.

O rigor metodológico e o compromisso com a realidade dos fatos são fundamentais para assegurar que o debate sobre a caracterização da política econômica do governo não seja reduzido a um confronto superficial baseado em listas de medidas selecionadas. Uma análise que se concentra nesses aspectos tende a não se comprometer com a ciência e frequentemente serve apenas para reforçar posições políticas pré-estabelecidas.

Neste contexto, o presente artigo busca contribuir para o debate, oferecendo uma análise dos fundamentos estruturais nos quais as medidas econômicas propostas ou projetadas pelo governo estão submetidas.

Uma observação inicial é que alguns críticos podem argumentar que não é justo analisar o projeto de um governo apenas através da lente da política econômica, em especial a fiscal. Contudo, é crucial enfatizar que o sucesso das iniciativas econômicas, especialmente aquelas voltadas para avanços concretos para a classe trabalhadora, depende intrinsecamente da disponibilidade orçamentária da União1.

Vale ressaltar que a disponibilidade orçamentária condiciona o avanço, a obstrução ou o retrocesso de várias lutas históricas e essenciais para a classe trabalhadora, incluindo o combate ao racismo estrutural, ao machismo e à LGBTQIfobia. Por exemplo, como é possível enfrentar desafios como a crise climática, a defesa da reforma agrária e urbana, ou a reversão das privatizações quando o orçamento está limitado pelo teto de gastos?

É difícil pensar em qualquer luta da classe trabalhadora que não esteja intrinsecamente relacionada à disputa pelo orçamento público. Essa conexão é detalhadamente explorada no livro ‘Economia pós-pandemia: Desmontando os mitos da austeridade fiscal e construindo um novo paradigma econômico’, organizado por Esther Dweck, atual Ministra da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos do Brasil, Pedro Rossi e Ana Luiza Matos.

2. Medidas econômicas consolidadas

Nesta seção, vamos sintetizar os elementos centrais das principais medidas econômicas adotadas ou anunciadas pelo governo neste primeiro ano para então analisá-las de forma integrada na segunda seção. As medidas abordadas incluem: A PEC de transição; o fracassado pacote de austeridade fiscal para 2023; o Novo Arcabouço Fiscal; o estudo sobre a revogação dos atuais pisos constitucionais em saúde e educação; o aprimoramento dos mecanismos de desestatização no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI); a reforma tributária do consumo; e as metas de superávit primário para os próximos três anos. Além disso, analisaremos medidas específicas que representam concessões à classe trabalhadora, mas que não comprometem, de modo algum, o núcleo duro do projeto.

2.1 A Minuta da PEC de transição: esquecida proposta de manutenção do antigo teto de Michel e de congelamento dos pisos da saúde e educação

No dia 17 de novembro de 2022, o então vice-presidente eleito Geraldo Alckmin (PSB) apresentou ao Senado Federal a minuta da chamada PEC da Transição, elaborada pela equipe econômica do atual governo.

Um aspecto frequentemente negligenciado nas análises sobre o projeto do atual governo é que a minuta da PEC elaborada pela equipe de transição não alterava o antigo teto de gastos nem o congelamento dos pisos da saúde e da educação, o que implicava a sua manutenção. Além desse elemento estrutural, a minuta continha propostas importantes, como a exclusão do programa de transferência direta de renda (o atual Bolsa Família) dos limites impostos pelo teto de gastos. Com essa exceção, o governo teria uma margem adicional de R$ 105 bilhões para despesas, além de assegurar mais R$ 23 bilhões para investimentos públicos em 2023. Entretanto, o conjunto das demais despesas, a partir de 2024, estaria sob regime de congelamento. Guardem essa informação sobre os pisos da saúde e da educação, pois ela será relevante mais adiante.

Vigente desde 2017, a regra constitucional do (antigo) teto de gastos limitava, em termos reais, o crescimento das despesas públicas, exceto os juros da dívida pública. No entanto, durante o governo Bolsonaro, houve violações dessa regra em todos os anos, incluindo 2019 (antes da pandemia) e 2022 (ano eleitoral). Na prática, o teto de gastos revelou-se insustentável devido ao seu extremismo, situação agravada pela desmoralização causada pelo esquema corrupto do Orçamento Secreto. Era impossível retornar ao patamar orçamentário anterior à pandemia; o orçamento necessário para o funcionamento mínimo do Estado mudou de patamar. Portanto, alguma mudança na regra era inevitável e o debate se concentrou no valor que deveria ser excluído do teto de gastos.

Na época, um grupo de economistas progressistas criticou duramente os pilares anunciados pela equipe de transição. Segundo eles, as medidas eram excessivamente conservadoras diante da correlação de forças, pois retiravam apenas a política de transferência de renda dos limites orçamentários, mantendo o congelamento para todas as demais áreas, incluindo a suspensão dos pisos constitucionais para saúde e educação. Essa abordagem, argumentavam, implicaria na continuação do enfraquecimento do Estado em relação à garantia dos direitos sociais. Em um artigo publicado no jornal Estado de São Paulo, nove dias antes da divulgação da minuta oficial, o grupo defendeu que a melhor alternativa seria substituir o teto de gastos por uma nova lógica fiscal, fora do âmbito constitucional, que assegurasse os direitos sociais.

A PEC transitória irá retirar dos limites do teto de gastos despesas específicas, como o novo Bolsa Família. Portanto, uma série de outros gastos fundamentais continuarão sob forte restrição, podendo gerar uma série de insatisfações sociais já no primeiro ano do governo Lula. Uma PEC transitória implica (…) perda de uma janela de oportunidade única para a resolução estrutural do problema. 

(…)

O ideal, do ponto de vista político e econômico, é a revogação imediata da Emenda Constitucional nº 95. Na própria PEC da revogação do teto de gastos, poderia ser inserido dispositivo com a previsão de que lei complementar, a ser debatida no próximo ano, estabelecerá as novas diretrizes orçamentárias do país.

Entretanto, mesmo diante desta janela de oportunidades, o governo de transição optou por não revogar o teto de gastos em sua minuta e manteve suspensos os pisos de saúde e educação. Como veremos mais adiante, a retomada destes pisos nunca foi a intenção do governo.

Apesar das evidências, naquele momento, foi fácil para a equipe de transição defender uma proposta tão recuada argumentando que não existia uma correlação de forças no Congresso favorável a mudanças mais significativas e que os críticos eram alheios à realidade.

A alegação de falta de correlação de forças para a retomada dos pisos e a revogação do teto de gastos logo foi desmascarada. O relatório do Senador Alexandre Silveira (PSD-MG), na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), determinou um prazo para que o novo governo apresentasse uma proposta para substituir definitivamente o teto de gastos através de uma lei complementar, além de garantir os recursos necessários para 2023.

Na justificativa do relatório da CCJ, em linha com o debate internacional, havia a defesa explicita de uma abordagem keynesiana para a expansão dos gastos sociais e investimentos públicos, com citação à chamada Teoria Monetária Moderna. Tal defesa do keynesianismo no Senado Federal incomodou o mercado e, especialmente, ao Ministro Haddad.

Haddad atuou no Congresso para remover essa menção keynesiana do parecer final. Entretanto, ao que tudo indica, não conseguiu a necessária correlação de forças no Congresso para avançar o que parecia ser seu projeto essencial: a manutenção do congelamento dos pisos da saúde e educação2.

A PEC foi promulgada como Emenda Constitucional 126 e, apesar da intenção da minuta apresentada pelo governo de transição, houve dois importantes avanços: o retorno dos pisos da saúde e da educação e a oportunidade (agora perdida) de substituir a lógica do teto de gastos por outra política fiscal via projeto de lei complementar.

2.2 O desejável fracasso do plano de austeridade para 2023

Em janeiro, Haddad posicionou-se à direita do Congresso, propondo a retirada de R$ 50 bilhões já autorizados para gastos, recursos que poderiam atenuar a miséria e o sofrimento de uma população afetada por anos de austeridade. Pouco se discute quantos pratos de comida ou moradias poderiam ser providenciados com esses recursos, que, ressalto, foram autorizados pelo Congresso. As propostas de Haddad, contudo, não prosperaram devido à falta de apoio necessário para impor seu projeto. Em 2023, contrariando a promessa de déficit zero, presenciamos uma das maiores expansões fiscais da história, o oposto do que Haddad pretendia. Essa expansão permitiu avanços conjunturais em 2023, com indicadores razoáveis de desemprego e crescimento do PIB.

Entretanto, diante do fracasso do plano de austeridade para 2023, a classe dominante e seus representantes aumentaram a pressão por uma rígida e duradoura regra fiscal, uma regra que eliminasse a possibilidade dos governos, mesmo sob pressão da luta da classe trabalhadora, de alocarem o orçamento público para garantir direitos sociais

Este fato foi relatado para subsidiar as análises sérias sobre a caracterização do projeto econômico do atual governo, especialmente os questionamentos sobre as raízes da austeridade fiscal: ausência de correlação de forças

2.3 Novo Arcabouço Fiscal ou Novo Teto de Gastos?

Esta seção busca demonstrar a razão do Novo Arcabouço Fiscal (NAF) representar a subordinação das políticas econômicas a uma forma extremada de neoliberalismo.

Contrariando a alegação enganosa de que o novo teto de gastos é um instrumento de restrição fiscal que exige aumento na tributação para manter sua viabilidade, a realidade é outra: o NAF não impõe necessariamente a tributação dos mais ricos. No entanto, torna-se matematicamente insustentável sem a implementação de severos cortes de gastos, especialmente em saúde e educação, nos próximos anos3.

Isso torna relevante a hipótese de que temos um verdadeiro teatro em torno da tributação dos mais ricos conduzido por neoliberais que querem manter a esquerda distraída enquanto avançam em um projeto de destruição estrutural. Tal qual foi o teatro que simulou um enfrentamento ao Campos Neto, quando inegavelmente o Ministério da Fazenda e ele defendem exatamente o mesmo arcabouço teórico, diagnósticos e soluções para o país – as divergências situam-se apenas na calibragem de variáveis.

O cúmulo deste processo foi a simulação de que uma ideia do Temer, tentada por Paulo Guedes e aprovada em 2023 com relatório do deputado assumidamente neoliberal Pedro Paulo (PSD-RJ), foi a primeira vez que o povo venceu e conseguiu, finalmente, a taxação dos super-ricos no Brasil, quando se tratou de um grande acordo que envolveu redução bilionária no curto prazo de tributos devidos em troca de correções futuras. Esse tipo de tática desmobiliza a luta, vende para o povo e a militância uma vitória que não ocorreu. O tema foi abordado pelo economista Eduardo Moreira em detalhes.

Como ficará demonstrado, o NAF foi concebido com o propósito de desmantelar estruturalmente alguns dos mais importantes direitos sociais estabelecidos na Constituição de 1988. Como ficará evidente, esta não é uma mera hipótese em debate, mas uma conclusão embasada em cálculos matemáticos. É uma reação ideológica e política veemente contra qualquer projeto de Estado de bem-estar.

2.3.1 Contextualização

Como vimos, o governo foi obrigado pela Emenda Constitucional 126 de 2022 a enviar ao Congresso Nacional uma regra fiscal que, necessariamente, iria substituir o antigo teto de gastos. Cabe ressaltar que essa oportunidade surgiu apesar da intenção previamente expressa na minuta da PEC de transição. Portanto, a alegação de que o governo propôs a melhor regra possível, considerando a correlação de forças existente e com o objetivo de substituir o teto, é extremamente frágil e carente de fundamentação. Isso se torna ainda mais evidente ao lembrar que, meses antes, houve uma tentativa de manter o mesmo teto e a suspensão dos pisos constitucionais.

Apesar desta oportunidade, o governo optou por seguir a lógica do antigo teto de gastos. Michel Temer, arquiteto do antigo teto, elogiou o Novo Arcabouço Fiscal (NAF) em entrevista à revista Veja, descrevendo-o como uma mera antecipação da revisão prevista para 2026. Ele afirmou: ‘Tenho muito orgulho de ter inaugurado a tese do teto para os gastos públicos no país (…) a norma já previa uma revisão do teto, o que o governo resolve fazer agora, com essa adaptação

Temer está correto em sua alegação. O Novo Arcabouço Fiscal (NAF) mantém não apenas a lógica do teto de gastos, mas também a diretriz implícita de que o gasto público cresça a um ritmo inferior ao do crescimento econômico. Isso significa, efetivamente, uma redução proporcional do papel do Estado como provedor de serviços sociais e como agente de investimentos públicos em relação ao tamanho total da economia.

2.3.2 Os mecanismos da austeridade

Basicamente, o Novo Arcabouço Fiscal (NAF) trocou o teto de gastos do Temer por uma combinação de ‘três tetos’, um modelo que pode resultar em efeitos semelhantes ao antigo congelamento de gastos. Para mais detalhes, recomenda-se a leitura do artigo do professor Pedro Paulo Zahluth Bastos, intitulado ‘Quatro Tetos e um Funeral.

O primeiro dos tetos de gastos restringe o aumento dos gastos primários, que excluem o pagamento de juros, a 70% da variação da receita tributária. Contudo, os formuladores provavelmente perceberam que, em caso de reformas tributárias efetivas, poderia ocorrer uma expansão razoável dos gastos primários, pelo menos temporariamente, levando-os a ver a necessidade de estabelecer um segundo teto.

O objetivo do segundo teto é impedir que o aumento da tributação sobre os mais ricos seja “utilizado” para reduzir desigualdades sociais por meio do aumento de gastos e investimentos focados nos mais pobres. Para tal, limita o crescimento dos gastos primários à taxa de 2,5% ao ano. Por exemplo, mesmo se houvesse um aumento de 10% na receita tributária, os gastos primários só poderiam crescer 2,5%, e o restante seria contabilizado como superávit primário.

Estimativas de Tavares e Deccache (2023) apontam que, se o Novo Teto de Gastos tivesse sido aplicado retroativamente desde 2002, teria resultado, mesmo em um cenário bastante otimista, em uma redução substancial dos gastos primários do governo federal.

O total dessa redução chegaria a R$ 8,4 trilhões em valores atuais. Isso implica que, sob tais condições, hoje teríamos uma infraestrutura social significativamente mais deteriorada, além de um número bem menor de servidores públicos em áreas fundamentais, como saúde e educação. Além disso, as condições de carreira desses servidores estariam extremamente precarizadas em relação ao que observamos atualmente.

Contrariamente à crença popular, que sugere que o NAF permitiria aumentar os gastos com os mais pobres mediante a tributação dos mais ricos, o segundo teto impõe que, mesmo com uma ampla reforma tributária no Brasil, o crescimento dos gastos estaria limitado a, no máximo, 2,5% ao ano. Assim, mesmo na melhor das hipóteses, o crescimento dos gastos seria menor do que o registrado em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, que foi de 2,72%.

Gráfico 1 – Despesas primárias deflacionadas pelo IPCA

Fonte: Tesouro Nacional. Elaboração própria. Série deflacionada pelo IPCA de julho de 2023. Elaborado por Tavares e Deccache (2023).

Por fim, enfrentamos uma terceira restrição: a reintrodução das metas de resultado primário como um elemento central da austeridade. É crucial destacar que as metas de superávit primário, quando combinadas com um rígido teto de gastos, geram consequências significativamente diferentes – e notavelmente mais adversas – do que aquelas observadas durante o período em que foram uma das bases do tripé macroeconômico, implementado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em 1999.

Naquela época, em um contexto de ciclo econômico favorável, era viável realizar uma expansão substancial dos gastos sociais e dos investimentos públicos. Tal expansão, se fosse capaz de induzir o crescimento do PIB por meio do efeito multiplicador, resultaria em um aumento endógeno das receitas. Esse aumento, ao término de um ano, poderia ser suficiente para gerar um superávit primário. Portanto, mesmo que as metas de superávit primário impusessem um rigoroso constrangimento fiscal, sob determinadas condições cíclicas, elas permitiam o aumento da parcela do orçamento destinada aos mais pobres.

A antiga abordagem contrasta fortemente com o funcionamento atual das metas de superávit primário, especialmente quando combinadas com os tetos de gastos. Atualmente, a expansão dos gastos primários parte de uma taxa de crescimento bastante limitada, já estabelecida pelo Novo Teto de Gastos. Com base nessa limitação, define-se o aumento necessário nas receitas para alcançar a meta estipulada pelo governo. Dessa forma, os períodos de expansão fiscal, como os observados nos primeiros e segundos mandatos do governo Lula, tornam-se inviáveis. Sob o regime atual, não é possível atingir as metas de superávit pela via da expansão qualificada de gastos, mesmo em contextos econômicos favoráveis.

Por outro lado, em momentos de desaceleração econômica ou quando as metas de superávit estabelecidas pelo governo são excessivamente rígidas, como previsto para o período entre 2024 e 2026, a tendência é a implementação de cortes severos nos gastos públicos durante a execução orçamentária. Esse cenário pode resultar em uma dinâmica similar ao congelamento de gastos observado no governo Temer, exacerbando as desigualdades sociais.

Desta forma, as metas de superávit primário foram incorporadas como um mecanismo para endurecer as restrições colocadas pelo teto de gastos do Novo Arcabouço Fiscal, o que se aplicou exatamente ao orçamento aprovado para 2024. Nessa ocasião, o governo optou por metas extremamente rigorosas até 2026, apesar da resistência da esquerda, do relator do orçamento (representante do centrão) e de Ministros de Direita, como Simone Tebet.

Algum defensor do Novo Teto de Gastos poderia argumentar que há exceções previstas para certas despesas no regime fiscal implementado, como é o caso do Fundeb. Entretanto, neste aspecto, o governo Lula foi mais duro que o de Michel Temer e liberou menos exceções que no antigo teto de gastos. Segundo o Secretário do Tesouro, Rogério Ceron: “Tudo que está lá [exceções no novo arcabouço] já havia, com algumas diferenças”4. Ele ainda exemplificou que o governo fez questão de garantir que capitalização de grandes empresas estatais, como o BNDES, não estão entre as exceções, como ocorria no teto de Michel Temer. É austeridade generalizada. O NAF obstrui estruturalmente qualquer saída “social-desenvolvimentista”

2.4 O anúncio oficial dos estudos para a revogação dos atuais pisos da saúde e da educação visando a redução estrutural do orçamento destinado a ambas

O Novo Arcabouço Fiscal, com seu novo teto de gastos, impõe a necessidade matemática de uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que revogue os atuais pisos de gastos com saúde e educação estabelecidos na Constituição de 1988. Essa PEC teria o objetivo de criar regras que reduzam o crescimento desses gastos, aproximando-os da taxa máxima geral estabelecida pelo novo teto de gastos. Essa informação está de acordo com o site oficial da EBC5:

Segundo a equipe econômica, esses pisos criam problemas porque os gastos totais do governo estão submetidos a uma regra geral, que era o teto de gastos e será substituída pelo novo arcabouço fiscal. Dessa forma, caso os gastos com uma das duas áreas (educação e saúde) cresçam mais que a média das despesas, sobra uma fatia menor para outros tipos de gastos.

Isso acontece porque o Novo Arcabouço Fiscal (NAF) introduz um mecanismo de teto de gastos que limita o crescimento das despesas primárias a, no máximo, 70% do crescimento das receitas em relação ao ano anterior. Por outro lado, os pisos de gastos com saúde (15% da receita corrente líquida) e educação (18% das receitas de impostos), estabelecidos nos artigos 198 e 212 da Constituição Federal, são projetados para evoluir proporcionalmente à totalidade das receitas (100%). Essa diferença na forma como os gastos são calculados cria um conflito entre o NAF e os pisos constitucionais.Parte superior do formulário

Uma analogia que ilustra essa incompatibilidade compara o NAF a um caminhão viajando a 70 km/h e bloqueando uma estrada, enquanto dois carros, representando os pisos de saúde e educação, seguem atrás a uma velocidade de 100 km/h. A colisão é inevitável e, até que ocorra, outros veículos (as demais despesas) serão atropelados.

Por isso precisam reduzir o crescimento de saúde e educação previsto na Constituição para algo próximo da velocidade do teto. Portanto, o objetivo da PEC que está sendo preparada pelo governo é reduzir estruturalmente a taxa de crescimento dos gastos com saúde e educação em pelo menos 30%.

Segundo o Secretário do Tesouro, Rogério Ceron, as alterações relacionadas aos pisos da saúde e educação ocorreriam por meio de emenda constitucional e seriam discutidas ao longo de 2024, com implementação prevista para 20256. É possível que o governo esteja planejando esperar as eleições municipais deste ano passarem antes de avançar com a segunda etapa do projeto estrutural adotado relacionada aos pisos constitucionais.

Além disso, é importante destacar que o Secretário do Tesouro sinalizou a possibilidade de atrelar os novos pisos da saúde e educação ao crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) per capita, argumentando que seria uma meta mais previsível e alinhada ao novo arcabouço fiscal proposto. No entanto, estimativas realizadas por Tavares e Deccache (2023) para essa regra sugerida indicaram que o país teria uma perda acumulada de R$ 692,56 bilhões no período de 2003 a 2022, equivalente a uma perda anual de R$ 34,63 bilhões.

Essa concepção é alinhada com a minuta da PEC de transição enviada pelo governo ao Senado, que mantinha suspensos os pisos da saúde e educação até 2026. Essa coincidência não parece ser acidental, e sugere uma estratégia que visa reduzir os recursos destinados a essas áreas essenciais em relação aos padrões estabelecidos na Constituição de 1988.

2.5 Avanço e aperfeiçoamento do Programa de Parcerias de Investimentos

É interessante observar como o novo arcabouço fiscal implementado no Brasil tornou intencionalmente impossível um crescimento do PIB impulsionado por investimentos públicos e gastos sociais, algo que foi observado no segundo governo Lula. Essa mudança reflete uma ideologia de Estado mínimo quando se trata de atender às necessidades da população, mas de Estado máximo quando se trata de beneficiar o capital.

A atual estratégia de crescimento liderado pelo setor privado é a continuidade do modelo implementado durante o governo Temer. Isso envolve desestatizações apoiadas pelo governo federal, combinando crédito do BNDES, aval da União para operações de privatização e desestatização nos níveis subnacionais, além de incentivos tributários para as empresas que participam deste processo espoliativo.

É notável como o projeto de crescimento pelo endividamento das famílias, proposto pela Febraban e com destaque para o “marco das garantias”, aprovado na Câmara durante o governo Bolsonaro (e que chegou a tentar acabar com a impenhorabilidade do único imóvel de uma família), foi retomado e recebeu elogios e total atenção do Ministro Haddad. Trata-se de um pilar que envolve medidas destinadas a incentivar o crédito e, consequentemente, na ausência de estímulos ao aumento da renda, o endividamento privado das famílias. Essas políticas são consistentes com o que os neoliberais denominam de centralidade na “agenda microeconômica”.Parte superior do formulário

Por fim, alguém poderia argumentar que há contradições no interior do governo e que o Novo PAC seria uma prova da possibilidade de disputa pelos rumos da economia do governo Lula. No entanto, uma análise minimamente cuidadosa revela que se trata de uma curiosa política de aceleração do crescimento sem relevância para os investimentos públicos, o que nada tem a ver com o antigo PAC. São dois os principais motivos que levam a essa conclusão.

Segundo relatório da XP, o Novo PAC não preocupa, já que não haverá mudança estrutural por conta do que eles chamam de teto de gastos. O diagnóstico é claro: “Em resumo, o programa de investimento não altera substancialmente nosso cenário base. O PAC não aumenta o investimento público, mas reclassifica grande parte desse investimento sobre o programa”. Abaixo, os motivos que levaram a essa conclusão:

O investimento público (e, portanto, o PAC) é limitado pelo teto de gastos do novo arcabouço fiscal. De acordo com nossas estimativas, o investimento público mínimo determinado pela nova regra fiscal não será suficiente para fornecer os recursos necessários pelo PAC, já que nem todo o investimento público estará dentro do programa.

Quando o governo for obrigado a contingenciar os gastos para atingir as metas de superávit primário, o PAC será afetado. O governo estabeleceu as metas de superávit primário em 0%, 0,5% e 1% do PIB para 2024, 2025 e 2026, respectivamente, algo que tende a não ser cumprido, o que forçaria fortes contingenciamentos na parte pública do Novo PAC.

O Novo PAC, portanto, é uma narrativa criada para simular um governo repleto de contradições, que por um lado amplia investimentos no novo PAC e, de outro, aprova medidas de austeridade fiscal. Porém, a realidade dos fatos e os comunicados internos do próprio mercado financeiro apontam o oposto do que parte da esquerda alega.

2.6 Reforma Tributária do Consumo: a aprovação da PEC 45, apresentada no primeiro ano do governo Bolsonaro

A reforma tributária, apesar de alguns avanços, é a mesma apresentada no governo Bolsonaro, com a diferença que o texto aprovado é bem pior que o original de 2019, pois concede privilégios a uma série de setores econômicos que serão pagos com elevações de alíquotas na tributação do consumo da população mais pobre, mantendo fundamentos da desigualdade no tratamento tributário. É importante repetir: a versão aprovada é pior que a apresentada por Bolsonaro. Foi aprovada porque conseguiu garantir ou ampliar privilégios para os setores econômicos mais poderosos.

Claro, há melhorias na reforma tributária, como o combate à guerra fiscal, simplificação e redução na desigualdade de distribuição de receitas entre entes. No entanto, isso não pode ofuscar o fato de que foi aprovada por se tratar de uma pauta do bloco mais poderoso da burguesia nacional, liderado pelos setores industriais que obterão redução de carga tributária. Em compensação, haverá aumento para os serviços. Foi uma briga entre setores, e os vencedores foram o agronegócio, a bancada evangélica, a indústria e os bancos. Não se pode considerar uma PEC do governo Bolsonaro um elemento de justiça tributária, seria muito incoerente. No máximo, pode-se dizer que melhorou a lógica da tributação do consumo.

2.7 As metas de superávit primário como radicalização neoliberal do Novo Teto de Gastos

A meta de déficit zero proposta para 2024 é um elemento que impede, factualmente, a alegação que o Novo Teto de Gastos é melhor que o antigo teto. Isso porque ambas as taxas de crescimento real de gastos acabam se aproximando na prática por conta da combinação de um duro teto com rígidas metas de resultado primário.

Mesmo na ausência de metas de primário rígidas, o Novo Teto de Gastos é extremamente punitivo para a sociedade. Segundo Bastos, Deccache e Alves (2023), em 2024, na melhor das hipóteses, o teto de crescimento do gasto público determinado pelo RFS para 2024 – uma elevação real de 1,7%, ou 129 bilhões – mal consegue acomodar o retorno da política de valorização real do salário mínimo (interrompida em 2019) e dos pisos constitucionais da saúde e da educação que haviam sido suspensos pela Lei do Teto de Gastos (EC. 95/2016). Com isso, necessariamente, o conjunto de demais despesas do orçamento precisarão, necessariamente, decrescer, ou seja, uma situação de derretimento (pior que congelamento) para as áreas que não possuem proteção constitucional ou legal.

Entretanto, esse é o cenário otimista. A Consultoria da Câmara estima que a depender do tamanho da frustração de receitas, os cortes podem chegar a mais R$ 56 bilhões. Com isso, efetivamente, o Novo Arcabouço Fiscal combinado com as diretrizes orçamentárias da LDO aprovada, pode ser pior e mais duro que o antigo teto de gastos em seu primeiro ano de vigência no que se refere à taxa de expansão de gastos, já que não fica garantida nem o congelamento.

O Ministro Haddad alega que o suposto piso de 0,6% do arcabouço fiscal limitariam os cortes a R$ 23 bilhões. Esta tese está sendo questionada por técnicos, que alegam que para fins da execução financeira, a regra fiscal norteadora é a meta de resultado primário. Vejam, a situação que estamos: disputando se vamos cortar R$ 23 bilhões ou R$ 56 bilhões.

Fundamental é observar que a meta de déficit zero não foi uma derrota do governo no Congresso, mas o exato oposto: o relator do Orçamento, representando o Centrão, se colocou publicamente contra a meta zero, pois sabia que ela implicaria contingenciamentos que colocariam em risco a execução das emendas parlamentares. Porém, o governo venceu a primeira luta, à direita do Congresso, e conseguiu a meta zero. Como parte da reação, o centrão ampliou fortemente a impositividade do pagamento de emenda e um calendário para pagamentos (antes do período eleitoral). Com isso, os duros cortes irão se concentrar, como sempre, nos gastos sociais e investimentos públicos.

3. Fundamentos do projeto econômico

A partir de 2015, a crise estrutural do capital se manifestou de forma mais intensa no Brasil. Com salários crescendo acima da produtividade do trabalho, houve um processo de esmagamento dos lucros. A burguesia dirigente, buscando recompor suas taxas de lucro ameaçadas pelo término do ciclo econômico anterior, adotou medidas mais radicais de espoliação.

Esse período foi caracterizado pelo início de um programa de austeridade fiscal sob a liderança de Joaquim Levy, então Ministro da Fazenda. A equipe econômica defendia que os cortes rigorosos nos gastos públicos levariam à redução das taxas de juros e ao crescimento econômico no futuro. Esta estratégia estava alinhada com a tese da contração fiscal expansionista, uma abordagem teórica que já enfrentava questionamentos, inclusive no âmbito da ortodoxia econômica. A narrativa da equipe econômica atual segue uma linha semelhante.

As consequências da política de austeridade fiscal adotada no Brasil foram severas. Observou-se uma escalada significativa do desemprego, a precarização dos serviços públicos, a queda nos salários e uma desarticulação política da classe trabalhadora. Esses fatores ocorreram sem que se concretizasse a prometida estabilização fiscal. Essa conjuntura contribuiu para a criação de um cenário propício ao golpe de 2016, seguido pela implementação do teto de gastos e ataques aos direitos trabalhistas e previdenciários.

Com os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, assistimos no Brasil à entronização de uma lógica devastadora contra as conquistas sociais garantidas pela Constituição de 1988. A burguesia dirigente escolheu a via da destruição acelerada de serviços e investimentos públicos, num movimento voraz de cercamento e espoliação do patrimônio público. Este cenário abriu caminho para uma ampla privatização e mercantilização das instituições estatais, incluindo a exploração desenfreada dos recursos naturais. Destaca-se o foco nas alianças público-privadas visando tornar o que deveria ser comum mera mercadoria controlada por conglomerados financeiros. A austeridade fiscal é peça central neste processo e possui três funções:

(i) A primeira é elevar e depois manter uma alta taxa de desemprego, alterando a correlação de forças entre capital e trabalho. Com essa alteração, os trabalhadores se tornam menos resistentes às reduções salariais e às piores condições laborais, ao passo que os empresários, que só enxergam os salários como custo, consideram esse rebaixamento a solução para a retomada da lucratividade em momentos de crise. Foi exatamente o que ocorreu no Brasil a partir de 2015: elevação do desemprego, queda de salários e desorganização da classe trabalhadora frente aos retrocessos de direitos.

(ii) A segunda função da austeridade é destruir a capacidade do Estado de manter seu funcionamento básico, através da imposição de uma série de restrições orçamentárias autoimpostas, o que implica na redução da quantidade e da qualidade dos serviços públicos. Com isso, abre-se o caminho para que o setor privado possa mercantilizar e privatizar diferentes áreas antes ocupadas pelo setor público.

(iii) Por fim, a austeridade é funcional para a dinâmica de acumulação liderada pelas finanças, o motor da especificidade do neoliberalismo. Isso porque a austeridade, por um lado, amplia o desemprego e reduz salários e, por outro, destrói os serviços públicos e obriga as famílias, cada vez mais pobres, a recorrerem a um processo de endividamento crescente junto ao sistema financeiro para satisfazerem suas necessidades básicas, como saúde, educação e moradia. Neste processo, o setor financeiro se apropria de uma parcela cada vez maior da renda das famílias, ou seja, do excedente socialmente produzido pela classe trabalhadora. Eis a intersecção fundamental entre austeridade e financeirização.

3.1 Alguns elementos estruturais do projeto em andamento

O projeto das classes dominantes em curso está sintetizado no documento ‘Ponte para o Futuro’, cujo diagnóstico e soluções são ecoados pelo governo atual. Primeiro afirmam que há uma crise fiscal, depois criam uma regra que força o governo a ter severas dificuldades orçamentárias para, na sequência, afirmarem que a desestatização é a única saída.

  1. Diagnóstico da Ponte para o Futuro: a crise é fiscal

Segundo o documento, os problemas da economia brasileira originam-se de uma crise fiscal. Para seus autores, isso se deve a um Estado que gasta além de suas possibilidades e concede mais direitos do que pode sustentar. Como resultado, o mercado perde confiança, o câmbio se eleva e impulsiona a inflação, levando à necessidade de aumentar a taxa Selic. Assim, a solução proposta seria cortar gastos sociais e reduzir investimentos públicos. O documento ressalta que tal abordagem não deve ser uma política conjuntural de um governo específico, mas uma política de Estado, fundamentada em regras permanentes de arrocho fiscal.

No Brasil de hoje a crise fiscal, traduzida em déficits elevados, e a tendência do endividamento do Estado, tornou-se o mais importante obstáculo para a retomada do crescimento econômico. O desequilíbrio fiscal significa ao mesmo tempo: aumento da inflação, juros muito altos, incerteza sobre a evolução da economia, impostos elevados, pressão cambial e retração do investimento privado. (…)Tudo isto somado significa estagnação ou retração econômica. Sem um ajuste de caráter permanente que sinalize um equilíbrio duradouro das contas públicas, a economia não vai retomar seu crescimento e a crise deve se agravar ainda mais.

(…)

O Estado brasileiro vive uma severa crise fiscal, com déficits nominais de 6% do PIB em 2014 e de inéditos 9% em 2015, e uma despesa pública que cresce acima da renda nacional, resultando em uma trajetória de crescimento insustentável da dívida pública que se aproxima de 70% do PIB, e deve continuar a se elevar, a menos que reformas estruturais sejam feitas para conter o crescimento da despesa.”

Além disso, a Ponte para o Futuro reconhece que o povo irá sofrer: “Nosso desajuste fiscal chegou a um ponto crítico. Sua solução será muito dura para o conjunto da população, terá que conter medidas de emergência, mas principalmente reformas estruturais”

Trata-se do mesmo diagnóstico apresentado na justificativa do PLP do Novo Arcabouço Fiscal:

A definição de um regime fiscal sólido é medida necessária para assegurar que o endividamento da União em relação ao PIB seja estabilizado em prazo razoavelmente curto de tempo, criando as condições apropriadas para a redução dos juros. De fato, a constante presença de déficits primários entre 2014 e 2021 resultou no crescimento da Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) em proporção do Produto Interno Bruto (PIB) ao longo dos últimos anos. De acordo com o gráfico abaixo, nos últimos anos, a Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) subiu de 56,3% do PIB, em 2014, para 73%, em 2023, tendo havido um pico no auge da pandemia em 2020 de quase 87%.

(…)

Entre 1997 e 2022, o crescimento real médio da receita (período julho a junho) é de 3,92%. No mesmo período, o crescimento real médio da despesa (período janeiro a dezembro) é de 4,41%. Portanto, o limite máximo de 2,5% de crescimento real da despesa é justificável por ser inferior ao crescimento real médio verificado nos últimos 15 anos, e ser inferior ao percentual de 70% do crescimento real da receita verificado nesse mesmo período.

Percebe-se claramente que o Projeto de Lei Complementar (PLP) 93 de 2023 tem como objetivo consolidar uma significativa redução na taxa de crescimento dos gastos sociais e dos investimentos públicos. O documento menciona que, nos últimos 15 anos, os gastos primários cresceram 4,41%. Com a nova abordagem fiscal, essa taxa estará limitada, na melhor das hipóteses, a 2,5%. Entretanto, é importante destacar que será desafiador manter até mesmo um crescimento de 1,5%, dada as metas de superávit primário. Ou seja, a taxa de crescimento dos gastos, a partir de 2024, será aproximadamente um terço do que foi nos últimos anos, período que inclui os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro.

  1. Solução: austeridade fiscal, com foco no ataque aos pisos da saúde e da educação

De acordo com o Documento a Ponte Para o Futuro, o problema do Brasil é que gastamos demais com saúde e educação por conta dos pisos:

Para isso é necessário em primeiro lugar acabar com as vinculações constitucionais estabelecidas, como no caso dos gastos com saúde e com educação, em razão do receio de que o Executivo pudesse contingenciar, ou mesmo cortar esses gastos em caso de necessidade, porque no Brasil o orçamento não é impositivo e o Poder Executivo pode ou não executar a despesa orçada.

Além dos argumentos apresentados na seção anterior, que discutiram a questão dos mínimos constitucionais, é fundamental resgatar a posição oficial da equipe econômica do atual Governo. Esta foi explicitada pelo Secretário do Orçamento, que, em dezembro de 2023, afirmou que o Governo está trabalhando em novas regras para o piso de gastos em saúde e educação para 2025. A equipe econômica também repete, precisamente, os argumentos do documento ‘Ponte para o Futuro’ para justificar as reformas na previdência social e o fim da política de valorização do salário mínimo. Segundo o Secretário, em uma clara oposição a garantias constitucionais:

De forma resumida, o Orçamento tem três grandes despesas. A Previdência, que é reajustada pela regra do salário mínimo (inflação do ano anterior mais PIB de dois anos antes), saúde e educação, que têm os pisos, e o funcionalismo, que é a única de fato sob as regras de reajuste do arcabouço. Se nada for feito, não haverá espaço para aumento de salários dos servidores.

(…)

É um trabalho em diálogo com a Fazenda, estudar essa alternativa para 2025. Ter uma possibilidade de revisão desses pisos [saúde e educação] e já há alguns elementos consensuados. O problema da regra atual é que são regras pró-cíclicas, vinculada às receitas. Tecnicamente não é ideal, então tem espaço para revisão de gastos, inclusive no que tange a essas regras.

Por fim, em um evento no banco BTG, o Ministro Haddad, ao lado do economista que formulou o teto de gastos no governo Temer, o ex-secretário do Tesouro Mansueto Almeida, em uma conversa repleta de convergências, criticou o aumento dos gastos com o Bolsa-Família, Saúde e Educação. Ele inclusive citou que o forte aumento observado atualmente é ‘culpa’ do último governo, deixando claro que discorda dos aumentos dos últimos anos (após a pandemia em especial) com os gastos com o Fundeb, o piso da Enfermagem e as transferências de renda para pessoas em situação de vulnerabilidade.

Sobre o Bolsa-Família, o Ministro afirmou: “Quero lembrar a todos que o Bolsa Família é de 2004, mas consumia 0,5% do PIB. Hoje, consome 1,5% do PIB. Esse 1% a mais foi contratado nos últimos dois anos, não foi neste ano”.

O ministro também mencionou o piso nacional da enfermagem, destacando que “ele não existia e é significativo do ponto de vista orçamentário”. Por fim, afirmou que participou da criação do Fundeb, com 10% da soma dos fundos estaduais como contrapartida da União, mas que agora subiram para 23% (como se isso fosse algo negativo).

Basicamente, ele conclui que, embora o povo pobre precise disso e essas medidas sejam meritórias, elas não deveriam ser implementadas agora, pois, primeiro, é necessário ajustar as contas. Este é um argumento moderno semelhante ao ‘esperar o bolo crescer para depois dividir’, de Delfim Neto durante a ditadura.

  1. Modelo de crescimento puxado pelo setor privado e espoliação

Segundo o Ministro Fernando Haddad:

Nos últimos anos o crescimento foi movido por ganhos extraordinários do setor externo e o aumento do consumo das famílias, alimentado pelo crescimento da renda pessoal e pela expansão do crédito ao consumo. Esses motores esgotaram-se e um novo ciclo de crescimento deverá apoiar-se no investimento privado e nos ganhos de competitividade do setor externo, tanto do agronegócio, quanto do setor industrial.

O Ministro Haddad também expressou um ponto de vista similar durante uma audiência pública sobre questões fiscais na Comissão de Orçamento. Após ser questionado pela Deputada Fernanda Melchionna, que em sua exposição destacou a impossibilidade de os investimentos públicos impulsionarem o crescimento, o Ministro respondeu afirmando que é o setor privado que liderará esse processo.

  1. Mecanismos de Desestatização como motor do crescimento

Diante da limitação imposta pelo Novo Arranjo Fiscal (NAF) para a ação do Estado, o atual governo passou a focar nas parcerias público-privadas (PPPs), que avançam em quantidade e qualidade. Foram criados novos estímulos, inexistentes nas gestões Temer e Bolsonaro, para PPPs em projetos de infraestrutura, meio ambiente, pesquisa e inovação tecnológica e até mesmo em presídios, refletindo o racismo estrutural dos projetos neoliberais de forma mais explícita.

Os principais estímulos incluem: benefícios tributários para empresas participantes do processo de “privatização/desestatização” por meio de PPPs (incluindo presídios), garantia soberana do Tesouro para desestatizações realizadas em Estados e Municípios, e apoio dos bancos públicos na elaboração de editais e na captação de recursos.

Essas iniciativas estão sendo realizadas no contexto do projeto iniciado por Michel Temer com base no documento ‘Ponte para o Futuro’. Temer instituiu o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), lançado em setembro de 2016, que visava transferir para a iniciativa privada 175 ativos públicos em dez setores estratégicos, totalizando investimentos da ordem de R$ 287,5 bilhões. Havia grande foco nas PPP´s.

Incluídos nos slides do governo estão detalhes sobre as ‘melhorias’ implementadas no programa de desestatização de Temer (PPI), destacando-se os estímulos adicionais à privatização de presídios que não existiam nos governos anteriores.

4. A disputa ideológica

Quando um governo de esquerda estrutura e subordina as políticas públicas e os direitos sociais à lógica da austeridade, impondo severas restrições ao avanço do comum em prol da mercantilização acelerada dos serviços e investimentos públicos, há uma intervenção para muito além do domínio econômico. Ao contrário dos governos declaradamente inimigos da classe trabalhadora e representantes da classe dominante, a imposição de políticas econômicas neoliberais por governos progressistas tem impactos políticos e ideológicos particulares na percepção e consentimento da classe trabalhadora organizada, partidos de esquerda, sindicatos e movimentos sociais.

Trata-se da organização do consentimento e da aceitabilidade social da “austeridade” fiscal como natural e inevitável. Para tal, buscam convencer a população de que a forte restrição dos gastos e a mercantilização dos serviços e investimentos públicos são necessárias para o bem comum e o crescimento econômico a longo prazo.

O processo envolve a criação de narrativas que enfatizam a importância do “equilíbrio fiscal”, a necessidade de redução da dívida pública e a atração de investimentos privados como motores do desenvolvimento. Para tal, usualmente recorrem a teorias econômicas produzidas por economistas ligados ao campo conservador, caso da tese da contração fiscal expansionista.

Em alguns casos, a “austeridade” fiscal pode até ser apresentada como uma virtude do governo de esquerda que mostrou responsabilidade e compromisso com a “saúde” econômica do país, mesmo que isso implique piora sistemática da saúde das pessoas e do meio ambiente. Essa narrativa, ao ser efusivamente apoiada pela grande mídia, por políticos de diferentes espectros políticos e por setores econômicos poderosos, acaba por golpear a capacidade de organização e mobilização dos movimentos que buscam contestar o paradigma neoliberal.

Mesmo quando esse argumento fracassa, recorrem a afirmação que a austeridade fiscal é a única saída dada a correlação de forças no Congresso, no mercado financeiro e que eles gostariam de fazer diferente. Ou seja, o que importa é demonstrar para o povo que a austeridade é a única saída, seja por motivos econômicos ou políticos.

Portanto, a aliança de setores interessados na “austeridade” com governos de esquerda representa um desafio imenso para a construção do comum e a defesa de políticas antineoliberais. A austeridade fiscal torna-se o grande consenso, abrangendo desde a esquerda à direita, da academia à imprensa, das rodas de especialistas aos bares. É vista como um fato científico inquestionável ou o possível na política real. Essa dinâmica cria obstáculos ideológicos, fortalece os interesses econômicos contrários aos objetivos da classe trabalhadora e pode minar, estruturalmente, a capacidade de mobilização popular contra as políticas de austeridade.

É necessário um esforço extraordinário, que exige muita tática, independência, coragem e paciência para articular uma resposta crítica e a construção e permanente divulgação de alternativas que estejam alinhadas com os reais objetivos dos trabalhadores e os desafios ambientais do nosso tempo.

Por fim, lembrem que por mais desafiadora que a conjuntura seja, a persistência da luta contra a austeridade fiscal diante dos seus efeitos nefastos se erguerá, cedo ou tarde, como uma semente subversiva, minando as bases do neoliberalismo.

Notas

  1. Isso inclui o impacto das limitações fiscais e orçamentárias sobre o crédito oferecido por bancos estatais, como por exemplo capitalizações do Tesouro. ↩︎
  2. https://www.estadao.com.br/economia/referencia-a-teoria-monetaria-moderna-mmt-na-pec-da-transicao-e-detonada-pelo-mercado-e-pt-recua/ ↩︎
  3. Paradoxalmente, quanto maior a arrecadação, mais insustentável ele se torna, devido à incompatibilidade entre a taxa geral de crescimento das despesas e aquela dos pisos da saúde e educação, como demonstrado no decorrer da seção. ↩︎
  4. https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/04/19/excecoes-ao-novo-arcabouco-ja-existiam-tem-pouca-relevancia-fiscal-e-sao-meritorias-diz-secretario.ghtml ↩︎
  5. https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2023-03/governo-quer-reavaliar-pisos-para-gastos-com-saude-e-educacao ↩︎
  6. https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2023-03/governo-quer-reavaliar-pisos-para-gastos-com-saude-e-educacao ↩︎

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Pedro Micussi