Justiça de transição e o massacre em São Paulo
Sobre os reflexos da ditadura militar na violência atual das forças policiais
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Uma semana após a quebra do sigilo do inquérito da Polícia Federal, que indiciou Bolsonaro e outros 37 por tentativas de golpe de Estado, o noticiário se ocupa com os diversos casos de violência policial, envolvendo a PM do Estado de São Paulo, desde assassinatos a sangue frio, até disparos contra crianças e vítima arremessada de ponte na cidade de São Paulo.
A relação entre os casos, para muitos, é muito evidente, no entanto, é preciso que se reafirme e apresente de forma contundente que existe um fio condutor entre o período da Ditadura Militar e os acontecimentos do presente, e que envolve, entre outros elementos, a falta de justiça de transição desde o fim do período militar.
Primeiro, resgatamos as origens do termo Justiça de Transição, criado por Ruti Teitel, da New York Law School, em 1991 que, em linhas gerais, estabelece um processo de construção de uma concepção de justiça que se relaciona com períodos de transição política ao regime democrático, buscando dar respostas jurídicas para responsabilização e, portanto, superação, das violações de direitos humanos ocorridas durante regimes autoritários1.
Tem-se, na justiça de transição, espaço para que os responsáveis por crimes contra os direitos humanos, atentados aos regimes democráticos, algozes, torturadores, perseguidores políticos e suas lideranças sejam devidamente responsabilizadas, além de haver uma ação ativa do Estado em garantir a compensação às vítimas e seus familiares, bem como a existência de um esforço real para o não apagamento da história, dirimindo os espaços para revisionismos históricos e, apontando de forma pedagógica, a inadmissibilidade destes crimes.
Na Argentina, foram 1.184 pessoas foram condenadas no total por crimes durante a ditadura em 317 sentenças em toda a Argentina, e a memória desses julgamentos é constantemente recuperada, seja nos meio culturais com filmes, seja na eternização das palavras do promotor Julio César Strassera
A partir de este juicio, y de la condena que propugno, nos cabe la responsabilidad de fundar una paz basada no en el olvido, sino en la memoria, no en la violencia sino en la justicia.”, no Julgamento das Juntas Militares em 1985, realizado em um tribunal civil contra ex-militares, sendo estes, os militares responsáveis pelas Juntas da ditadura que promoveram o golpe de direta contra Isabel Peron.
Ocorre que, diferentemente do que se observou em outros países da América Latina, que foram então assolados pelos golpes da extrema direita e passaram por um processo de justiça de transição, como Argentina e Chile, ainda que com modalidades e causas distintas, o fim da Ditadura e a redemocratização do Brasil aconteceu com uma transição pactuada, sem que houvesse uma “ruptura pela raiz que tirasse os velhos atores e frações políticas da esfera do poder. Grupos participantes, protagonistas ou apoiadores da ditadura empresarial-militar do Brasil continuaram concentrando poder”2.
Assim, com uma democracia retomada com uma visão de “‘não olhar para trás’, ou melhor, de não ajustar as contas”3, é certo que o que deveria ter sido superado não foi, além de inviabilizar o processo de avanço de nossa sociedade, culminando em fenômenos como o bolsonarismo e seu golpismo intrínseco, bem como a violência do aparato repressor estatal na figura da Polícia Militar, e aqui partimos para um olhar voltado para essa instituição. Apontamos ainda do seguinte excerto:
“Nos últimos anos tem crescido a tentativa de revalidar politicamente a ditadura. Durante o Governo Bolsonaro, foram inúmeras as manifestações de oficiais do alto comando e de ministros do governo exaltando os supostos avanços que a ditadura trouxe; e o próprio Bolsonaro ficou marcado pela exaltação do Coronel Carlos Brilhante Ustra, torturador e chefe do DOI-CODI durante os piores anos da repressão no governo militar. Isto se deve, sem dúvida, à transição incompleta da ditadura para o regime democrático, que culminou na primeira eleição direta para presidente somente em 1989, e que teve como ponto determinante a promulgação da Lei da Anistia de 1979 que anistiou os militares de todos os crimes cometidos. Mas também é reflexo do atual cenário de polarização política que vivemos no Brasil e no mundo.”4
O resgate das origens da PMSP remonta um passado intrinsicamente ligado ao regime militar, podendo-se afirmar que fora criada neste período, ainda que com a existência da Força Pública, em que, para sustentação da repressão política, instaurou-se um modelo de policiamento ostensivo militarizado, com policiais altamente armados, orientados à uma repressão não só política, aprofundada após o AI-5, como também da dita criminalidade urbana, de onde inicia-se o processo de letalidade policial.
Não se pode esquecer o papel que cumpriu a PMSP junto ao DOI-CODI, cenário em que deram-se a maioria dos assassinatos e torturas dos opositores do regime militar no período à partir de 1968, locais estes em que surgiram nomes relevantes na dita “Segurança Pública” pós período de redemocratização, além de uma manutenção notável de um código de conduta legada do período militar. Foi o setor da segurança pública o que menos teve transformações em relação às instituições policiais, com novos episódios de violência e torturas em delegacias evidenciadas na década de 1990, ainda que tais condutas fossem criminalizadas com o CF de 1988, tornando-se um problema social notório.
A exemplo, seja como prática, seja do fio de continuidade do regime militar, notório é mencionar o massacre do Carandiru, que completou seus 32 anos no último outubro, ordenado pelo Secretário de Segurança Pública e ex governador, Luiz Fleury, que matou 111 presos, sem que houvesse nenhum policial vitimado.
Aqui, gostaria de novamente apontar a ausência de justiça, ou ainda da justiça de transição. Diante da barbárie televisionada, passados 30 anos, a expectativa de responsabilização dos policiais envolvidos, bem como de Fleury, restou frustrada com a anulação, em 2016 da condenação de 74 policiais pelo massacre, seguido de um indulto decretado por Bolsonaro em 2022, sem que haja data para que o Supremo Tribunal Federal julgue a constitucionalidade do indulto natalino concedido como um dos últimos atos do então derrotado presidente, de modo que a prescrição, portanto a impunidade, seja quase um fato certo.
Há de se falar também do impacto que detém a Lei de Anistia como forma de restar impunes os militares ou os próceres da ditadura, mantendo-se vivo o legado de violência e repressão relatado também por policiais militares de diversos estados.
Ora, se a impunidade é a regra, a ausência de uma modificação profunda das instituições militares, ou mesmo a ausência da desmilitarização, é a prática. É certo que, em um contexto que o secretário de segurança pública Guilherme Derrite ostenta com orgulho a expulsão da ROTA por matar demais, e em que há a miliciarização da PM promovida por Tarcísio de Freitas, além do fim o uso de câmeras corporais, a PMSP terá também como regra o aumento da violência policial.
Resultado disso é a matança indiscriminada ocorrida na Operação Verão com 56 civis mortos, e na Operação Escudo com 28 mortos em supostos confrontos policiais, ambas ocorridas na baixada santista. O aumento da letalidade policial em 78% entre janeiro e agosto deste ano, com 1,8 vítimas por dia, além das recentes notícias de disparos contra crianças, assassinato cometidos por policiais à paisana após viagem por aplicativo e furto de sabão, homem arremessado de ponte. Resultado este que é sintoma de uma política de repressão e extermínio, especialmente dos setores mais oprimidos, como a população pobre, periférica e, especialmente a negritude.
Todo esse retrospecto nos leva a uma compreensão que já não é novidade nos espaços de vanguarda, mas que exige uma defesa ainda mais acentuada e construída com as massas populares da necessidade da disputa cada vez mais contundente sobre a memória do regime militar que envolve, ainda que tardia, a responsabilização daqueles que atuaram no recrudescimento do regime e seguem hasteando bandeiras golpistas e de almejo do fechamento do regime.
No entanto, é necessário reconhecer que este passo não se dará pela via institucional de forma voluntária, como já sinalizou o governo federal e a postura de conciliação que adota Lula, especialmente, como já escrito à exaustão por nossos militantes, no cenário de que nossas esperanças não residem no judiciário, embora, por momentos importantes, como no contingenciamento das iniciativas golpistas, que tiveram seu ápice no 8 de janeiro, tenham um papel importante quase como aliados.
Isso inclui ainda o marco de não haver qualquer possibilidade de anistia para os golpistas, em especial, os patrocinadores burgueses da tentativa de golpe, os generais, e toda casta militar que se compreendem donos da República e guardiões da democracia em uma visão vertiginosa sobre a realidade, bem como Bolsonaro, servindo como exemplo de que não há mais tolerância para aspirações que atentam contra nossa classe.
Ainda é preciso avançar nas políticas de reparação e memória do golpe de 64, tal como se deu, a exemplo, com a Comissão da Verdade, encerrando de vez esse legado maldito, importante passo para alcançar tal objetivo, mas que ainda carece de resoluções e mesmo de uma postura mais ousada com aos militares.
Trata-se de uma importante disputa ideológica, que busca um início de mudança de paradigma quanto ao alcance do sentimento de impunidade dos militares, bem como quanto à disputa popular sobre o regime militar, ou ainda, que influi, inclusive, no fim do discurso do “bandido bom é bandido morto”, mas não se restringe a estas medidas.
É preciso avançar no processo de desmilitarização das Polícias, bem como a formulação de um novo plano de segurança pública, sem que se perca de vista a necessidade da constante mobilização para transformação real da nossa sociedade e o avanço para o socialismo, tampouco se esqueça da necessidade da promoção de um projeto antipunitivista que encerre de vez o encarceramento em massa da população pobre, periférica e da negritude, encomendando pelas elites.
Parte desta luta perpassa na luta intransigente contra as medidas privatistas, miliciarescas e reacionárias de Tarcísio de Freitas, luta essa que envolve não só o trato do aparato policial, com a exoneração imediata de Derrite da SSP, além troca de toda cadeia de comando da PMESP, mas também a luta contra todo desmonte e ataques que promove aos serviços públicos. A luta contra Tarcísio consiste em importante – e talvez a mais importante nacionalmente na atualidade – luta contra a ascensão e reorganização da extrema direita e o fascismo.
Finalmente, mas sem que se esgote o tema, a responsabilização da cadeia de comando, bem como de todos os policiais envolvidos nos massacres históricos e recentes consiste em exigência não só justa, mas fundamental, e parte desse processo se dará tão somente à partir de uma mobilização popular que demonstre sua força e indignação, que pressione por medidas efetivas de afastamento, prisão, exoneração destes, excluindo-se a hipótese de julgamento pelo Tribunal Militar, esse que carrega consigo grande corporativismo e ainda os lastros comportamentais e ideais do regime militar.
Quantos aos espaços legislativos, é certo que a bancada da bala segue sendo um bastião de defesa da manutenção do status quo quanto ao legado do regime militar e do funcionamento das polícias, além da indústria armamentista. Urge, portanto, uma reforma eleitoral que afete diretamente àqueles que saem de suas corporações para o caminho político e valem-se de suas patentes e estruturas militares para o alcance desses objetivos.
Claro que estes são alguns passos, uns mais avançados que outros, mas passos relevantes para o estabelecimento de uma justiça de transição que realmente contempla as necessidades (e anseios) sociais, especialmente das famílias de cada um dos vitimados pela violência militar como um todo, sem que se olvide do aspecto de classe que envolve tais violências.
Em um contexto em que lotam-se os cinemas em razão do filme Ainda Estou Aqui, baseado no drama autobiográfico escrito por Marcelo Rubens Paiva pós prisão de seu pai, Rubens Paiva, no ano em que completos 60 anos do golpe que instaurou o regime militar, o cenário de violência policial e o golpismo de Bolsonaro e sua gangue parece cair como uma luva para lembrarmos que há um legado tenebroso que precisa ser combatido, papel que a esquerda deve realizar com primor.
Notas
- GALINDO; ASSIS (2024), Os 60 anos do golpe de Estado de 1964 e a justiça de transição. ↩︎
- FONTES; COUTINHO (2024) Os 60 anos do golpe e a luta contra a extrema direita na América Latina. https://movimentorevista.com.br/2024/03/os-60-anos-do-golpe-e-a-luta-contra-a-extrema-direita-na-america-latina/ ↩︎
- Idem 2 ↩︎
- MAHIQUES; SOUZA, (2024). A esquerda precisa rememorar os 60 anos do Golpe Militar https://movimentorevista.com.br/2024/03/a-esquerda-precisa-rememorar-os-60-anos-do-golpe-militar/ ↩︎