Fundamentalismo religioso, matrizes africanas: uma visão anticapitalista
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Fundamentalismo religioso, matrizes africanas: uma visão anticapitalista

Uma reflexão sobre a resistência das comunidades de matriz africana nesse Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa

Foto: David Dias/Reprodução


A raça é a invenção que precede a noção de humanidade no curso da empreitada ocidental, o estatuto de humanidade empregado ao longo do processo civilizatório colonial europeu no mundo é fundamentado na destruição dos seres não brancos. Sigamos em frente sem recuar nenhum instante. A perspectiva agora não é mais a saída do mato a que fomos lançados para nos revelar como seres em vias de civilidade. Não assumiremos o repertório dos senhores colonizadores para sermos aceitos de forma subordinada em seus mundos; o desafio agora é cruzá-los, “imacumbá-los”, avivar o mundo com o axé (força vital) de nossas presenças.

(Pedagogia das Encruzilhadas, Luiz Rufino)

Desde o processo de colonização, acompanhamos movimentações religiosas atuando no projeto de dominação e exploração da burguesia, até os dias atuais. Se antes a igreja católica cumpria esse papel de legitimar as opressões e tentar moldar a sociedade dentro do seu conceito moral, hoje as igrejas neopentecostais cumprem com essa tarefa. Importante compreender que as igrejas, terreiros, casas de reza são espaços de sociabilidade que acolhem e organizam uma coletividade que possa ser vivenciada com suas concepções cosmológicas e filosóficas e que também se apresentam no âmbito da construção de identidade e pertencimento sendo intrínseco no dia a dia do nosso povo.

Com isso é importante o entendimento de que, quando falamos desses espaços, estamos falando de espaços responsáveis por criar e cultivar consciência, fomentar culturas e identidades. No caso das matrizes africanas, falamos de espaços também que não se materializam em apenas espaços religiosos, mas de uma forma de pensar e organizar sociedade, a diferença que esse pensar, tem muita a perspectiva anticapitalista, bem semelhante ao pensar das comunidades indígenas no Brasil, um pensar que visa a natureza enquanto o seu próprio sagrado que, ao invés de consumir até acabar, precisa se respeitar.

Os terreiros, barracões e casas de Axé são espaços das comunidades de matrizes africana de acolhimento dos excluídos e é muito comum de se observar a quantidade de LGBTs, mulheres solteiras ou divorciadas, pessoas marginalizadas, etc, que culturalmente não são aceitas em outros espaços, mas também é cada vez mais comum de ver distorções como terreiros embranquecidos e igrejas com maioria preta .

Historicamente, todos os sistemas e relações sociais tiveram uma concepção religiosa como predominante que serviu para assegurar seu projeto de poder. A colonização, para além do avanço comercial, estava atrelada na expansão da fé cristã como única religiosidade possível, se organizando a partir da violência sobre os corpos, culturas e identidades dos nossos ancestrais, gerando um epistemicídio. Se materializando na tarefa dos jesuítas de catequizar os negros e indígenas ao mesmo tempo que extiparva seus saberes ancestrais os impondo os valores cristãos.

No último período, estamos acompanhando um avanço de setores religiosos que tentam impor seus valores morais e éticos à sociedade brasileira. Esses mesmos setores tentam institucionalizar esse projeto que também é um projeto racista. Com isso, de maneira concreta, o que temos enfrentado é um fundamentalismo religioso que se aproxima a uma ideologia supremacista, que se materializa em atos de ataques racistas às identidades e à cultura preta. Que visa perpetuar a manutenção do poder do homem branco que tem como finalidade movimentar e organizar setores conservadores e retrógrados na sociedade capitalista e no Brasil.

Estas movimentações bolsonaristas/fundamentalistas expressaram e expressam de maneira contundente a estrutura racista brasileira, que marginaliza, demoniza, discrimina, agride toda e qualquer modo de ser e estar no mundo que fuja aos padrões estabelecidos por esses grupos. Impõe-se uma verdade de Mundo único e exclui aqueles que não se encaixam, respondendo a uma lógica de opressão e da classe burguesa dominante.

Sua metodologia dos tempos modernos vem sendo de expansão e consolidação de suas sedes nas periferias. Quantas escolas existem no seu bairro? Quantos postinhos de saúde? Quantos espaços de assistências do poder público? Por outro lado, quantas igrejas observamos? Uma a cada esquina.

A manutenção da lógica da estrutura racista no Brasil precisa de trabalho de base e vemos figuras que podemos compreender como “mercadores da fé” se colocando como expressão desse trabalho e que tornaram as igrejas espaços de comercialização que vendem diariamente uma salvação para as mazelas sociais nas quais os seus adeptos se encontram. É o discurso que a sociedade capitalista vende: ” se esforce e alcance”, “vença e chegue no reino de Deus”. Essas figuras também colocam no consciente dos brasileiros uma guerra cultural contra LGBTs, comunidades de matrizes africanas, mulheres, negras e negros que lutam pelos seus direitos e todo qualquer ação ou grupo que seja minimamente contraria ao seu pensamento.

Vão disputando com sua pauta moralista e de costumes dentro das igrejas, escolas, sociedade e nos parlamentos com discursos violentos, violências estas que se apresentam de maneira simbólica atacando as identidades, como por exemplo as comunidades de matrizes africanas que têm o culto aos seus ancestrais negros, sendo o afastamento dos negros dos terreiros os levando na predominância dos campos evangélicos; de maneira material, com a destruição dos terreiros, agressões aos seus adeptos etc… E mesmo com toda essas violências sistêmicas estruturais, as culturas afro-brasileiras permanecem, ainda que europeus tenham se estabelecido enquanto povo dominante e avancem nessa sociedade capitalista, as culturas afro-brasileiras permanecem, ainda que o imperialismo estadunidense liberal tente impor uma lógica de cooptação das nossas vivências e experiências, as nossas culturas afro-brasileiras permanecem. E permanecem se opondo ao projeto racista, fundamentalista, de mercantilização e exploração das nossas vidas porque sempre haverão os que se negam a aceitar a bota desse sistema, os que nadam contra a maré.

Clóvis Moura coloca que o termo de aquilombagem vem da negação ao modelo escravista. Para os tempos atuais, os quilombos e comunidades indígenas vêm também sendo evangelizadas para essa vertente conservadora. O método escravagista perpetua mentes e vulnerabiliza sujeitos os negando uma perspectiva de futuro, de um mundo melhor. Uma ilusão que auxilia o sistema capitalista neoliberal, que amansa as ideias radicais de negação a esse sistema e desvirtua a luta contra um sistema opressor.

Esse projeto racista/fundamentalista, enquanto braço armado dos donos dos meios de produção, dos donos de terras, ruralistas, militares, banqueiros, está causando revoltas em cada território brasileiro. Ainda que haja muitos ataques às comunidades indígenas e povos de matrizes africanas, estas têm cada vez mais se organizado para disputar e defender seus espaços, ritos e vidas.

Se antes as comunidades tinham como única alternativa de defesa das suas existências a institucionalidade para assegurar os seus direitos enquanto espaços religiosos, alternativa que possibilitava o diálogo em especial nos governos progressistas, esses nunca conseguiram apresentar uma solução contundente em ter um estado verdadeiramente laico e que garantisse a livre manifestação religiosa/cultural afro-brasileira.

Sendo assim, a forma mais eficiente de apresentar uma ruptura com esse projeto racista fundamentalista é a partir da organização e articulação das comunidades e povos de matrizes africanas e dos setores oprimidos. E o que vemos é uma nova geração de lideranças que pautam o antirracismo, as questões das mulheres, LGBTs e de classe nos terreiros de matrizes africanas que se colocam nessa disputa.

Organização essa que visa avançar na conscientização contra os estigmas, marginalização, estereótipos e demonizações às comunidades afrobrasileiras e aos excluídos socialmente, atuando no debate das disparidades econômicas, educacionais e sociais.

Seguimos na luta para que a Lei 10639, de educação afrobrasileira nas escolas, que em 2023 completou 20 anos de sancionada, possa ser realmente efetivada. Por isso, também é de extrema importância uma atuação institucional daqueles comprometidos para seguir como caixa de ressonância para dentro das câmaras legislativas. As comunidades e povos de matrizes africanas já se organizam de diversas formas, entendê-las e se somar a essas organizações, propor uma articulação para elas, para uma luta de contraponto a estrutura racista imposta, é o que vem se mostrando como algo mais efetivo. Mas junto com isso ainda precisamos da organização a partir dos movimentos que não se burocratizam pelas formas institucionais, que de fato sejam espaços de mudança.

Os movimentos sociais e a esquerda brasileira não têm dado a devida importância para a luta que as comunidades de matrizes africanas historicamente fazem, como sendo o principal grupo contra o fundamentalismo religioso. Com isso, o Emancipa Axé, uma ação da Rede Emancipa – um dos maiores movimentos de educação popular do país, que tem como proposta a luta revolucionária, tem se colocado para ser um espaço que aglutine o acúmulo dessa luta que as comunidades travam e se coloca para se somar no enfrentamento ao racismo em sua manifestação religiosa.

“Se você quer ultrapassar a maré para chegar em um novo lugar, é preciso ter a paciência necessária para construir o navio que lhe trará possibilidades de fazer isso.” (Ana Laura Oliveira)



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Pedro Micussi