10 anos da Primavera Feminista e o enfrentamento à extrema direita
A força do movimento feminista, mesmo quando parece adormecida, segue pulsante dez anos após a Primavera Feminista
Foto: Coletivo Juntas! em manifestação do 8 de março no Rio de Janeiro. (Reprodução)
Donald Trump foi reeleito como presidente dos Estados Unidos por muitos motivos, mas é notável que, em seu discurso, a construção de certos inimigos dialoga com grande parcela do povo dos Estados Unidos. Durante sua campanha e neste primeiro mês de sua segunda presidência, Trump reforçou essa construção em relação aos imigrantes ilegais, ao “gênero” e àqueles que defendem que o aborto seja legal. Nosso intuito neste texto é debater por que esses inimigos foram elencados, principalmente no que diz rspeito ao debate de gênero e aborto, tendo como lente a Primavera Feminista brasileira, que em 2025 completa dez anos.
É comum a todos os governos populistas a construção da unidade a partir da expulsão da alteridade. Ou seja, para que possa haver uma identificação homogeneizante – no caso de governos populistas de direita, entre classes antagônicas – é necessário construir um referencial de não-idêntico. A partir das diferenças entre quem sou e esse que é diferente de mim, posso entender quem sou. Para que a classe trabalhadora estadunidense, em toda sua diversidade, possa se identificar com um bilionário branco que promete fazer os Estados Unidos grande novamente, é necessário haver aqueles que não pertencem a essa ideia de país, como os estrangeiros. A ideia de um referencial não idêntico como inimigo acaba tendo certa adesão da população, especialmente quando há uma sensação de insatisfação ou desesperança. Isso ocorre quando governos que se elegem a partir de ideais progressistas não conseguem resolver problemas como a falta de emprego e geração de renda, levando a população a buscar soluções fáceis, mesmo que baseadas em falsas promessas. Líderes como Trump se aproveitam disso, prometendo soluções simples para problemas complexos, criando um falso senso de unidade entre os marginalizados e apresentando um inimigo comum. Deixando os imigrantes ilegais de lado por um momento, precisamos nos perguntar por que Trump escolheu o aborto, as pessoas transgênero e tudo aquilo que a extrema direita tem deniominado de “cultura woke” como esses inimigos?
Para responder essa pergunta, propomos duas respostas: 1. A crise multifatorial do capitalismo recorre ao gênero como ideologia que justifica a privatização e a manutenção do lucro da burguesia; 2. As feministas e o movimento LGBT+ foram essenciais para fazer frente ao avanço da extrema direita a nível internacional.
Em relação à primeira resposta, é importante entender que, diante da crise de 2008, as burguesias intensificaram o movimento de privatização de espaços antes estatais ou comunais como forma de manter seu lucro. Dessa forma, tivemos uma aceleração do desmonte de políticas de cuidado, que passaram a receber menor investimento em programas públicos principalmente nas áreas da saúde, educação e previdência. Consequentemente, abriu-se as portas para alternativas pagas se fortalecerem ou mesmo para que se viabilizasse a terceirização destes serviços para empresas privadas. Ao mesmo tempo, houve mais ataques às terras comunais nas quais o cuidado era socializado, como em aldeias indígenas, quilombos e certas formas de ocupação do campo. Algumas mulheres (afinal, somos as que em geral exercemos a maior parcela dos trabalhos de cuidado) puderam pagar pelos serviços, enquanto outras tiveram que enfrentar uma sobrecarga ainda maior. Como afirma Nancy Fraser (2020) “O resultado, em meio à desigualdade crescente, é uma organização dualizada da reprodução social, mercadorizada para quem pode pagar para dela usufruir, privatizada para quem não o pode”. Aqui retomamos também a questão da imigração, pois são as mulheres de países como Europa e Estados Unidos que “importam” mulheres pobres e, geralmente racializadas, de países periféricos para cumprirem esse trabalho de cuidado que não é mais público. São essas as mulheres que imigram de maneira precária e ilegal. E para que elas aceitem realizar esse trabalho de maneira privatizada dentro do lar, a ideologia de gênero (a que realmente é ideológica) é essencial. Assim, vemos políticos e grandes figuras da burguesia internacional defendendo a “energia feminina” submissa e que as mulheres devem ser “recatadas e do lar”. O que nesse momento, de maneira alguma significa que não irão trabalhar fora de casa, mas que devem fazer os dois!
E em relação à nossa segunda resposta, vimos que as mulheres não aceitaram essa ideologia e não abaixaram a cabeça para o desmonte dos espaços de cuidado. As mulheres foram às ruas contra os governos que aplicavam as medidas de austeridade que precarizariam suas condições para realizar esses trabalhos, mesmo quando esses governos se diziam de esquerda. Além disso, propuseram um programa radical antimachista e muitas vezes anticapitalista, defendendo entre outros a legalização do aborto, o combate às violências de gênero e a socialização dos espaços de cuidado. Assim, a burguesia percebeu que precisaria ser mais violenta e mais direta para impor essas medidas, o que foi essencial para o fortalecimento da extrema direita. Isso significa que a responsabilidade pelo crescimento da extrema direita é das feministas? É claro que não! A responsabilidade é daqueles que impuseram essas medidas e o que nos importa é construir correlação de forças para enfrentá-los.
Assim, é importante também refletirmos sobre o por que as pessoas se identificam com esse discurso. Nesse sentido, procuramos duas outras respostas: 1. O papel do feminismo (e dos movimentos LGBT+) neoliberal estadunidense na despolitização das lutas e 2. Pelo machismo e LGBT+fobia enraizados na classe trabalhadora global. É inegável que, enquanto uma parte do movimento feminista foi ponta de lança no enfrentamento às políticas de austeridade e à extrema direita no período aqui abordado, também houve uma disputa liberal e neoliberal do feminismo. Essas feministas foram bem representadas por Hillary Clinton e por Kamala Harris nas últimas derrotas eleitorais do Partido Democrata contra Donald Trump. Esse feminismo é problemático não apenas por não defender os interesses da classe trabalhadora, e dessa forma piorar ativamente a vida da maioria das mulheres, mas porque sinaliza que o feminismo faz parte do establishment que retira direitos e mantém os privilégios da burguesia. No entanto, também é necessário admitir que uma parte da classe trabalhadora tem vantagens relativas à manutenção das desigualdades de gênero. Relativas porque se observarmos a totalidade, todos os trabalhadores certamente ganhariam com uma sociedade mais equânime. Por exemplo, os salários das mulheres serem mais baixos do que os dos homens significa um salário familiar menor e isso prejudica eles. No entanto, isso nem sempre é evidente e homens podem se beneficiar relativamente ao manter poder sobre as mulheres, e mesmo algumas mulheres privilegiadas podem se beneficiar ao manter poder sobre outras mulheres através do machismo.
Infelizmente, grande parte da esquerda hoje tem se enquadrado na segunda resposta. Foram muitos os artigos e posts de redes sociais culpando as feministas, o movimento LGBT+ e antirracista pela eleição de Donald Trump. E se certamente devemos responsabilizar o feminismo que se alia à burguesia pela insatisfação das pessoas diante do capitalismo neoliberal, não podemos cair na ladainha de achar que uma marcha de mulheres contra as políticas de Trump seria boa para o presidente. Por isso, se faz mais urgente do que nunca resgatar a história da Primavera Feminista como um movimento de maioria social que começou a elaboração de um programa de transformação radical da sociedade e que fez frente ao avanço da extrema direita.
A Primavera Feminista teve seu ápice na luta contra Eduardo Cunha em 2015, mas é importante voltar um pouco mais no tempo se vamos falar dela. Talvez você se lembre das lutas feministas que explodiram pelo mundo a partir de 2011. As mais destacadas certamente foram as Marchas das Vadias, movimento que se iniciou no Canadá como resposta ao segurança de um campus universitário que disse que se as jovens não queriam ser estupradas, não deveriam se vestir como vadias. Essas manifestações se amplificaram por muitos países defendendo a autonomia do corpo das mulheres, a liberdade sexual e denunciando as violências que as mulheres sofrem por seu gênero. No Brasil, as Marchas das Vadias aconteceram em centenas de cidades e foram muito importantes para o reconhecimento do machismo, ainda que abrigassem dentro de si diversas contradições. Talvez menos divulgada, mas igualmente importante, foi a luta das mulheres indianas naquela época contra os estupros coletivos.
Essas lutas feministas logo se encontraram com os movimentos austeridade que pipocaram pelo mundo em resposta à crise de 2008, como as ocupações dos centros financeiros, Junho de 2013 e as ocupações das escolas. Esse encontro permitiu a politização desse feminismo, começamos a compreender como as crises econômicas colocavam as mulheres em situação de maior vulnerabilidade às violências e que para enfrentá-las seria necessário combater os governos que aplicavam as políticas de austeridade em combinação com políticas machistas. Em 2015, ocorreram dois grandes atos nacionais organizados: a primeira Marcha das Mulheres Negras – que terá uma nova edição Nacional em 2025 – e a 5a. Marcha das Margaridas.
A força dessas mobilizações, abastecida com a crescente nova onda feminista, se juntaram, como águas de rios quando se encontram, quando o então presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha propôs o PL 5069 que buscava proibir os anticoncepcionais de uso emergencial. Cunha procurou, com este movimento, agradar uma base eleitoral conservadora e angariar ainda mais apoio interno de Deputados da bancada fundamentalista. Desse modo, Cunha teria melhores condições de fazer avançar as pautas econômicas liberais bem como fortaleceria seu próprio poder diante do governo Dilma. As brasileiras tomaram as ruas de todo o país reivindicando Pílula Fica! Cunha Sai!, conseguiram frear o avanço do Projeto de Lei misógino e ajudaram a desestabilizar politicamente o deputado, que um ano depois teve seu mandato cassado por corrupção.
Os atos feministas seguiram com força no Brasil, se unindo também ao movimento latinoamericano Nem Uma A Menos, e construindo espaços de articulação internacionalista. Em 2017, Donald Trump foi eleito pela primeira vez nos Estados Unidos já apontando o movimento feminista enquanto um grande inimigo. Logo nos primeiros dias de seu mandato, dezenas de milhares de mulheres foram às ruas do país enfrentar o bilionário, afirmando a defesa de direitos trabalhistas, reprodutivos, dos imigrantes e a necessidade de políticas anti-machistas e anti-racistas. No 8 de março daquele ano os movimentos feministas convocaram a Greve Internacional de Mulheres em diversos países, com o lema “Se nossas vidas não importam, produzam sem nós”. O lema tinha como proposta central a socialização do trabalho reprodutivo diante das privatizações da saúde e da educação, além da divisão mais equânime do trabalho doméstico. No Brasil, aquele ano também foi marcado pela luta contra a Reforma da Previdência de Michel Temer, que teve o ato do Dia Internacional da Mulher como seu pontapé, seguido por uma importante greve geral. No ano seguinte, as feministas protagonizaram novamente a luta contra a extrema direita enfrentando o então candidato à presidência com o imenso Ele Não.
Naquela época, muitos do “campo progressista” já trabalhavam contra nossa mobilização, argumentando que ir às ruas com pautas feministas levaria à eleição de Bolsonaro. Nos parece que são os mesmo que hoje dizem que Trump se elegeu porque a esquerda é feminista, antirracista e anti-LGBTfóbica (gostaríamos que fosse mais). A esses perguntamos se a ausência de mobilização de massas nesse novo governo Trump prenuncia então medidas menos devastadoras para a classe trabalhadora global? Seria então negativo que as feministas tivessem mobilizado a Women’s March, como em 2017, denunciando o grotesco anúncio de que os Estados Unidos irão anexar Gaza? De nossa parte, nos parece evidente que tanto a experiência norte-americana quanto a brasileira apontam as respostas. As derrotas eleitorais da extrema direita, se não forem acompanhadas de um movimento firme de levante popular para afirmar um programa pela esquerda para os trabalhadores, fortalecem as ideias mais reacionárias, uma vez que os governos ditos progressistas tendem a seguir a cartilha do grande capital. Além disso, quando setores da burguesia decidem se aliar ao campo progressista eleitoralmente, essa é uma das razões para fazê-lo: acreditar que colocar um mediador para governar irá sanar as intenções de insurreições populares.
Quando planejaram e executaram o assassinato de nossa companheira do PSOL, Marielle Franco, seus autores não imaginavam que a resposta viria com tanta força nas ruas. No dia seguinte à sua morte, milhares de pessoas tomaram as ruas do Rio de Janeiro e de outras capitais. A ampla repercussão do caso, inclusive em nível internacional, impediu que a história fosse varrida para debaixo do tapete e que as fake news servissem como explicação definitiva para o ocorrido. No mesmo ano, o movimento “Ele Não” demonstrou, contrariando as teorias de muitos do campo progressista, que, embora o peso eleitoral de Bolsonaro fosse significativo, a capacidade de mobilização e a ocupação das ruas por aqueles dispostos a enfrentar a extrema direita eram igualmente poderosas e relevantes. Se o governo Bolsonaro foi trágico, teria sido ainda pior se ele tivesse chegado ao poder sem encontrar qualquer tipo de resistência.
A mesma lógica que combate as mobilizações populares legítimas segue sendo reproduzida até hoje, como quando movimentos sociais se levantam contra políticas antipovo, especialmente aquelas alinhadas com a agenda neoliberal do governo. São rapidamente acusados de atacar o governo Lula, o que seria inaceitável diante da ameaça do retorno do bolsonarismo ao poder. Também vimos essa mesma argumentação durante o levante popular pelo fim da escala 6×1 no ano passado. Muitos criticavam, com tom de desdém, que a mobilização poderia se tornar um novo junho de 2013 e, por isso, não merecia apoio.
No movimento feminista, essa dinâmica se repete nas tentativas de articulação de nossas pautas afirmativas, como a luta pela legalização do aborto. No entanto, a força do movimento feminista, mesmo quando parece adormecida, segue pulsante dez anos após a primavera feminista. O ano de 2024 nos mostrou isso de forma contundente. Em uma reedição do que fez Eduardo Cunha em 2015, Arthur Lira tentou aprovar o PL 1904, uma proposta que buscava retroceder no direito ao aborto legal, conquistado no país há oito décadas.
A resposta das mulheres que, há dez anos, foram parte e vivenciaram a primavera feminista foi imediata. Em 24 horas, as ruas de diversas capitais do país estavam tomadas pela fúria feminista, e, com essa força, conseguimos barrar o seguimento do projeto.
O avanço de consciência conquistado por essa geração de lutadoras feministas não retrocedeu, e a tendência é que sigamos avançando, em maior ou menor velocidade, dependendo do desenrolar da conjuntura. Nosso papel, enquanto organização feminista e anticapitalista, é ser um polo impulsionador dessas mobilizações. Atualmente, essa força se manifesta principalmente em uma capacidade defensiva e reativa do movimento contra os inúmeros ataques aos nossos direitos. Precisamos avançar para uma capacidade de mobilização também propositiva, com uma agenda que vise conquistar mais direitos. De maneira ativa, devemos estimular essa força pulsante do movimento feminista a seguir avançando em sua politização e a caminhar cada vez mais rumo à radicalidade nas ruas, como demonstrado em 2015.
Sabemos que essa não é uma tarefa fácil, especialmente diante de uma conjuntura em que a extrema direita está fortalecida no Brasil e no mundo, mobilizando-se para atacar cada vez mais nossos direitos sexuais e reprodutivos. Além da força do conservadorismo que se organiza em torno dessa pauta, temos um governo federal recuado, não apenas inoperante, mas atuando ativamente contra avanços em nossos direitos. A posição de representantes do governo Lula em uma reunião do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) no final do ano passado, quando foram unanimemente contra a aprovação de uma resolução que regulamenta o atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, demonstra que o buraco é muito mais embaixo. A prova de que esse tipo de política contribui para o fortalecimento da extrema direita, e não a radicalidade das nossas bandeiras como alegam, está no fato de que a senadora Damares Alves, ex-ministra de Bolsonaro, judicializou a resolução aprovada, valendo-se dos mesmos argumentos apresentados pelo governo federal no Conselho.
Apenas a radicalidade e a força do movimento feminista, construído nas bases com um horizonte anticapitalista e antirracista, têm a capacidade de fazer avançar a história que começamos a escrever na última década.
Referências:
FRASER, Nancy. Crise do cuidado? Sobre as contradições sociorreprodutivas do capitalismo contemporâneo. In: BHATTACHARYA, Tithi. Teoria da reprodução social: Remapear a classe, recentralizar a opressão. São Paulo: Editora Elefante, 2020.
1 Adriana Herz Domingues é mestranda em psicologia social na USP, militante do Movimento Esquerda Socialista e do Coletivo Juntas!; Carla Zanella é membra da Coordenação Nacional do Coletivo Juntas! e coordenadora da Emancipa Mulher, escola de formação feminista e antirracista; Paula Kaufmann é membra da Coordenação Nacional do Coletivo Juntas! e coordenadora do mandato da Deputada Sâmia Bomfim.