A propósito de “Trotsky não era infalível”, de Valério Arcary
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A propósito de “Trotsky não era infalível”, de Valério Arcary

Uma resposta ao texto publicado recentemente sobre as posições de Leon Trotsky

Leandro Fontes 18 mar 2025, 08:00

Foto: Leon Trotsky em Moscou. (Reprodução)

Nós não pertencemos a uma igreja que tem uma Biblia que se chama Teoria da Revolução Permanente, escrita por Trotsky em 1927, como essa Biblia escrita cem ou cento cinquenta anos após Cristo. Nós não temos, felizmente, uma Biblia. Nenhum documento definitivo, senão documentos científicos, que mudam com a realidade e com o novo estudo da realidade.

(Nahuel Moreno, 1984.)

O portal Esquerda Online, da corrente Resistência/PSOL, publicou recentemente o artigo “Trotsky não era infalível”, de Valério Arcary. Nota-se que o esforço de Valério não se baliza num mero exercício intelectual com objetivo de revelar pontos de insuficiências e equívocos em parte das formulações de um dos revolucionários mais destacados da história e que contribuiu de modo original com a teoria da revolução permanente, o movimento desigual e combinado, a teoria dos estados operários burocratizados e o programa de transição, para o arsenal político e teórico do marxismo.

De tal maneira, Valério Arcary está longe de produzir conteúdos abstratos. Trata-se, portanto, de mais um texto que corresponde a tarefa central que seu autor se coloca nessa quadra histórica da luta de classes, que é a de fazer propaganda – pelo menos em parte – de uma orientação política chamada “Frente Única” contra o neofascismo que, segundo a posição sustentada por Arcary, se estrutura numa aliança de toda esquerda (marxista e reformista) com Lula e o PT, além, consequentemente, dos partidos da centro-esquerda com histórico no movimento operário presentes na órbita do petismo como o PCdoB.

Para tanto, invariavelmente Valério recorre aos clássicos da teoria marxista para produzir uma gama de artigos e opiniões, para nada primárias, que vêm sendo vocalizadas nos meios de comunicação da esquerda, em especial os controlados por fiéis escudeiros das superestruturas do PT. Não à toa, ouso dizer que Arcary se tornou uma espécie de “teórico útil” que coloca verniz ideológico em uma ala agregada à esquerda dentro do espectro do lulismo. No entanto, essa ala não é homogênea. Pelo contrário, basta observarmos as posições nada sofisticadas dos parlamentares do próprio campo majoritário do PSOL (já que suas correntes não publicam opiniões como tal), como Boulos, Erica Hilton, Pastor Henrique Vieira, Ivan Valente e Talíria Petrone, em suas defesas canônicas do “Estado, Democrático de Direitos” e a integração acrítica “ao que é possível” no governo Lula para que este “dê certo” e, consequentemente, “não volte a extrema direita nas próximas eleições”.

Em regra, as correntes Revolução Solidária de Boulos, Primavera Socialista de Ivan Valente e Subverta de Taliria, estão à direita teoricamente dos artigos de Valério sobre a tática “Frente Única” contra o neofascismo. Porém, na prática não há diferenciação palatável nas duas elaborações que se acomodam no empirismo do campo majoritário do PSOL. De tal forma, o artigo “Trotsky não era infalível” conserva como pano de fundo um nítido objetivo de polemizar com os setores da esquerda radical que opinam que deve-se construir, sobretudo no PSOL (o segundo maior partido da esquerda brasileira), uma posição independente e anticapitalista em relação ao governo Lula, com toda unidade de ação nas ruas contra o bolsonarismo e nas pautas por melhorias na condição de vida dos trabalhadores, tendo capacidade de conectar a crítica pública dos erros e da orientação neoliberal do governo na economia com a necessidade de defender o mesmo dos ataques da extrema direita neofascista.

Para tanto, nunca é demais lembrar as linhas de Trotsky sobre a tática da “Frente Única” no Prefácio à edição polaca de 1932 do livro “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” de Lênin:

A essência da política leninista da frente única consiste em dar ao proletariado a oportunidade de atingir, trabalhando unidos, um pequeno passo prático adiante – enquanto mantém uma organização e um programa combativo e intransigente; baseando-se nesses passos práticos das massas, Lenin não se esforçou para ocultar e suavizar as contradições políticas entre o marxismo e o reformismo, mas, pelo contrário, para revelá-las, para explicá-las às massas e, então, para reforçar o setor revolucionário.

Os problemas da frente única constituem a essência dos problemas das táticas. Sabemos que a tática está subordinada à estratégia.

Nossa linha estratégica é definida pelos interesses históricos do proletariado à luz do marxismo. Não desejamos, com isso, minimizar o significado das questões táticas. Uma estratégia sem suas táticas correspondentes está condenada a permanecer uma abstração teórica sem vida. Mas não é menos desesperador transformar uma tática específica, qualquer que seja sua importância em dado momento, numa panaceia, num remédio universal, num artigo de fé. A primeira regra para a aplicação da política da frente única é a completa e irreconciliável ruptura com a conciliação sem princípios.

(TROTSKY, Prefácio à edição polonesa de “Esquerdismo, doença infantil do comunismo”, 1932).

Ou seja, a essência da tática da Frente Única descrita por Trotsky é a antítese, em forma e conteúdo, da prática e da elaboração da maioria do campo majoritário do PSOL (na qual a corrente Resistência de Valério compõe), tal como a posição de todo o petismo e do PCdoB. Por outro lado, ela se encaixa ou pelo menos se aproxima (a depender do olhar) da essência da práxis da esquerda psolista e de outras correntes de vanguarda fora do PSOL. Contudo, me parece precipitado, pelo “método da tesoura”, julgar todo artigo de Valério Arcary por esse recorte. Por isso, antes de seguir, gostaria de registrar que o texto está correto em pontuar o cuidado de fazermos “comparações com mundo de cem anos atrás. Mas o laboratório da história é único que temos disponível para estimular nossa imaginação diante de uma realidade que se transforma acelerada e perigosamente”. Ademais, localiza acertadamente o papel de Trotsky como “a principal liderança marxista que alertou de forma pioneira sobre o perigo de uma Segunda Guerra Mundial, se Hitler chegasse ao poder”.

De tal modo, não foi por obra do acaso que Trotsky teve todo o mérito de prognosticar o risco iminente do nazi-fascismo no período sombrio em que estava sendo perseguido diretamente por Stálin, o soberano chefe da burocracia da URSS e da III Internacional (IC), que chegou a assinar um pacto de “não-agressão” com Hitler em 1939 sob o argumento de que era preciso “ganhar tempo” repartindo militarmente a Polônia. É nessa situação concreta, de ascensão do nazi-fascismo, de crise de perspectiva da social-democracia reformista e de degeneração dos partidos comunistas oficiais sob a direção de Stalin, que Trotsky irá defender a tática da “Frente Única” nos anos 1930 conforme sintetizou na passagem que socializo abaixo:

Nos seus minutos de lucidez, os chefes da social-democracia alemã devem perguntar a si mesmos: ‘Por força de que milagre, depois de tudo o que fez, nosso partido ainda arrasta milhões de trabalhadores atrás de si?’ De grande importância, sem dúvida, é o conservadorismo interior de toda organização de massas. Várias gerações do proletariado passaram pela social-democracia como por uma escola política: isto criou uma grande tradição. Entretanto, a causa principal da resistência vital do reformismo não está aí. Apesar de todos os crimes da social-democracia, não é fácil para os operários deixar definitivamente esse partido: eles precisam poder substituí-lo por outro. Entretanto, há nove anos que o Partido Comunista alemão, na pessoa de seus chefes, emprega energicamente todas as suas forças para repelir as massas ou ao menos para impedi-las de reunir-se em torno do Partido Comunista.

A política de capitulação de Stalin-Brandler em 1923; o ziguezague ultraesquerdista de Maslov-Ruth-Fischer-Thälmann em 1924-1925; a bajulação oportunista diante da social-democracia em 1928; a aventura do ‘terceiro período’ de 1928-1930; a teoria e a prática do ‘social-fascismo’ e da ‘libertação nacional’ de 1930-1932 – eis os fatores da operação.

(TROTSKY. Alemanha: O único caminho, 1932)

O parágrafo acima, sobre a crise aguda na Alemanha da época, demonstra que Trotsky estava elaborando num terreno árido e no quente dos acontecimentos, sofrendo a pressão de poder ser assassinado a qualquer momento e com uma organização internacional ainda frágil e incipiente. Por isso, me parece que Valério, utilizando o “método da tesoura”, forçou um pouco a mão ao colocar o exemplo de Perry Anderson sobre as oscilações de opinião de Trotsky sobre a Segunda Guerra Mundial. De minha parte, estou convencido que o fundamental nesse tema são os escritos de Trotsky que elaboraram uma política para derrotar o fascismo e o fato dele não ter vacilado na defesa da União Soviética enquanto o Estado operário esteve sob ataque das tropas de Hitler. De tal forma, para além desse registro, vale citar a última obra de Trotsky, “Em defesa do marxismo” (1939/1940), de polêmica com o SWP norte-americano que girou para uma posição de que a URSS havia perdido seu caráter de Estado operário e, portanto, não tinha que ser defendida pelas organizações do proletariado diante de uma agressão nazista.

Todavia, voltando ao texto de Arcary, está claro para qualquer marxista sóbrio que Trotsky não foi um tipo de “Jesus de Nazaré” (“o messias enviado por Marx”) para conduzir os revolucionários ao triunfo final da sociedade comunista. Quer dizer, Trotsky cometeu erros que ele próprio corrigiu em vida e outros que não foram corrigidos. De tal forma, creio que a “Crítica às teses da revolução permanente de Trotsky”, feitas por Nahuel Moreno são pertinentes e úteis para localizarmos que, embora Leon Trotsky tenha acertado no essencial, a rigor, a totalidade de suas teses e formulações não se comprovaram infalíveis perante a história.

Resumindo, confirmou-se plenamente a teoria da revolução permanente de Trotsky em seus aspectos essenciais: como revolução mundial, e em que se o processo revolucionário se detém, retrocede e triunfa a contrarrevolução. Mas há que lhe fazer correções importantes com respeito ao sujeito, aos dois sujeitos: o político e o social. Esse é o ponto fraco da teoria anterior. Que correções? Temos que dizer que setores de classe média ou a classe média em seu conjunto como sujeito social, e partidos da pequeno-burguesa, da classe média, como sujeito político, obrigados pelas circunstâncias são capazes de fazer revoluções democráticas anticapitalistas, isto é derrubar Somoza, Chiang Kai-shek. E é o povo em geral, sem que o proletariado apareça como hegemônico. Ou o proletariado pode ter uma influência muito grande, mas que seja um partido pequeno-burguês quem o dirija. Dão-se todo tipo de combinações. E estas revoluções democráticas, com estes partidos e este apoio pequeno-burguês, podem transformar-se em socialistas, isto é terminar expropiando a burguesia. Essa modificação deve ser feita [assinalando] que responde a uma lei fundamental do desenvolvimento desigual e combinado: que não toda tarefa de uma classe a cumpre essa classe, que pode ser cumprida por outras classes. Não porque a tarefa seja operária deve ser cumprida por essa classe.

(MORENO, Nahuel. Escuela de Quadros, 1984)

No entanto, é preciso registrar que Trotsky errou buscando acertar, sem abandonar princípios do marxismo, da experiência histórica do bolchevismo e estratégia da construção de um partido mundial da revolução.

Portanto, concluo essas linhas trazendo uma lição de Trotsky que não foi abordada no texto de Valério Arcary. Nas elaborações de 1930-1933, Trotsky denunciou abertamente a social-democracia (de maior influência no seio da classe trabalhadora) como responsável pela ascensão do nazismo na Alemanha. Paralelamente, polemizou duramente com a direção do Partido Comunista oficial (sendo fração deste na condição de Oposição de Esquerda), que jogou água no moinho do nazismo negando a tática da Frente Única com o Partido Social Democrata Alemão (SPD). Mas, Trotsky não se resumiu ao falar dos outros. Pelo contrário, sua bússola sempre teve lugar no papel histórico de sua fração.

As lições dos acontecimentos são mais fortes do que a burocracia stalinista. E queremos ser os intérpretes dessas lições perante as massas comunistas. Reside aí o nosso papel histórico como fração. Não exigimos, como Seydewitz & Cia, que o proletariado revolucionário creia em nosso juramento. Reservamo-nos um papel mais modesto: oferecemos à vanguarda comunista o nosso auxílio na preparação da linha correta. Para esse trabalho, organizamos e educamos quadros próprios. Não se pode saltar esse estágio preparatório. Cada nova etapa da luta impelirá os elementos mais refletidos e críticos do proletariado para o nosso lado.

(TROTSKY. Alemanha: O único caminho, 1932).

Isto é, Trotsky se debruçou, no calor de um período histórico defensivo, não só na defesa da tática da Frente Única operária ou de esquerda, como já foi falado e comparado aqui. Mas, igualmente pautou a necessidade da construção da Oposição de Esquerda (depois IV Internacional) como fração marxista revolucionária (bolchevista-leninista) intervindo no processo real da luta de classes, com independência para acumular forças numa política de longo alcance, na perspectiva de construir uma alternativa capaz de disputar a influência da classe trabalhadora com as velhas direções reformistas e traidoras. Nesse ponto, o conteúdo do artigo “Trotsky não era infalível” de Valério Arcary é tão ineficaz como obtuso.

Referências

TROTSKY, Leon. O Perigo Fascista Paira Sobre a Alemanha (1930)

TROTSKY, Leon. O que é o fascismo? (1931)

TROTSKY, Leon. Alemanha: O único caminho (1932)

TROTSKY, Leon. Prefácio à edição polonesa de “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” (1932)

TROTSKY, Leon. Em defesa do marxismo (1942)

MORENO, Nahuel. Escuela de Quadros (Critica a las tesis de la revolucion permanente de Trotsky) (1984)


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