Genocídio negro: o STF agirá?
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Genocídio negro: o STF agirá?

“Aboliremos a escravidão, desde que…”, diziam os oligarcas no Império. A mesma lenga-lenga cerca agora a ADPF-635, que interromperá, se aprovada, as operações policiais mortíferas nas favelas e periferias. O Supremo se atreverá a acolhê-la?

Luiz Eduardo Soares 25 mar 2025, 08:00

Foto: Manifestação contra a violência policial no Rio de Janeiro. (OP/Reprodução)

Via Outras Palavras

Nesse domingo, 23 de março, na Folha de SP e no Globo, ótimo artigo de Elio Gaspari compara as resistências ao projeto de lei do governo federal que busca tornar menos injusto o Imposto de Renda às evasivas dos anti-abolicionistas, no século XIX, que se diziam de acordo com o fim da escravidão, “desde que”… Havia sempre um “desde que”, exigindo reparações aos proprietários penalizados com a perda de seus ganhos e alertando para riscos de desorganização da economia, instabilidade jurídica e desordem pública. Enquanto lia o catálogo da infâmia escravagista, pensava na população vulnerabilizada do Rio de Janeiro e nos inumeráveis “desde que” ainda em voga, mobilizados diariamente por políticos e policiais para postergar mudanças urgentes na segurança pública. Contra a ADPF 635, que o STF se prepara para votar, evocam o “desde que” sem pruridos, sacrificando a razão, as evidências e qualquer veleidade de honestidade intelectual.

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (da Constituição) é um clamor dirigido por várias entidades da sociedade civil à mais alta Corte para que imponha limite às práticas inconstitucionais e irresponsáveis das polícias fluminenses, em suas incursões em favelas e bairros populares. O que se pede é respeito à Constituição e ao bom senso. Nada mais. Não se quer imobilizar as polícias, mas que suas ações sejam pautadas pelos preceitos fundamentais, consagrados na Carta constitucional. Parece absurdo ter de cobrar respeito à legalidade. Mais absurdo ainda é hostilizar esta solicitação, definindo-a como defesa da criminalidade.

O pressuposto silenciado nós o conhecemos, e eu o ouvi enunciado sem pudor ao longo das décadas de convivência com as corporações policiais fluminenses: “Essa Constituição é incompatível com segurança pública”. O discurso prossegue com a interrogação provocativa: “Querem segurança? Então, nos deixem trabalhar”. Trabalho, nesse caso, significa agir com liberdade, sob o radar de qualquer fiscalização, à margem de controles, atualizando uma autonomia absolutamente ilegal. Como seria possível aceitar que, no Estado democrático de Direito, a delegação do uso da força fosse concedida a agentes cujo mandato não seja rigorosamente delimitado, regulado e supervisionado. Como se poderia aceitar que a tal delegação sensível, de imensa importância, não corresponda elevado grau de responsabilidade, envolvendo toda a cadeia de comando, do operador institucional na ponta à autoridade política superior?

Nas polícias do Rio, normalizou-se a aplicação de uma categoria que é quase confissão de culpa, uma espécie de ato falho das culturas corporativas: “operacional”. Os policiais são separados (e hierarquizados) em dois grupos: os “operacionais” e os outros. A princípio, todo policial deveria ser operacional. Mas aqui o significado não é exatamente e apenas ser capaz de cumprir missões práticas. A categoria traz consigo implicações semânticas menos abrangentes. Operacionais são aqueles dispostos a empregar a liberdade na escala da autonomia, para além da legítima e necessária discricionaridade, legalmente circunscrita. Eram elogiados, premiados e ascendiam na carreira os bravos operacionais, de que tantas vezes as instituições se orgulharam, para depois, retrospectivamente, envergonhar-se. Mas nessa história não houve aprendizado, correção de rota e amadurecimento. Até hoje se afirma que não se pode abrir mão dos “operacionais”, nem da autonomia inconstitucional das operações que eles conduzem. A convicção é a mesma: “Com essa constituição, não se pode ter segurança pública”.

A conversa privada nas delegacias e nos batalhões saiu do armário. O que se dizia à boca pequena, declara-se, agora, alto e bom som: “Com a ADPF, não haverá segurança”. Haverá segurança, desde que nos deixem à vontade para operar. Nenhum desses arautos da autonomia ilegal das polícias é capaz de explicar por que nunca foram capazes de promover segurança antes que se falasse em ADPF. E se acham que a ADPF é irrelevante, por acreditarem que as polícias sempre respeitaram a Constituição -os desvios não sendo mais que exceções eventuais-, como justificam 21.622 mortes por ações policiais, entre 2003 e 2023, com indiscutível viés de raça e classe, praticamente sem punições, e nenhum avanço expressivo na segurança?

Que a ADPF 635 seja aprovada e marque o início da mudança que não podemos mais adiar.


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