Programa mínimo ou programa de transição?
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Programa mínimo ou programa de transição?

Uma polêmica com a Resistência/PSOL sobre o horizonte da luta socialista

Imagem: Esportistas (Kazimir Malevich, 1931)

Via momento crítico

Texto publicado originalmente em momento crítico, revista oficial da organização porto-riquenha Democracia Socialista (seção da IV Internacional no país), em debate com as recentes posições expressas pelo dirigente da Resistência/PSOL Henrique Canary sobre a atualidade do método do programa de transição socialista. (NT)

Em dois artigos recentes, Henrique Canary levantou a necessidade de uma reorientação de nossa corrente política internacional. Segundo ele, o acúmulo de derrotas e retrocessos da classe trabalhadora e de seus aliados em potencial torna necessário limitar os horizontes da luta a reformas imediatas dentro da estrutura do capitalismo e à resistência contra o fascismo. Não há dúvida de que os problemas levantados por Canary são reais, mas a solução proposta está longe de abordá-los adequadamente.

Seu argumento se baseia na contraposição de duas opções de escolha. De um lado, está a ideia de uma “ruptura imediata com o capitalismo”, de uma luta antifascista que “se torna imediatamente anticapitalista”, juntamente com a política de “impor um programa anticapitalista aos aliados” e a concepção de que a classe trabalhadora, sempre na ofensiva, é limitada apenas por lideranças reformistas e traidoras. Do outro lado está o reconhecimento da profunda crise das lutas e organizações dos trabalhadores, da deterioração da consciência de classe, da necessidade de reconstruir essa identidade de classe, de enfrentar, ao mesmo tempo, a ameaça fascista e, portanto, de concentrar a política na luta por reformas, na defesa e na resistência ao fascismo. No momento atual, o reformismo seria a melhor maneira de ser revolucionário. Para evitar a primeira posição, seria preciso adotar a segunda: para evitar a ideia de uma revolução socialista “iminente” e “imediata”, seria preciso abandonar a perspectiva da revolução socialista em qualquer futuro previsível. Parece-nos que essa é uma alternativa falsa que exclui a perspectiva do método e do programa de transição. Achamos que isso é um erro, não porque os problemas apresentados pelas derrotas e recuos da classe trabalhadora não sejam reais, mas porque esse método, excluído da análise de Canary, continua sendo indispensável (embora não seja suficiente ou uma garantia de sucesso) para enfrentá-los adequadamente.

Canary destaca um aspecto do Programa de Transição de 1938: a noção de que a crise da humanidade se resume à crise de liderança da classe trabalhadora. Naquela conjuntura, a avaliação de Trotsky estava correta: as classes trabalhadoras e seus aliados estavam se lançando repetidamente na luta pelo poder político ou em mobilizações que poderiam, em pouco tempo, levar a essa luta (Alemanha, China, Espanha, França), mas se viam amarrados e bloqueados pelas lideranças oportunistas da Segunda e da Terceira Internacionais. Esse não é mais o caso: hoje o que caracteriza a classe é, em muitos casos, a passividade e a desorganização, e não uma militância próspera bloqueada por suas lideranças. Não se trata de explicar a necessidade de mudar a liderança de uma classe militante, mas de reconstruir essa atividade e militância.

O contraste formulado por Canary entre a situação de 1938 e a nossa é válido. Mas não é correto pensar que o problema apresentado por esse contraste não está previsto no Programa de Transição. O problema levantado por Canary é a lacuna entre a consciência atual da classe trabalhadora e o horizonte da luta socialista e anticapitalista. Esse, precisamente, é o problema central que o Programa de Transição apresenta e visa a resolver: como conduzir a classe trabalhadora de seu nível atual de consciência e organização para uma perspectiva e orientação anticapitalista e socialista. Trata-se de construir uma ponte entre as demandas imediatas (o programa mínimo) e a perspectiva da revolução anticapitalista. Obviamente, se a consciência e a organização existentes em 2025 forem diferentes das de 1938, essa ponte entre as demandas imediatas e a perspectiva socialista terá de ser diferente se quisermos nos conectar com a classe trabalhadora “realmente existente”, mas isso não justifica o abandono do método do Programa de Transição.

Em um artigo que cita Canary como referência, Martín Mosquera coloca a questão de forma mais ampla: “Os clássicos do socialismo tendiam a pensar que a classe trabalhadora era instintivamente revolucionária e que apenas fatores conjunturais poderiam levá-la a uma letargia reformista transitória”. No entanto, basta refletir por um segundo para lembrar a tese de Lênin de que a classe trabalhadora tende espontaneamente a posições sindicalistas, ou a preocupação de Rosa Luxemburgo com a tendência reformista da social-democracia antes de 1914. Da mesma forma, autores como Mandel, entre outros, dedicaram grandes esforços para explicar (e, é claro, tentar superar) a predominância de orientações reformistas no movimento dos trabalhadores.

Toda a tradição marxista revolucionária é permeada pela ideia de que há forças poderosas que contradizem a evolução da classe trabalhadora em direção a posições revolucionárias e que essa evolução, longe de ser garantida ou um problema resolvido, constitui o maior desafio para as organizações revolucionárias. Durante todo o período pós-1945, pelo menos nos países capitalistas desenvolvidos, o problema levantado por nossa corrente era justamente como enfrentar a realidade de uma classe trabalhadora que permanecia atrelada a uma perspectiva reformista. A explicação, é claro, foi encontrada na expansão capitalista do pós-guerra, capaz de acomodar demandas importantes do movimento dos trabalhadores. Entretanto, durante esse período, a perspectiva de tentar vincular as demandas imediatas com a orientação anticapitalista, ou seja, o método do programa de transição, não foi abandonada. Não foi abandonada porque esse problema e esse método não se limitaram à conjuntura passada de 1938. Da mesma forma, o fato de o fim da expansão do pós-guerra e a época neoliberal não terem causado sérios retrocessos para a classe trabalhadora também não anula esse problema ou esse método.

Em todo caso, o contexto atual da ofensiva agressiva do capital torna impossível levantar um programa mínimo (o que Canary descreve como bandeiras defensivas, mínimas e democráticas) sem levantar o problema das estruturas fundamentais do capitalismo. A defesa dos salários, dos direitos trabalhistas, das pensões, dos sistemas de seguridade social, da tributação das grandes empresas, a rejeição da privatização etc. enfrentam uma oposição feroz do capital e de seus agentes políticos e estatais. Como explicar as causas e os motivos desses ataques sem falar sobre o funcionamento do capitalismo? Como apresentar um programa em defesa da classe trabalhadora ou para enfrentar a crise climática que não desafie a lógica do sistema? Deixaremos de apresentar a tributação progressiva, o ajuste dos salários ao custo de vida, a garantia de serviços essenciais gratuitos, a nacionalização de determinados setores (energia, por exemplo) etc.? em outras palavras, as exigências clássicas de um programa de transição? Ao confrontar o fascismo, como podemos explicar suas raízes, as forças que o promovem, como combatê-lo, sem nos referirmos ao capitalismo, suas crises e suas consequências? Se a crise da civilização capitalista (econômica, política, interestadual, ecológica) levanta uma questão, é a necessidade e a possibilidade de vincular as preocupações imediatas da população (renda, moradia, saúde, aposentadoria…) com as tendências fundamentais do capitalismo. Ao participarmos e incentivarmos as lutas “reformistas” da classe trabalhadora, vamos deixar nossa orientação e explicação sobre essa última em casa?

Canary rejeita a noção de “uma ruptura imediata com o capitalismo” ou “a ideia da iminência da revolução” ou de uma “revolução antifascista que se torna imediatamente anticapitalista”. Ele também adverte contra a prática de tentar “impor um programa anticapitalista a aliados reformistas” ou a ideia de que “toda organização revolucionária é um pequeno partido bolchevique liderado por um pequeno Lênin que profere suas pequenas teses de abril…” Nós também rejeitamos essas posições. Não duvidamos que tais orientações, grupos ou partidos possam existir na esquerda em alguns países. O que ressaltamos é que a melhor maneira de combater tais orientações não é adotar uma perspectiva reformista e meramente antifascista, mas por meio de uma atualização do método e do programa de transição. Não há escolha entre a ideia de uma revolução “imediata” ou “iminente” ou uma “abordagem reformista”.

O método do programa de transição baseia-se precisamente na ideia de que a revolução não é iminente nem imediata, que uma ponte deve ser construída em sua direção com base na consciência e na organização existentes da classe trabalhadora. Hoje sabemos que essa ponte deve ser construída em condições diferentes e mais difíceis e que provavelmente levará mais tempo para ser construída e atravessada do que se esperava no passado, mas essa ainda é a maneira como vemos nossa tarefa. Essa perspectiva é perfeitamente compatível com a construção de alianças sem impor nosso programa e sem exigências “ultimatistas” aos nossos aliados reformistas. Ela é igualmente compatível com as propostas de Canary de incentivar lutas imediatas, reconstruir laços de classe, promover o internacionalismo e a independência de classe. Mas nada disso exige ou se beneficia do fato de abandonarmos o programa de transição em favor de um programa mínimo, no qual, nas palavras do velho Bernstein, o movimento é tudo e o fim não é nada.

Não é preciso dizer que o método do programa de transição inclui o conceito e a perspectiva da frente única com forças e organizações reformistas do movimento operário e dos setores oprimidos, em termos gerais, e em termos da luta antifascista em particular. Não temos que escolher entre uma perspectiva sectária de rejeição de tais frentes ou alianças ou a adoção de um programa reformista mínimo. Existe a possibilidade de acordos e alianças com forças reformistas com base em nossa orientação transitória anticapitalista. Canary levanta a necessidade de “reconstruir no proletariado a ideia de identidade de classe e oposição aos interesses da burguesia”. Concordamos, é claro. No entanto, a ideia de “oposição aos interesses da burguesia” já nos leva além da mera luta por reformas e nos conduz a um confronto com o capitalismo, não iminente, certamente não imediato, mas um confronto que estamos preparando. E esse é o método do programa de transição.

Martin Mosquera nos lembra de um precedente esclarecedor: a revolução russa foi realizada sob o slogan de Pão, Terra e Paz, e não de expropriação da burguesia. Como bem diz Mosquera, em textos como “A catástrofe que nos ameaça e como evitá-la”, Lênin levantou uma série de problemas imediatos (fome, frio, colapso, transporte…) e propostas imediatas, compreensíveis para as maiorias, que buscavam resolver esses problemas urgentes enquanto mobilizavam essas maiorias contra as prerrogativas da burguesia (consolidação e controle estatal de bancos e grandes empresas inicialmente sem expropriar os proprietários, abolição do sigilo comercial, controle de lojas pelos consumidores etc.). Mas essa é precisamente a lógica e o método do que mais tarde se tornaria conhecido como o método e o programa de transição. Mosquera resume isso com a fórmula de que ser revolucionário é ser “reformista até o fim”. Se entendermos corretamente, isso significaria dizer que as demandas imediatas ligadas aos interesses das maiorias são levadas adiante até entrarem em contradição com as regras do capitalismo. Essa é a diferença em relação aos reformistas simples, que não vão “até o fim”, porque não estão preparados para desafiar essas regras. Mas o que é isso se não o método do programa de transição? Portanto, parece-nos que é melhor chamá-lo por seu nome do que substituí-lo por termos (“reformismo até o fim”) que, em vez de ajudar, complicam a tarefa de atualizá-lo.

Referências

Ascensão da extrema-direita: por que justamente agora? (Henrique Canary)

Pensando um pouco sobre a “crise de direção do proletariado” (Henrique Canary)

Fin de ciclo (Martín Mosquera)


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