O estado da África na nova (des)ordem mundial
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O estado da África na nova (des)ordem mundial

A crise dos partidos originados nos movimento da libertação africana frente à nova crise mundial

Will Shoki 11 abr 2025, 08:00

Foto: Protestos populares contra as fraudes eleitorais da Frelimo em Moçambique. (FMT/Reprodução)

Via LINKS

A África hoje está em uma encruzilhada, presa entre crises internas, dinâmicas globais de poder em mudança e o lento desmantelamento da ordem política pós-libertação. Em todo o continente, partidos no poder que antes gozavam de legitimidade como libertadores nacionais estão perdendo o controle; no entanto, a oposição permanece fragmentada, oferecendo poucas alternativas reais de governança.

As eleições moçambicanas de 2024 fornecem um dos exemplos mais evidentes desse declínio, com o partido no poder, a Frelimo, declarando vitória em um processo amplamente condenado como fraudulento. O líder da oposição, Venâncio Mondlane, concorreu pelo recém-formado partido Podemos e acusou o governo de orquestrar uma manipulação eleitoral em massa, após contagens paralelas de votos sugerirem que ele havia vencido. O partido governante respondeu aos protestos em massa com uma repressão violenta, dando continuidade a uma tendência de supressão da dissidência política enquanto mantém o controle por meios cada vez mais autoritários.

A crescente ilegitimidade desses governos da era da libertação não se limita a Moçambique. Na África do Sul, o Congresso Nacional Africano (CNA) perdeu sua maioria absoluta pela primeira vez desde 1994, obtendo apenas cerca de 40% dos votos nas eleições de 2024. Após décadas de domínio político, o partido agora se encontra em uma coalizão frágil e incômoda com a Aliança Democrática (AD), sua rival histórica. Isso forçou o CNA a adotar uma posição de governo mais centrista, limitando sua capacidade de implementar políticas esperadas por sua base tradicional.

Enquanto alguns dentro do CNA veem essa coalizão como um compromisso necessário para manter a estabilidade, outros a enxergam como uma traição à missão histórica do partido, especialmente dada a orientação neoliberal da AD. As consequências desse arranjo ainda são incertas — se a coalizão durará, se aprofundará as divisões dentro do CNA ou se dará origem a movimentos de oposição mais fortes fora do processo eleitoral convencional.

O declínio do CNA segue uma tendência mais ampla no sul da África. O Zanu-PF do Zimbábue permanece no poder mais pela repressão do que pelo apoio popular, utilizando o judiciário e a comissão eleitoral para bloquear desafios reais da oposição. Enquanto isso, o Swapo da Namíbia e o BDP de Botsuana enfrentaram desafios eleitorais sem precedentes (com o BDP perdendo uma eleição pela primeira vez desde a independência), sinalizando que mesmo partidos governistas historicamente estáveis já não têm vitórias garantidas. O desmantelamento desses movimentos sugere que suas credenciais de libertação, outrora poderosas, já não bastam para sustentar sua autoridade política.

Conflito

O enfraquecimento desses governos ocorre em meio ao agravamento de conflitos e instabilidade em outras partes do continente.

O Sudão permanece mergulhado em uma guerra devastadora entre as Forças Armadas Sudanesas e as Forças de Apoio Rápido, uma milícia paramilitar. O conflito, que já deslocou milhões de pessoas, está cada vez mais internacionalizado, com Egito e Emirados Árabes Unidos apoiando lados opostos. A guerra não apenas aprofundou o colapso econômico do Sudão, mas também ameaça a estabilidade regional, com efeitos colaterais no Chade, Sudão do Sul e Etiópia.

A República Democrática do Congo (RDC) continua enfrentando insurgências armadas, especialmente a retomada do grupo M23, cujo apoio por Ruanda intensificou as tensões regionais. Acusações de interferência transfronteiriça estão deteriorando ainda mais as relações diplomáticas.

Essas crises não são isoladas; refletem um fracasso mais profundo da governança em várias partes da África, onde o Estado frequentemente é incapaz de resolver reivindicações sociais e econômicas sem recorrer à violência.

O efeito Trump

Em meio a essas crises, a África também navega por uma ordem internacional em transformação. O retorno de Donald Trump à presidência dos EUA já começou a remodelar as relações EUA-África. Houve uma mudança para um engajamento mais transacional, com ênfase renovada na segurança em detrimento do desenvolvimento. Uma das primeiras ações de política externa de Trump foi cortar a ajuda estrangeira, desmantelar a USAID e reduzir o financiamento de programas de saúde essenciais, incluindo o PEPFAR (Plano de Emergência dos EUA para o Alívio da AIDS). Isso deixou milhões sem acesso a tratamento para HIV e outros serviços vitais.

Esses cortes foram sentidos com mais intensidade em países cujos sistemas de saúde já estavam sob forte pressão, agravando crises sanitárias que podem ter efeitos desestabilizadores de longo prazo. A justificativa da administração para essas medidas está enraizada na ideologia do “America First”, que enxerga a ajuda externa como um gasto desnecessário, e não como um investimento estratégico em estabilidade.

Isso coincidiu com o endurecimento da política migratória dos EUA. A administração está considerando uma proibição de vistos que poderia afetar dezenas de países africanos, restringindo viagens de estudantes, trabalhadores e turistas. Essa abordagem remete às proibições de viagem do primeiro mandato de Trump e sinaliza um aprofundamento do isolacionismo dos EUA em relação à África, tratando o continente mais como risco de segurança e migração do que como parceiro diplomático ou econômico.

Trump e a África do Sul

A hostilidade da administração em relação à África do Sul tem sido particularmente notável. Trump expulsou o embaixador sul-africano e impôs sanções em resposta às políticas de expropriação de terras de Pretória e à sua postura em política externa, especialmente seus esforços para responsabilizar Israel por genocídio em Gaza. A administração classificou essa postura como simpatia pelo Hamas e pelo Irã.

Essas medidas punitivas refletem o desconforto mais amplo da administração com governos que desafiam a hegemonia dos EUA, particularmente os do BRICS. Ao enquadrar as posições da África do Sul como “antiamericanas”, Trump efetivamente rompeu uma das relações diplomáticas mais significativas entre os EUA e uma potência africana. Isso também se insere em uma ênfase mais ampla do governo em privilegiar estados de orientação autoritária e de direita, enquanto isola governos percebidos como de esquerda ou independentes.

EUA, China e os recursos africanos

Ao mesmo tempo, a administração Trump está adotando um tipo diferente de engajamento com outros países africanos, especialmente no setor de recursos naturais. Atualmente, está sendo negociado um acordo de “minerais por segurança” com a RDC, oferecendo assistência militar em troca de acesso exclusivo a minerais estratégicos, essenciais para as indústrias tecnológicas e de defesa dos EUA. O acordo daria às empresas norte-americanas controle extensivo sobre o cobalto e outros minerais essenciais. Isso representa uma mudança na estratégia dos EUA, passando da ajuda ao desenvolvimento para a extração econômica direta.

Segundo o governo, essa parceria ajudará a estabilizar a RDC por meio da assistência de segurança. Críticos alertam que isso pode aprofundar dinâmicas neocoloniais, priorizando a extração de recursos em detrimento do desenvolvimento econômico genuíno.

Ao mesmo tempo, a abordagem da China em relação à África também está mudando. Por duas décadas, Pequim foi o principal parceiro econômico do continente, financiando infraestrutura e comércio em escala sem precedentes. No entanto, com a desaceleração da economia chinesa, sua disposição em oferecer empréstimos em larga escala diminuiu. Países como Zâmbia e Quênia, altamente endividados com a China, já sentem a pressão da nova estratégia de crédito de Pequim. Os dias de crédito fácil para grandes projetos de infraestrutura podem estar chegando ao fim, deixando os estados africanos em uma posição precária. Muitos governos, que estruturaram suas economias com base em investimentos chineses contínuos, agora enfrentam dificuldades para se adaptar a essa nova realidade. Essa mudança deixa a África com menos opções de financiamento externo, à medida que instituições financeiras ocidentais também endurecem as condições de empréstimo, especialmente para países muito endividados.

Uma nova política possível?

Para os governos africanos, esses acontecimentos levantam questões difíceis sobre estratégia política e econômica. O declínio dos movimentos de libertação nacional ainda não resultou no surgimento de alternativas progressistas viáveis. Os partidos de oposição na região, em grande parte, adotaram modelos neoliberais de governança em vez de articularem novas visões para a transformação econômica. Em vez de uma renovação democrática decisiva, grande parte do continente parece oscilar entre repressão estatal crescente e oposição fragmentada. Muitos partidos opositores, embora críticos dos governos no poder, não apresentaram programas econômicos que rompam com o paradigma neoliberal dominante. Isso significa que, mesmo onde os partidos governantes enfrentam declínio eleitoral, há poucas indicações de que seus substitutos alterariam fundamentalmente o panorama político ou econômico.

Embora movimentos enraizados em lutas trabalhistas e populares continuem buscando mudanças, sua capacidade de desafiar estruturas de poder consolidadas permanece incerta. A fraqueza das alternativas de esquerda na África hoje reflete tendências globais mais amplas, nas quais forças socialistas e social-democratas têm dificuldade para se reafirmar em um mundo moldado pelo capital financeiro e pelo poder corporativo.

Contudo, há sinais de que isso pode mudar. Em todo o continente, crescem os clamores por soberania econômica, por programas mais robustos de proteção social e por maior resistência às imposições financeiras externas. Se essas lutas se articularem em formações políticas mais coerentes, podem fornecer a base para um novo tipo de política — uma que rompa tanto com os fracassos dos partidos pós-libertação quanto com as limitações das forças opositoras liberais.

A ordem política pós-libertação na África está se desintegrando, mas o que virá em seguida ainda está longe de estar definido. A erosão da legitimidade dos partidos no poder ainda não se traduziu em uma transformação sistêmica significativa. Em muitos casos, apenas abriu espaço para novas formas de manobras das elites. Neste momento de transição, a verdadeira disputa não se dá apenas nas urnas, mas sobre a própria natureza do Estado, da governança econômica e do papel da África em uma ordem mundial em rápida mudança. Até que surjam alternativas que desafiem a dependência do continente em relação às finanças globais, à extração de recursos e ao crescimento baseado em dívidas, a África continuará presa a ciclos de instabilidade — com ou sem os antigos movimentos de libertação no comando.


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