Conflitos fundiários e contradições do discurso do agronegócio às margens do Rio Gregório, Acre
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Conflitos fundiários e contradições do discurso do agronegócio às margens do Rio Gregório, Acre

Créditos de carbono e a atuação do extrativismo predatório na floresta acreana

Victor Martins dos Santos Romero 31 maio 2025, 10:15

Foto: Rio Gregório. (Pedro Devani/Secom-Ac)

A história de todas as sociedades têm sido, essencialmente, a história das lutas de classes. Essa afirmação de Marx e Engels, publicada em 1848 no Manifesto Comunista e lançada ao mundo através dos séculos, não apenas sintetiza um método de análise, mas também convoca os trabalhadores e trabalhadoras a reconhecerem sua centralidade histórica e sua potência revolucionária. Mas quais as contradições e limitações que atravessam as lutas travadas nos confins da periferia do capitalismo mundial, mais precisamente, nas terras amazônicas brasileiras?

Populações, culturas, modos de vida e de relações, tradições e afetos que foram, e ainda são, esmagadas pela ganância milionária de acumulação de alguns homens, em uma prática constante de saques e genocídios que perdura há pelo menos quatro séculos. Às vezes, elas mudam de forma, alteram o discurso, revestidas de “boas intenções” e envoltas em uma falsa e pitoresca preocupação social e ambiental. Conforme aponta Karl Marx no livro 18 de Brumário de Luís Bonaparte, os fatos não se repetem na história de forma idêntica, mas são reinterpretados para sustentar novas formas de opressão e acumulação. Os movimentos históricos de acumulação capitalista se sustentam ao invocar valores, significados e discursos arcaicos de “desenvolvimento” e “progresso” que legitimam novas etapas de exploração e domínio.

Nas linhas que seguem, apresento um recorte de um dos inúmeros processos de conflitos gerados pela expansão da fronteira agropecuária sobre os povos da floresta no Acre a partir da década de 1970. Aproximo aqui, dois sujeitos centrais e seus respectivos processos de manutenção de um ativo financeiro altamente cobiçado: a propriedade da terra. Trata-se da empresa paranaense de colonização e criação de gado Paranacre, criada em 1976 e extinta em 2004, e o empresário Carlos Massa, que, em 2002, adquiriu da própria empresa a propriedade de terras localizadas no município de Tarauacá, no estado do Acre. Seus investimentos e propriedades concentram-se na região do entorno do Território Indígena Rio Gregório, que historicamente abriga diversas comunidades dos povos originários da família linguística Pano, além de famílias camponesas e posseiros(as).

Esse processo possivelmente teve início entre o final da década de 1960 e começo da década de 1970, a partir do declínio da economia da borracha na Amazônia. Foi quando o governo militar direcionou seus investimentos para novos modelos econômicos, com o objetivo de integrar a região aos mercados nacional e internacional. Para isso, adotou uma estratégia baseada na concessão de incentivos fiscais às grandes empresas interessadas na exploração da Amazônia, especialmente nos setores da pecuária, extração madeireira e mineração. No início da década de 1970, Vanderley Dantas (1932-1982), então governador do Acre, alinhado às diretrizes do governo federal para modernizar a economia e promover a “integração” da região ao restante do país, buscou atrair investidores do sul e sudeste do Brasil.

O governo estadual oferecia terras a preços acessíveis e prometia a construção de uma rodovia que ligaria o Acre ao Peru e ao Oceano Pacífico, facilitando o escoamento da produção e a abertura de novas rotas comerciais. Entre os atrativos para esses investidores capitalistas estavam incentivos fiscais, como o Programa de Polos de Desenvolvimento Agropecuário e Agrominerais da Amazônia (Polamazônia) e o Programa de Redistribuição de Terras (Proterra), ambos geridos pelo Banco da Amazônia (Basa) e pela Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). A maioria desses investidores veio dos estados de São Paulo e Paraná, regiões com capital disponível para investir na transformação de florestas em extensas áreas de pastagem, além de possuírem tradição consolidada na pecuária e no uso de tecnologias agropecuárias. Esse momento histórico ficou conhecido como a “chegada dos paulistas”.

É nesse período que surge a Companhia Paraense de Colonização Agropecuária e Industrial do Acre, a Paranacre, que começou a operar no estado em 1976, com foco na criação e comercialização de gado de corte. Encerrada oficialmente em 2004, por liquidação voluntária, a empresa tinha entre seus diretores figuras centrais da política e do capital financeiro e do agronegócio, como o banqueiro e ex-senador José Eduardo de Andrade Vieira (1938–2015), o ex-presidente da Viação Garcia, José Paulo Garcia Pedrialli (1951–2014) e Odilon Bertin Fuganti (1944–2022), sócio do grupo agroindustrial Irmãos Fuganti, sediado em Maringá, no norte do Paraná.

A Paranacre adquiriu no período referido cerca de 500 mil hectares na região de Tarauacá, às margens do rio Gregório. Parte dessas terras foi repassada pelo ex-senador biônico da Arena, Altevir Leal (1929–1999), que se apropriou de mais de sessenta seringais e os negociou com empresários de Londrina, entre eles, os donos do Café Cacique e da Viação Garcia. Entre as áreas incorporadas estavam os seringais Sete Estrelas e Kaxinawá, além de territórios sagrados dos povos Yawanawá e Huni Kuin por abrigarem antigos cemitérios. À época, os moradores originários ouviram dos novos proprietários que a compra incluía tudo: terras, plantações, casas, mortos e vivos.

A empresa paranaense acumulou em sua trajetória denúncias de grilagem e exploração da mão de obra, bem como relatos de perseguições e condições de trabalho análogas à escravidão. Sob o controle dos patrões, foram proibidos de caçar, pescar, plantar e até de realizar suas festas e rituais sagrados, práticas essenciais à sua sobrevivência física, cultural e espiritual.

As primeiras ações coletivas de resistência dos povos originários da região do Rio Gregório contra a Paranacre surgiram em 1976, com o início do processo de regularização de suas terras, auxiliados pela FUNAI. Até então, o Estado, em qualquer nível, nada havia feito para assegurar os direitos dos povos originários. Entre 1976 e 1979, estudos realizados pela FUNAI identificaram 18 áreas indígenas no estado, quatro no Vale do Alto Purus e quatorze no Alto Juruá, incluindo territórios de povos isolados. É nesse contexto que se intensificam os movimentos indígenas, denunciando a violência dos invasores e exigindo a demarcação de seus territórios.

Na região de Tarauacá e do Rio Juruá, a luta se concentrava em expulsar a Paranacre e pôr fim ao ciclo de violência e esbulho. A mobilização contou com o apoio da FUNAI, da Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre) e do Conselho de Missão entre Índios (COMIN). Como resultado, o Território Indígena (TI) Rio Gregório foi demarcado em 1983 e homologado em 1991 pelo Decreto nº 281. Inicialmente com 92.859 hectares, teve seus limites ampliados em 2007, e, em 5 de setembro de 2023, o presidente em exercício, Luiz Inácio Lula da Silva, assinou um novo decreto (nº 11.690), elevando a área para 187.125 hectares.

Cito, de forma breve, o caso da população Huni Kuin da Praia do Carapanã como exemplo das disputas que persistem na área em questão. Localizada no TI Rio Gregório, essa comunidade enfrenta há pelo menos 5 décadas um conflito com a Paranacre e, atualmente, segue em litígio, agora com a sobreposição de glebas registradas em nome de Carlos Massa, empresário, latifundiário e apresentador de televisão. A TI Huni Kuin da Praia do Carapanã foi homologada em 30 de abril de 2001, com 60.698 hectares e perímetro de 163.706 metros. Abriga oficialmente seis aldeias, todas às margens do rio Tarauacá. Apesar do reconhecimento legal, a presença do latifúndio sobre o território segue como um dos principais fatores de tensão para os Huni Kuin.

Carlos Massa, o Ratinho, hoje um dos principais nomes da comunicação brasileira, proprietário do Grupo Massa, um império midiático com dezenas de emissoras de rádio e canais de televisão em 9 estados, declara também investimentos em setores da construção civil, comércio, restaurantes, fazendas de soja e café, criação de gado e administração de imóveis, com um patrimônio estimado em R$ 530 milhões. Entre suas 19 fazendas espalhadas pelo Brasil, estão os 175,3 mil hectares em Tarauacá, divididos entre as glebas Paranacre A e B. A aquisição da propriedade foi realizada em 2002, diretamente da antiga Paranacre, por cerca de R$ 330 mil. A propriedade foi registrada em nome da Radan Administração e Participação Ltda, sediada no bairro Água Verde em Curitiba, a quase 4 mil quilômetros de distância das terras no Acre. A empresa tem como sócios dois de seus três filhos, Gabriel e Rafael Martinez Massa, além do empresário Dante Luiz Franceschi. Parte da gleba Paranacre B invade ilegalmente a TI Rio Gregório, sobrepondo 13,8 mil hectares ao território sagrado do povo Huni Kuin da Praia do Carapanã.

O empresário adota diferentes mecanismos de investimentos na propriedade desde sua aquisição da Paranacre, sustentando os mesmos discursos arcaicos, revestidos de uma retórica “sustentável” e de uma questionável preocupação social. Entretanto, as contradições do capital expõem, real e materialmente, as falácias desses discursos e a realidade de conflitos e de violações dos direitos daqueles e daquelas que habitam e trabalham nesta terra há décadas, ou, há séculos.

No ano de 2005, o empresário e apresentador investiu algo em torno de R$ 25 milhões em um estudo de viabilidade econômica para o manejo florestal de suas propriedades em Tarauacá, assim como a instalação de uma indústria de beneficiamento voltada à produção e comercialização de subprodutos madeireiros. Em 2010, obteve licenciamento do IBAMA para exploração madeireira em uma área de 150 mil hectares. Diante desse cenário, em uma nova ação de luta e organização, líderes de sete aldeias Yawanawá do TI Rio Gregório elaboraram uma carta de repúdio, endereçada ao então governador do Acre, Binho Marques (PT), cobrando esclarecimentos sobre a licença ambiental concedida. As lideranças cobravam mais informações e acesso ao documento, que havia sido privado à população que habita a região, sem qualquer tipo de consulta ou transparência.

Em mais um capítulo da velha engrenagem em que o peso da balança do Estado segue implacavelmente inclinado contra aqueles que não detém a propriedade da terra, na manhã do dia 23 de junho de 2015, mais de trinta famílias camponesas foram removidas à força pela polícia militar, em cumprimento a um mandado judicial de reintegração de posse das terras reivindicadas pela empresa Radan, no Km 90 da Br-364. Uma nova liminar de reintegração de posse foi expedida no dia 18 de janeiro de 2021, dessa vez em uma ação movida por Dante Franceschi, também sócio da Radan. Na decisão, ficou determinado que as 22 pessoas que ocupavam as terras em litígio se abstivessem de permanecer na área ou, de qualquer forma, comprometesse a propriedade do requerente, além de imposição de uma restrição de 50 metros de distância e uma multa diária, de caráter individual, de R$100.

Atualmente, os investimentos de Carlos Massa na propriedade em Tarauacá segue em direção do que tem sido a “nova corrida do Eldorado na Amazônia” – a venda de créditos de carbono no mercado internacional. Esse mecanismo é a REED +, que significa Redução de Emissões provenientes de Desmatamento e Degradação Florestal, e passou a ser adotada a partir da COP- 19, realizada em 2013 na cidade de Varsóvia. A proposta visa mitigar a emissão de gases de efeito estufa e os impactos associados ao aquecimento global, prevendo retorno financeiro às ações de preservação florestal. As empresas e investimentos que obtêm o “selo de garantia” REDD+ tornam-se geradores de créditos que podem ser vendidos no mercado de carbono, possibilitando que grandes corporações internacionais compensem suas emissões “inevitáveis”. Na extensa lista de empresas internacionais que investem no mercado de carbono na Amazônia, encontram-se grandes conglomerado e corporações como a Amazon, Bayer, Walmart, Samsung e até o time de futebol inglês Liverpool.

Em função dos limites que me impõe esta reportagem, não pretendo aprofundar uma crítica sistemática ao mecanismo de venda de créditos de carbono, mas, por meio dos sujeitos apresentados, a Paranacre e Carlos Massa, expor as contradições inerentes ao modelo de especulação fundiária e de acumulação capitalista na Amazônia. Torna-se cada vez mais necessário, e urgente, construir, social e politicamente, outras formas de pensar, viver, produzir e de se relacionar com a terra, especialmente na Amazônia e nos países periféricos, cuja extensas florestas seguem exploradas sob diferentes justificativas ao longo da história moderna.

Os mecanismos de preservação propagados por tais iniciativas do mercado financeiro convivem, de forma conveniente e contraditória, com práticas constantes e permanentes de ocupação, grilagem, reintegração de posse e exploração predatória dos recursos. São, não por acaso, os mesmos empresários que ostentam o “selo de garantia” aqueles que, na prática, perpetuam as velhas e arcaicas dinâmicas de especulação e concentração da terra. Processos de desapropriação, sobreposição de terras indígenas e uso da violência institucional, constituem velhos mecanismos de repetidos discursos que legitimam a acumulação por parte de grandes empresários. Os fatos e personagens da história encenados, ora como tragédia, ora como farsa, evidenciam a permanência das estruturas de dominação e exploração na Amazônia.


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Autores

Camila Souza