Os 20 anos da legalização do PSOL e sua importância hoje
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Os 20 anos da legalização do PSOL e sua importância hoje

Sobre o processo do fundação do PSOL e a necessidade do partido nos dias atuais

Luciana Genro 12 maio 2025, 15:49

Foto: Flickr/@partidosol

Via FLCMF

Em janeiro de 2003, quando publicamos o livro de Roberto Robaina “Uma visão pela esquerda. A socialdemocracia, o Estado e o PT: as perspectivas do governo Lula”, recém se iniciava o primeiro mandato de Lula e as expectativas de grande parte da vanguarda e amplos setores de massas era de que estávamos às portas de grandes mudanças estruturais para a classe trabalhadora brasileira. Como sabemos hoje, não foi o que ocorreu, e as caracterizações de Robaina no livro foram muito precisas. Este livro teve uma importância fundamental nas elaborações do MES – Movimento Esquerda Socialista – nossa corrente que, ainda como parte do PT, começava a debater de forma mais concreta a necessidade de fundar um novo partido. 

No livro, além de resgatar os clássicos do marxismo, Roberto Robaina oferece uma análise crítica da trajetória do Partido dos Trabalhadores, argumentando que o partido abandonou seus princípios fundacionais ao adotar uma estratégia de conciliação com setores da burguesia. Robaina demonstra que o PT, ao assumir o governo federal, estava concretizando uma aliança com setores empresariais, o que resultou na implementação de políticas que favoreceram o capital em detrimento dos trabalhadores. Ele aponta que essa mudança foi facilitada pela ausência de um ascenso sustentado do movimento de massas, permitindo que as classes dominantes cooptassem as vitórias populares e mantivessem sua dominação de classe, mesmo quando suas lideranças políticas estavam desgastadas. A burguesia estava terceirizando para Lula  a condução dos seus interesses pois não contava mais com líderes políticos com apelo de massas em condições de fazê-lo. Como alternativa, Robaina defende a construção de uma política de esquerda anticapitalista e revolucionária, baseada na mobilização  das massas e na independência política dos trabalhadores. Ele critica a estratégia de conciliação de classes adotada pelo PT e propõe a construção de um novo projeto político que resgate os princípios fundacionais da esquerda brasileira. Essa foi a política desenvolvida pelo MES no período subsequente. 

A história do surgimento do PSOL narrada pela grande imprensa, centrada no papel dos parlamentares “radicais”, é real porém superficial. Por trás dos parlamentares havia a política desenvolvida pelo Movimento Esquerda Socialista (MES) e também pela  Corrente Socialista dos Trabalhadores (CST), duas correntes políticas, de matriz comum, que sustentavam caracterizações acerca do lulismo que foram decisivas para que o PSOL viesse a existir. Ambas referenciadas no trotskismo de matriz morenista, isto é, vinculadas à tradição política do dirigente argentino Nahuel Moreno, morto em 1986. Além das correntes, uma figura política foi central neste processo, Heloísa Helena. Senadora, figura carismática e combativa de Alagoas, Heloísa era militante de outra corrente trotskista, esta de uma matriz diferente. A Democracia Socialista (DS) era a seção brasileira da IV Internacional – Secretariado Unificado, vinculada ao dirigente Belga Ernest Mandel. A DS, entretanto, não compartilhava das mesmas caracterizações nossas acerca do lulismo e do PT, e não acompanhou Heloísa e o dirigente João Machado na fundação do PSOL. Acabou ficando no PT e se desvinculando da IV Internacional, que deu suporte à Heloísa e João Machado. Os militantes da DS que entraram para o PSOL se dispersaram em várias correntes, todas vinculadas à IV Internacional. Após uma década de debates, em fevereiro deste ano, o MES foi plenamente integrado à IV Internacional, somando-se às demais organizações que representam oficialmente a IV no Brasil.

O contexto da fundação do PSOL

O enfrentamento pela esquerda com o governo começou publicamente no início de 2003, com Heloísa Helena, que se recusou  a votar em José Sarney para presidente do Senado, como determinado por Lula. Mas, antes disso, as análises feitas por Robaina em seu livro me ancoraram para ser porta voz das críticas do Movimento Esquerda Socialista em relação à política econômica de Lula que, na famosa “Carta ao Povo Brasileiro”, havia firmado um compromisso claro com o mercado financeiro em detrimento das mudanças estruturais na economia defendidas historicamente pela esquerda. O compromisso central assumido por Luiz Inácio Lula da Silva na “Carta ao Povo Brasileiro”, divulgada em junho de 2002 durante sua campanha presidencial, foi o de manter a “estabilidade econômica” e respeitar os compromissos assumidos pelo Estado brasileiro com o mercado financeiro e especuladores  nacionais e estrangeiros. A carta foi uma resposta ao clima de desconfiança dos mercados com a possibilidade de vitória de um candidato historicamente associado à esquerda e ao sindicalismo, e  buscava tranquilizar empresários e investidores, ao afirmar que seu governo não iria romper com o sistema econômico existente.

Antes mesmo de assumir, portanto, já estava claro qual seria o rumo do governo, e os ministros burgueses escolhidos por Lula  foram consequência desta escolha inicial, especialmente Henrique Meirelles, ex-dirigente do BankBoston e que que havia sido eleito deputado federal pelo PSDB. Ele renunciou ao mandato para assumir a chefia do Banco Central, um aceno direto ao setor financeiro, deixando claro que o governo não iria inovar do ponto de vista econômico. A necessidade de manter os elevados superávits primários para garantir o pagamento dos juros da dívida pública era a preocupação do mercado, algo que Meirelles diligentemente entregou. 

Neste momento muitos dirigentes do PT, especialmente os mais vinculados à ala esquerda, ainda sustentavam que o governo iria virar lentamente para a esquerda, e que a situação inicial de rendição ao mercado era transitória. O próprio Lula usou a analogia de um transatlântico para justificar a manutenção das bases econômicas herdadas de Fernando Henrique Cardoso: “O Brasil não é um Fusquinha, que pode dar um cavalo-de-pau, é um transatlântico. Se a virada não for feita aos poucos, pode afundar. E nós não temos vocação para Titanic.” Essa declaração foi feita após o anúncio de um corte de R$ 14,1 bilhões no Orçamento, como parte da política econômica de seu governo. 

Entretanto, a virada econômica nunca veio, o que veio foi a reforma da previdência, aprofundando a lógica do ajuste fiscal e agregando um  ataque frontal  aos direitos  dos servidores públicos, que sempre tinham sido uma forte base social do PT. Ela foi a primeira ação legislativa do governo para demonstrar seu compromisso com o mercado financeiro e, por isso, era fundamental para Lula garantir a unidade do PT nesta votação, sinalizando que os “radicais” não tinham força interna. Houve “choro e ranger de dentes”. Muitos deputados demonstraram sua insatisfação com a reforma. Além dos quatro que acabaram expulsos do partido, vários outros vinculados à esquerda, como Chico Alencar, Ivan Valente, Maninha, João Alfredo e Lindbergh Farias, ameaçaram votar contra. Em meio a uma forte greve dos servidores contra a reforma, todos acabaram cedendo às pressões de Lula e às ameaças de expulsão vocalizadas por José Dirceu, chefe da Casa Civil, e José Genoíno, presidente do PT. As exceções foram Heloísa, eu, Babá e João Fontes, que, em dezembro de 2003, em uma reunião do Diretório Nacional do PT, fomos expulsos. Conosco saiu Roberto Robaina, que era membro do Diretório Nacional, entre outros filiados e dirigentes estaduais. 

Em janeiro de 2004, ocorreu uma reunião de dirigentes e militantes destas correntes políticas, intelectuais críticos do rumo que o governo Lula vinha tomando desde 2003, integrantes de movimentos sociais e militantes independentes. Professores universitários, dirigentes sindicais (especialmente dissidentes da CUT vinculados ao setor público), membros de movimentos populares urbanos e estudantis, como o  Movimento Terra, Trabalho e Liberdade (MTL), organização popular de esquerda que participou das articulações, especialmente através do seu dirigente Martiniano Cavalcanti.

Essa reunião teve um papel fundamental na decisão de iniciar um movimento para fundar um novo partido de esquerda no Brasil, que mais tarde viria a se concretizar na criação do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). A reunião iniciou o Movimento por um Novo Partido, lançando um jornal e um roteiro de viagens dos parlamentares radicais por todo o Brasil. Foram realizados eventos em todas as capitais do país, reunindo uma ampla vanguarda composta fundamentalmente por servidores públicos, jovens e militantes das correntes MES, CST, MTL, CSOL, SR, dissidentes da DS e grupos regionais. Heloísa Helena era o carro-chefe como figura pública, muito apoiada e admirada, mas a corrente que deu sustentação, linha política e o maior número de militantes foi inegavelmente o MES. 

Em  6 de junho de 2004, em uma plenária nacional realizada em Brasília, com a presença de centenas de  militantes e lideranças de esquerda, é fundado o PSOL. Entre as figuras de destaque da luta política para fundar o PSOL também contamos com o apoio de intelectuais de alto calibre como Ricardo Antunes, Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, Francisco de Oliveira, Paulo Arantes e Milton Temer, este sendo o mais militante dentre todos e até hoje dirigente do PSOL. 

O processo político da fundação à legalização 

A fundação do novo partido estava conquistada, mas para a legalização junto ao TSE ainda seria necessário conseguir cerca de meio milhão de assinaturas (438 mil na época, com distribuição nacional), todas checadas e referendadas pelos cartórios eleitorais em todo o Brasil. O desafio era conquistar a legalização até outubro de 2005, a tempo do partido se apresentar nas eleições presidenciais de 2006. Em 15 de setembro de 2005, após uma grande campanha de coleta das assinaturas, conquistamos a legalização possibilitando que Heloísa Helena fosse nossa candidata a presidente em 2006.

Neste contexto acontece o chamado escândalo do “Mensalão”, que  aprofundou a crise interna do PT, consistindo em um esquema de compra de apoio parlamentar no Congresso Nacional que foi  denunciado em junho de 2005 pelo então deputado Roberto Jefferson (PTB). As denúncias derrubaram José Dirceu, chefe da Casa Civil, homem forte de Lula e cotado para sua sucessão. O escândalo abalou a principal imagem positiva do  PT, visto como um partido ético, que não se curvava ao toma-lá-dá-cá da política tradicional. Surgiu então uma nova leva de dissidentes, ampliando o processo de ruptura iniciado com a reforma da Previdência em 2003. Os parlamentares Chico Alencar (RJ), Ivan Valente (SP). Orlando Fantazzini (SP), Maninha (DF) e João Alfredo (CE) , além de  muitos militantes, intelectuais e dirigentes sindicais saíram do PT e aderiram ao PSOL após 2005, fortalecendo o partido como referência da esquerda crítica. Entre eles estava também Plínio de Arruda Sampaio, que foi candidato a presidente pelo partido em 2010.

As eleições de 2006 marcaram a estreia eleitoral do PSOL. Heloísa Helena era uma figura extremamente popular, sem a qual o PSOL não teria o peso que teve. Heloísa obteve  obteve quase 7% dos votos válidos (6 milhões, 575 mil e 393 votos) para presidente,  firmando o PSOL como uma alternativa à esquerda do PT. Eu fui reeleita deputada federal, agora pelo PSOL, com 185 mil e 71 votos, no Rio foi reeleito Chico Alencar com 119 mil e 69 votos e em São Paulo Ivan Valente foi reeleito  com 83 mil e 719 votos. Esta foi a primeira bancada do PSOL na Câmara Federal, a qual tive a honrosa tarefa de ser a primeira a liderar. 

Nas eleições seguintes, em 2010, foi Plínio quem disputou a presidência pelo partido, obtendo uma votação bem menor que a de Heloísa, com 886 mil e 816 votos (0,87% dos votos válidos) mas que encantou especialmente a juventude com seu estilo combativo e ao mesmo tempo poético. Em 2014 foi a minha vez de disputar a presidência, chegando a 1 milhão, 612 mil e 186 votos (1,55% dos válidos) e, em 2018, o PSOL escolheu Guilherme Boulos que obteve 617 mil e 122 votos ( 0,58%) 

A importância do PSOL hoje 

Esta parte da história já é bem conhecida pelos militantes do PSOL, entretanto  é necessário retomar as suas lições, analisar o que nos trouxe até aqui e como prosseguir. Estamos em um outro momento histórico, no qual a extrema direita tem uma força que em 2003 ninguém imaginava que poderia atingir e que nos impõe a necessidade de unir forças com o PT e outros partidos de centro-esquerda para enfrentá-la. Em 2022, pela primeira vez o PSOL não teve candidato a presidente, corretamente apoiando Lula desde o 1º turno, tendo em vista a dificuldade que seria vencer Bolsonaro. 

Desde o  livro de Robaina, que mencionei no início deste texto, até o livro que eu mesma escrevi e lancei em fevereiro de 2024 (A Alemanha da revolução ao nazismo: Reflexões para a atualidade, Ed. Movimento), nós do Movimento Esquerda Socialista temos trazido para o debate reflexões acerca das lições do processo político que levou a social democracia alemã ao poder e depois acabou conduzindo a Alemanha ao nazismo. As análises de Rosa Luxemburgo, assassinada em janeiro de 1919 pelas milícias nazistas com a conivência do governo social-democrata, e de Trotsky, assassinado a mando de Stalin em 1940 por Ramón Mercader, agente da polícia secreta soviética, entre outros marxistas, mostraram com precisão as consequências das capitulações e traições da esquerda adaptada à ordem e de como a extrema direita se fortalece quando a esquerda abandona suas bandeiras e se dedica a governar administrando os interesses do capital. Guardadas as devidas proporções, a analogia é muito útil para entender o que ocorreu no Brasil de 2003 até 2018 quando Bolsonaro venceu as eleições presidenciais. 

Como escreveu Robaina na introdução ao seu livro: 

De nossa parte, quando reafirmamos a atualidade do marxismo não negamos a defesa de reformas, isto é, de melhorias nas condições de vida dos trabalhadores que deixam o poder nas mãos da classe dominante. Porém, o marxismo sabe que a burguesia dá com uma mão  e tira com a outra, de forma que as melhorias conquistadas nas condições de vida devem ser utilizadas numa perspectiva de transformação radical da sociedade e não como negação da revolução social anticapitalista. Não se trata de apresentar uma visão fechada e acabada dessas discussões. Como dizia Lênin, o marxismo não é um dogma, mas um guia para a ação. O pensamento político marxista é aberto. Trata de analisar a situação concreta, síntese de múltiplas determinações, unidade do diverso. Mas aberto, antidogmático, não quer dizer negação da luta de classes, do caráter irreconciliável entre os interesses dos trabalhadores assalariados e dos capitalistas e de uma posição clara nessa disputa. Essa reivindicação é nosso alicerce.

Essa reivindicação segue sendo o nosso alicerce, e acreditamos que deve ser também o alicerce do PSOL, como foi na sua fundação, a razão de sua existência e de sua importância para a classe trabalhadora, com suas novas formas de luta – que além de sindicais e populares são também ambientais, antirracistas, feministas, antilgbtfóbicas. Preservar a independência do PSOL, seu caráter classista, anticapitalista e ecossocialista é nossa tarefa nestes 20 anos da nossa legalização.


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