Água para as bigtechs e estiagem para o povo: o que não dizem sobre o mega data center do TikTok no Ceará
Temos a falsa impressão de que a internet, as inteligências artificiais e os nossos dados residem em um plano imaterial, abstrato e invisível. Mas por trás de tudo isso há uma infraestrutura física, territorializada e com uma fome insaciável por recursos naturais
A escolha da cidade de Caucaia para a implementação da megaestrutura — são mais de doze hectares de extensão — que vai abrigar um mega data center, provavelmente ligado ao TikTok, não é nem um pouco aleatória. Caucaia faz parte da Região Metropolitana de Fortaleza, de onde saem inúmeros cabos submarinos de fibra óptica que conectam o Brasil a outros continentes. A proximidade com os pontos de chegada desses cabos é altamente valorizada por plataformas que exigem velocidade, como redes sociais e serviços de streaming. Além disso, a proximidade com a Zona de Processamento de Exportação do Pecém facilita o acesso a benefícios fiscais e à flexibilização da burocracia para empresas cujo foco já é, em grande parte, a exportação. Isso sem falar no potencial energético e industrial da região. Uma mina de ouro para as big techs — mas só mesmo para as big techs.
Para justificar a implementação do “fazendão de computadores”, a empresa promete a geração de empregos. No entanto, em toda a América Latina há relatórios que apontam que os empregos gerados por datacenters são poucos, incertos e, sobretudo, precários. A estrutura demanda pouquíssima mão de obra humana a longo prazo para se manter funcionando — é, no fim das contas, uma infinidade de máquinas — o que significa expropriação do território e de seus recursos, para não mencionar os riscos ainda desconhecidos, tudo isso gerando, na prática, pouquíssimo “retorno” concreto para a população local.
Apesar disso, os impactos negativos serão sentidos. Temos a falsa impressão de que a internet, as inteligências artificiais e os nossos dados residem em um plano imaterial, abstrato e invisível. Mas por trás de tudo isso há uma infraestrutura física, territorializada e com uma fome insaciável por recursos naturais. Para evitar o superaquecimento das supermáquinas, sistemas de refrigeração que consomem milhões de litros de água são implementados — e boa parte dessa água é perdida por evaporação. Isso sem falar que esses datacenters são verdadeiras usinas de consumo de energia. A construção e a manutenção de seu funcionamento também dependem de uma cadeia global de suprimentos, o que implica na extração de lítio, níquel, cobalto e outros recursos naturais. É o velho mito do progresso, embalado pelo capital cosmopolita: “sua pátria é onde ele pode render bem”.
Toda essa água necessária para o funcionamento do empreendimento em Caucaia provavelmente acabará vindo do Lagamar do Cauípe e do Açude de Sítios Novos, que fornecem água para as termelétricas do Porto do Pecém, mas também servem para o abastecimento e a atividade pesqueira das comunidades locais. Caucaia esteve em situação de emergência por estiagem e seca em 16 dos últimos 21 anos — e vale mencionar que 5 dos 22 projetos em fase de autorização no Brasil estão localizados em cidades sistematicamente afetadas pela falta de água.
Como se não bastasse tudo isso, o local previsto para a implementação do datacenter sobrepõe os territórios Pitombeiras, Matões e Cauípe, habitados há gerações pelo povo Anacé. Caucaia é a cidade que concentra o maior número de quilombolas do estado do Ceará, com 11 quilombos espalhados pelo território, e abriga diversos outros povos tradicionais cuja relação com o território é constitutiva de sua identidade sociocultural. Há três décadas vimos a promessa de transformação com a implementação do Porto do Pecém, mas o que se viu, na verdade, foi a manutenção da pobreza e o aprofundamento das desigualdades. É estiagem para o povo e muita água e dinheiro para os ricaços.
Essa cadeia de violações de direitos não se restringe à Caucaia, nem à realidade brasileira. Ela é especialmente sentida nos países da periferia capitalista: trata-se de um padrão global de exploração, e nesse caso, um sintoma dos acordos tecnológicos entre Brasil e China, que seguem a lógica imperialista de uso da força econômica chinesa para ampliar a dependência de países periféricos, ao mesmo tempo que exploram nossos recursos naturais e nossa mão de obra, não se trata de acordo “entre iguais”. No Chile, um datacenter do Google foi autorizado a extrair 7 bilhões de litros de água por ano, um volume colossal e absurdo, em um país que enfrenta uma seca severa e prolongada. Mas nenhuma dessas empreitadas passa sem indignação. Se no Chile a sociedade civil, ambientalistas, ativistas por direitos sociais e territoriais, movimentos sociais organizados, fez o tribunal ambiental chileno revogar a permissão do Google para a construção do projeto, no Brasil não há de ser diferente: somos muitos — e organizados, podemos tudo.