Aldeia Três Soitas: a luta Kaingang por território em Santa Maria
Aldeia Três Soitas

Aldeia Três Soitas: a luta Kaingang por território em Santa Maria

Em meio a retrocessos legislativos e promessas quebradas, comunidade reafirma que a terra é sagrada e inegociável

Fotos: Claudia Elisa Lanes D. Souza

Na manhã de 9 de junho de 2025, comunidades indígenas bloquearam rodovias em diversas regiões do país em protesto contra o avanço de projetos que ameaçam os direitos territoriais e ambientais dos povos originários. No Rio Grande do Sul, as mobilizações ocorreram em cidades como Iraí, Gentil e Erebango, com bloqueios parciais na BR-285, BR-386 e RS-135. Os protestos foram uma resposta direta ao Projeto de Lei 2.159/2021, apelidado de PL da Devastação, que flexibiliza o licenciamento ambiental e exclui comunidades indígenas não demarcadas do direito à consulta prévia. Também foram alvo da mobilização o PDL 717/2024 e a Lei 14.701/2023, que retomam a tese do marco temporal — segundo a qual só teriam direito à terra os povos que estivessem em seus territórios no dia 5 de outubro de 1988, desconsiderando expulsões, remoções forçadas e processos históricos de violência.

“Hoje o movimento indígena está na rua”, disse o Cacique Natanael Claudino, da Aldeia Três Soitas. “Um governo homologa duas terras e a CCJ do Senado revoga. Um faz, outro desmonta.” A frase resume a sensação de ciclo contínuo de promessas e retrocessos que acompanha a relação dos povos indígenas com o Estado brasileiro.

Ocupação, negociação e revogação

A comunidade ocupava, desde 1998, uma área de 4 hectares atrás da rodoviária de Santa Maria. O terreno tinha 12 proprietários e estava em litígio. Em 2018, após anos de articulação com o Ministério Público e a Prefeitura, foi firmado um acordo para a transferência da comunidade para uma nova área de 24 hectares na área rural de Santa Maria, RS, no distrito de Arroio Grande, na Estrada Canudos. Atualmente, a Aldeia Três Soitas (kētyjūg tēgtu, em kaingang) é habitada por 16 famílias, total de 69 pessoas, entre adultos e crianças. Além disso, o residente mais velho possui apenas 45 anos. A prefeitura chegou a emitir um decreto cedendo o uso da área à comunidade indígena.

O problema é que o decreto perdeu validade após dois anos e não foi renovado. Além disso, o município voltou atrás no compromisso de abater dívidas dos antigos proprietários. “Eles traíram o acordo”, resume Natanael. Como consequência, os proprietários desistiram da doação. Agora, a aldeia articula diretamente com eles para que a área seja doada à FUNAI, garantindo sua proteção como terra indígena.

“A gente foi ver outras áreas, mas quando chegamos aqui, sentimos que era aqui que íamos ficar”, relata o Cacique. O sentimento de pertencimento ao local foi decisivo para a escolha do novo território.

Natanael expõe que as disputas territoriais sempre foram impostas aos povos indígenas, e que estas imposições perpetuam-se até os dias de hoje: “E a gente sabe que existe hoje uma colocação através de nós, povos indígenas, que o Brasil é terra indígena. E Santa Maria é terra indígena. Só os ‘nossos’, eu digo entre aspas, ‘nossos governantes’ colocam essas delimitações para o nosso povo. Eles dizem: ‘não, tu não pode ultrapassar daqui para lá’. O espaço sempre foi nosso. E a gente sabe, e hoje a gente está num lugar aqui, que sempre foi nosso. E alguém ganhou com isso, alguém tirou nosso povo daqui. E para voltarmos, alguém tinha que pagar, alguém tinha que comprar de novo. E sempre foi assim, a nossa história sempre foi assim. Quando a gente volta no lugar que foi dos nossos antepassados. Não foi um erro nosso, não foi um descuido nosso, do nosso povo. Nós fomos tirados do lugar e colocados em outro lugar”.

O líder Cacique reafirma seu compromisso com o seu povo pela luta por seus direitos ancestrais do território: “E querendo ou não, nosso povo sempre vai voltar no mesmo lugar [Santa Maria]. Pode passar anos, podem passar séculos, mas o povo sempre vai voltar no mesmo lugar”. Além disso, quanto à sua aldeia, ainda há também uma luta por visibilidade: “Então, dessa aldeia, no caso, essa questão de invisibilidade, principalmente em Santa Maria, ainda é forte. Continua sendo forte essa questão. E a nossa luta sempre foi isso, dar essa visibilidade para o nosso povo, para a nossa luta em Santa Maria”.

Produção para subsistência e impacto climático

A produção agrícola na aldeia é voltada ao consumo próprio: batata-doce, mandioca, milho e feijão. A principal fonte de renda é o artesanato, feito com materiais como taquara e cipó. Mas a coleta está cada vez mais difícil: o cipó e a taquara sumiram de boa parte das margens do rio, e às vezes é preciso percorrer quase 200 km para conseguir os materiais.

Nos últimos dois anos, a comunidade perdeu mais de 5 mil pés de mandioca por causa da estiagem. Em maio de 2025, chuvas intensas e deslizamentos quase destruíram a vertente que abastece a aldeia. Já em 2024, a comunidade ficou isolada por 16 dias devido ao evento climático extremo que atingiu o Rio Grande do Sul em maio, recebendo ajuda por helicóptero. “Se tivesse chovido mais dois dias, a água levava tudo”, conta Natanael.

Apesar das adversidades, o Cacique defende o cuidado com o ambiente. “Aqui era campo de gado. A gente pegou essa área muito degradada. Hoje o mato está voltando, e tem quem critique isso. Mas é o nosso jeito. Nós falamos com a árvore antes de cortar. Pensamos no futuro dos nossos filhos”.

Escola e autonomia pedagógica

A Escola Estadual de Ensino Fundamental Indígena Augusto Ope da Silva, escola da aldeia, foi criada em 2011 e reconhecida oficialmente em 2012. “A nossa escola foi criada em 2011. E foi autorizada em outubro de 2012.” O ensino é bilíngue, com o Kaingang como primeira língua. “Aqui o português é a segunda língua”, afirma Natanael. “Em muitas escolas indígenas o Kaingang é a segunda língua. Nós adotamos aqui o português como segunda língua”. O Cacique destaca que as formas de apagamento cultural, mesmo que disfarçadas, ainda estão presentes nos dias de hoje: “Nas primeiras escolas indígenas dos anos 40, nossos avós eram proibidos de falar Kaingang. O mesmo sistema de lá atrás, dos nossos pais, eles tentam usar hoje”.

Claudia Elisa Lanes D. Souza

O currículo é discutido com a comunidade, pois “O Estado manda o programa pronto”, é o mesmo programa de ensino para escolas não indígenas. Ele explica que as alterações são realizadas na aldeia de forma coletiva: “A gente pega esse material. Senta com a comunidade, com a comunidade total e a comunidade escolar, que são os professores.”. O Cacique destaca: “O Estado tem que nos respeitar com isso, né. E aí a gente já coloca: ‘não, o índio tem direito a isso e direito a aquilo’. E o Estado sabe disso, o sistema que a gente tanto fala. O sistema sabe disso, que a gente pode se organizar do jeito que a gente quer. Mas ele não faz, ele não diz que deixa ele se organizar. Ele já manda pronto para nós. A gente se adapta e a gente faz dessa forma”.

A escola também trabalha como espaço de transmissão oral da história do povo Kaingang: “A gente ensina nossos filhos para que não sejam enganados como foram nossos avós. Contamos a nossa história para eles saberem de onde vieram”. O entrevistado também destaca que os professores da escola são indígenas, com exceção da diretora.

Além disso, a escola contribui para a relação com o ambiente: “A escola também ensina a cuidar da terra. A gente leva eles pra ver as plantas, os bichos, as águas. Isso é aprender também”.

Crítica à política institucional

Natanael é crítico à forma como os governos lidam com os povos indígenas. “Eles nos procuram quando precisam, mas depois esquecem que existimos.” Ele observa que as estruturas políticas raramente servem aos interesses reais das comunidades. “Hoje a gente tem um governo de esquerda que diz nos representar. Mas do outro lado, na hora de decidir, eles se dobram. Um governo homologa, outro derruba. Um faz, outro desmonta. E quem sofre é a nossa comunidade.”

Mesmo com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, pouco mudou na prática. “Hoje temos o Ministério dos Povos Indígenas, mas é só para bonito. A ministra sabe das coisas, mas lá dentro dizem: ‘quero fazer, mas não posso’. O sistema segura. O sistema prende.”

Ele critica ainda a ilusão de participação: “O sistema diz que é uma máquina. Mas quem opera a máquina é gente. Dá para mudar. Só que o sistema faz a gente andar em círculo. A nossa história é de andar em linha reta.”

Natanael aponta que a solução está na base. “A gente tem que se organizar, educar os nossos, preparar as crianças para entender o mundo. Para que não sejam manipulados como nossos avós foram.”

Ele reforça o papel da escola nessa formação: “Nossos avós foram manipulados. Acreditaram que não dava. Hoje a gente luta para que nossos filhos não sejam manipulados também. A escola serve para isso.”

Apesar das dificuldades, o Cacique reafirma o compromisso com a permanência: “Nós sempre estivemos aqui. E sempre vamos continuar aqui. Santa Maria é terra indígena. A Terra é nossa Mãe. É ela que garante o futuro.”


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