A injustiça reina sob pilhas de corpos pretos, pobres e periféricos na Baixada Santista

A injustiça reina sob pilhas de corpos pretos, pobres e periféricos na Baixada Santista

A validação do arquivamento, pelo Judiciário, da maioria dos casos das 84 mortes provocadas pelas operações Escudo e Verão escancara a injustiça

Carla Clemente 24 jul 2025, 11:03

“Nem tudo que é enfrentado é mudado, mas para mudar, somente enfrentando”  James Baldwin 

A validação pelo Judiciário do arquivamento das investigações, noticiada pela imprensa a partir do 03 de julho de 2025, confirma o que Marcelo Yuka já havia denunciado: “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”. As forças de repressão do Estado e todo o sistema judiciário estatal são estruturalmente comprometidos com essa política. Assim deve ser compreendido o arquivamento dos poucos casos que foram investigados nos assassinatos cometidos por forças policiais na Baixada Santista, nos períodos de julho de 2023 a abril de 2024.

Segundo o relatório Mapas da (In)Justiça (FGV Direito SP – 2025), que analisou  859 inquéritos de Mortes Decorrentes de Intervenção Policial ocorridas entre 2018 e 2024 no Estado de São Paulo, 62% das vítimas eram negras, e nenhum policial foi responsabilizado nesses casos (1). A pesquisa, baseada em documentos oficiais do TJ-SP, MPSP, SSP‑SP e PC‑SP, está disponível por meio da plataforma interativa Mapas da (In)Justiça (1) e revela um cenário que certamente é ainda mais grave, pois sabemos que os casos existentes são mais numerosos que os que são de alguma forma registrados.

Na Baixada Santista, as ações da chamada Operação Escudo, segundo o governo, “são deflagradas todas as vezes nas quais criminosos atentam contra o Estado”, e a Operação Verão tem por objetivo “aumentar a percepção de segurança, objetivando a preservação da ordem pública nos municípios do Litoral Paulista em período de excessivo aumento populacional” (2).  

A Operação Escudo tratou-se de uma vingança da Polícia Militar contra a morte de um soldado da ROTA em uma ação policial no Guarujá em julho de 2023. Isso ficou evidente no Twitter do Secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, que afirmou: “Nenhum ataque a policial ficará impune” (3). É importante destacar ainda que, diferentemente do que afirma o governo, grandes efetivos e operações semelhantes à Operação Verão e Escudo estão associados a violações de direitos humanos, sem significativas reduções de delitos em geral.

Durante as operações Escudo e Verão, executadas na Baixada Santista em 2023 e 2024, foram registradas oficialmente 84 mortes decorrentes de ações policiais, embora alguns relatos apontem que o número de vítimas foi maior (4). Quando o número oficial era de 56 mortes, Guilherme Derrite declarou que “nem sabia, pois não faz essa conta”, demonstrando descaso diante do elevado índice de letalidade policial na região (5).

A conta que Derrite não fez — e não faz — é a das vidas massacradas. Lembremos de Hildebrando e Davi, duas vítimas de execuções brutais. Eles foram assassinados pelas forças policiais do Estado de São Paulo no dia 7 de fevereiro de 2024. O que os números ou estatísticas não refletem é que se trata de pessoas, com nomes, histórias e sonhos.

A mãe de Hildebrando, em depoimento ao então ouvidor Cláudio Silva, contou que havia acabado de chegar do trabalho, por volta das 19 horas, e estava na sala com outro filho, a namorada dele e uma criança. Hildebrando estava no quarto dos fundos. Rapidamente, as viaturas chegaram e os policiais invadiram a residência, perguntando sobre os cômodos. Ela informou que, em um deles, havia uma criança de 8 anos e, no outro, ao fundo, estava seu filho, deficiente visual e com depressão severa. Pediu aos policiais que tivessem cuidado para não assustá-los.

Os policiais entraram e logo se ouviram tiros, ela começou a gritar e os policiais a puxaram violentamente para fora da casa, bloqueando a entrada, enquanto os disparos seguiam. Em seu relato, a mãe contou que “Hildebrando estava tomando café da tarde, e por isso estava com uma caneca na mão. Quando foi alvejado, a caneca teria voado e os cacos ficaram espalhados pelo quarto”.

Ele estava com seu amigo de infância, Davi, que, segundo relatos, era como se fosse da família e tratava a mãe de Hildebrando como sua própria mãe. Davi começou a trabalhar cedo, atendendo carros e bicicletas em frente a uma padaria. Depois, tornou-se funcionário do local e mantinha boa relação com todos, inclusive com policiais que ali frequentavam. Davi e Hildebrando tinham o sonho de serem cantores e, por isso, costumavam se encontrar em casa para ensaiar, escrever e gravar algumas canções. O ouvidor da polícia confirmou que nenhum dos dois jovens tinha antecedentes criminais (6).

  A Operação Verão/Escudo já é considerada a mais letal da história da Polícia Militar de São Paulo (com evidências de execução sumária e tortura, os casos compõem o relatório elaborado pela Ouvidoria da Polícia de São Paulo) desde os Crimes de Maio, em 2006 (7), que deixaram mais de quinhentas mortes, dando origem ao Movimento Mães de Maio, organizado por familiares e amigos das vítimas em busca de justiça. Lembremos de mais vítimas esquecidas pelo secretário, pelo governador, pelo Ministério Público e pelo Judiciário, além da Corregedoria, que muitas vezes trata os denunciados com coleguismo.

Falemos do menino de 4 anos, Ryan da Silva Andrade Santos, que estava brincando em frente da casa de sua prima com outras crianças e levou um tiro na barriga disparado pelo PM Clóvis Damasceno de Carvalho Júnior (8). Além desse brutal assassinato, o Batalhão de Choque da PM tentou impedir o cortejo em homenagem a Ryan. Meses antes, o pai do menino, Leonel Andrade Santos, também tinha sido assassinado pela Polícia Militar.

Essas operações, de responsabilidade do Governo do Estado, portanto do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), foram comandadas pelo ex-policial militar, deputado federal pelo PL e atual Secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, o qual já afirmou: “ser vergonha para um policial não ter ao menos três homicídios em seu currículo” (9). Importante destacar que Tarcísio de Freitas foi denunciado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU por diversas organizações, em 2024, por conta dessas ações (10).

A violência policial é um projeto de Estado. Por isso, muitos casos não são investigados e, nos poucos que são, não há punição. Dos crimes cometidos pela PM na Baixada Santista, onze inquéritos foram arquivados. Dentre esses, sete denúncias contra 13 policiais foram arquivadas pelo MPSP, decisão tomada pelo Procurador-Geral do Estado, Paulo Sérgio de Oliveira e Castro, e validada pelo Poder Judiciário (11).

No período da ditadura civil e militar, a Polícia Militar desempenhou um serviço crucial, com fortes repressões, vigias, prisões, perseguições, torturas, assassinatos e desaparecimentos de pessoas. Foi um período em que não houve punição para nenhum responsável por nenhuma das enormes atrocidades cometidas. E, mesmo com o fim da ditadura, a força militar ainda continua organizada, como se vivêssemos em um país em guerra civil ou sob um Estado totalitário.

Não é dicotômico que essa mesma polícia seja um braço forte do bolsonarismo. No governo de Jair Bolsonaro (PL), tornou-se ainda mais evidente a ideologia impregnada na corporação, expressa com orgulho por muitos policiais em defesa de pautas que fazem parte da agenda fascista no país. Além disso, cada vez mais policiais militares vêm ocupando cargos eletivos.

Na atual conjuntura, segundo relatório da Oxfam de 2024, 63% da riqueza do país está nas mãos de 1% (12). Para manter essa concentração, as forças do capital (ricos e poderosos do Brasil) pressionarão para um aumento ainda maior da retirada de direitos, precarização do trabalho e repressão violenta. 

A mesma polícia que mais mata também é a que mais morre. Dados da segurança pública de SP e do Ministério Público mostram que, em 2024, houve um aumento de 133% de mortes em serviço desde 2022 (13). A desmilitarização da polícia é urgente e precisa ser construída como uma agenda prioritária dos movimentos sociais e demais organizações que buscam construir um país realmente democrático.

* Carla Clemente é graduada e especializada em Filosofia e militante feminista.


Notas e links

(1) FGV – Mapas da (In)Justiça
https://direitosp.fgv.br/projetos-de-pesquisa/mapas-injustica

(2) Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo – Nota oficial sobre Operação Verão
https://www.ssp.sp.gov.br/noticia/56646
https://www.ssp.sp.gov.br/transparencia/dados-operacao-verao

(3) Guilherme Derrite no Twitter — https://www.estadao.com.br/sao-paulo/violencia-no-guaruja-entenda-o-que-se-sabe-sobre-as-mortes-na-cidade-apos-pm-da-rota-ser-baleado-nprm/?srsltid=AfmBOoqcI_qJdBGOiwGRgEDS2v04Whi2yJ7jwogH3RKhRFAtlBw_pN1s 

(4) Conectas – Operação Escudo e Verão, 84 mortos
https://www.conectas.org/noticias/operacao-escudo-verao-um-ano-de-violencia-e-letalidade/

(5) Derrite diz “nem sabia, pois não faz essa conta” – Metrópoles
https://www.metropoles.com/sao-paulo/nem-sabia-que-eram-56-diz-derrite-sobre-numero-de-mortos-no-litoral

(6) Ouvidoria – Agência Brasil confirma que vítimas não tinham antecedentes
https://www.atribuna.com.br/noticias/policia/jovem-morto-pela-rota-era-deficiente-visual-e-tomava-cafe-quando-foi-alvejado-diz-familia-1.405471

(7) Conectas – Relatório aponta operação mais letal desde 2006
https://conectas.org/noticias/operacao-escudo-verao-um-ano-de-violencia-e-letalidade/

(8) Menino Ryan, 4 anos, morto por PM – Metrópoles
https://www.metropoles.com/sao-paulo/exclusivo-laudo-confirma-que-pm-matou-menino-ryan-de-4-anos-em-sp

(9) Ponte Jornalismo – Derrite: “vergonha não ter 3 homicídios”
https://ponte.org/pm-da-rota-que-disse-ser-vergonha-nao-matar-3-em-5-anos-de-rua-e-preso-administrativamente/

(10) Denúncia à ONU
https://conectas.org/noticias/organizacoes-denunciam-operacao-escudo-a-comunidade-internacional/

(11) CNN Brasil – arquivamento de inquéritos pelo MPSP
https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2025/07/03/mp-encerra-investigacao-sobre-operacoes-da-pm-que-deixaram-84-mortos-na-baixada-santista.ghtml

 (12) Relatório da Oxfam Brasil – desigualdade de renda
https://www.oxfam.org.br/justica-social-e-economica/

(13) Fórum Brasileiro de Segurança Pública (indicador de mortes de policiais)
https://forumseguranca.org.br/publicacoes/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/


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