Ghassan Kanafani: um revolucionário contemporâneo, 53 anos após seu martírio
O revolucionário assassinado em 1972 foi um dos fundadores da Frente Popular pela Libertação da Palestina (FPLP)
Em 8 de julho de 1972, o palestino Ghassan Kanafani foi vítima de um atentado terrorista israelense em solo libanês. Ao ligar seu carro nas ruas de Beirute, a bomba implantada pelo Mossad explodiu e assassinou o escritor. Assassinou o líder político. Assassinou o revolucionário. Mas não assassinou seus escritos, não assassinou sua política, não assassinou a revolução – pois ideias e ideais têm o insistente costume, ao longo da história, de sobreviver à aniquilação daqueles que os impulsionam.
Hoje, 53 anos após seu martírio, dizer que Ghassan Kanafani é um revolucionário contemporâneo não é um exagero elogioso. É uma certeza histórica. Um dos fundadores e liderança da Frente Popular pela Libertação da Palestina (FPLP), Kanafani foi, ao mesmo tempo, escritor, dirigente político e historiador da causa palestina – características, todas, que se condensam na figura do revolucionário.
Apontar uma ou outra de suas obras como mais importante é um exercício que está condenado ao equívoco. Mas, certamente, uma de suas contribuições mais significativas reside na análise feita do processo revolucionário que ocorreu na Palestina na segunda metade dos anos 1930 e que deu origem ao livro: “A Revolução Palestina de 1936 a 1939 – Antecedentes, detalhes e análise”.
Escrito em 1969, diretamente do exílio no Líbano, o livro tem duas edições publicadas no Brasil, uma pela Editora Sundermann e outra, pela Expressão Popular. Sob condições dificílimas de pesquisa e apenas dois anos após o regime sionista ter estendido sua ocupação criminosa a Gaza e à Cisjordânia com a guerra de 1967, Kanafani nos oferece mais do que uma sistematização histórica daquele período: oferece, com toda sua capacidade intelectual, bagagem teórica e elaboração política, uma análise marxista daqueles turbulentos e decisivos anos.
Turbulentos, porque convulsionaram uma Palestina então administrada a ferro e fogo pela Inglaterra e sob intenso processo de migração e colonização sionista. E decisivos, pois naquele processo de lutas estava em jogo o destino da causa palestina. A revolução de 1936 foi, nas palavras de Kanafani e muitos outros autores, o momento em que, até hoje, a Palestina esteve mais próxima de sua libertação. E a derrota daquela revolução pavimentou de forma irredutível o caminho para a autoproclamação do movimento sionista de Israel enquanto um Estado na Palestina histórica.
Essa é uma das conclusões fundamentais do livro: só foi possível ao movimento sionista criar artificialmente sua entidade-Estado em 1948 porque, uma década antes, a revolução palestina havia sido esmagada, dizimada, derrotada e desmantelada. Isso, por si só, nos dá a dimensão da importância da leitura deste livro e da centralidade de seu estudo para a compreensão da conjuntura atual. Até porque, mesmo entre parte das pessoas que se interessam pela causa palestina, é, ainda, pouco comum o estudo do período pré-Nakba. E, nesta obra, Kanafani nos fornece, em um pequeno livro, um material vasto e rico de informações e análise sobre uma Palestina que se levantou contra dois algozes – o domínio britânico e a colonização sionita – na tentativa de inscrever seu próprio capítulo nas páginas tortuosas da história.
A riqueza de informações e dados já seria o bastante para tornar o livro de Kanafani indispensável. Mas o que o torna uma leitura mandatória para todos nós, militantes revolucionários e socialistas, é o critério marxista de análise que Kanafani imprime em suas páginas. Partindo de um estudo profundo sobre as relações entre as forças produtivas na Palestina dos anos 1930, Kanafani explicita de forma muito didática e militante as relações complexas entre o governo imperial britânico na Palestina, o sionismo (sua burguesia e seu proletariado) e a sociedade palestina na época (sua elite, que ele qualifica como “feudal-clerical”, sua incipiente burguesia urbana e seu proletariado e campesinato).
É na relação entre as classes sociais e nas condições materiais de produção e reprodução da vida que Kanafani baseia sua análise. É na crítica de suas lideranças e seus projetos (ou ausência de projetos) de poder que ele reconstrói a história dos acontecimentos. É pelas lentes da ciência marxista que Kanafani identifica os três inimigos fundamentais que derrotaram a revolução dos anos 1930: o imperialismo britânico, a colonização sionista e as elites e regimes árabes – neste último, inclui-se também a hesitante liderança “feudal-clerical” da Palestina na época, que dançava de forma dúbia entre apoiar a revolução, por não conseguir contê-la, e atuar como um freio às massas diante do Alto Comissariado Britânico. O papel e as deficiências do Partido Comunista Palestino – bem como a política errática da III Internacional sob Stalin -, se bem não constituem o foco da análise de Kanafani, tampouco passam despercebidos em sua obra.
Tivemos, ao longo dos últimos meses, a oportunidade de realizar uma leitura coletiva e estudo aprofundado desta obra de Kanafani entre um grupo de militantes do MES pela Palestina. Uma iniciativa que certamente representa um avanço de nossa construção e intervenção cotidiana na causa, e que, a partir deste texto, esperamos que possa despertar também o interesse do conjunto da militância. Ficamos à disposição para compartilhar este estudo e organizar formações com as diferentes regionais e núcleos que queiram se apropriar desta obra.
Kanafani é um revolucionário contemporâneo porque sua análise marxista da questão palestina segue sendo uma ferramenta indispensável de libertação nacional. Neste dia em que seu martírio completa 53 anos, cabe a nós mantermos suas ideias, estudos e obras mais vivos do que nunca. Ghassan Kanafani, presente!