Lélia Gonzalez – 90 anos: quando a luta negra encontra o marxismo, a ancestralidade e a radicalidade do agora
Sobre o curso “Lélia Gonzales – 90 anos”, realizado no Rio de Janeiro marcando a trajetória da intelectual e militante marxista
Em um momento em que a luta do povo negro faz com que o Brasil reencontre nomes que moveram sua história, o curso “Lélia Gonzalez – 90 anos”, realizado no Rio de Janeiro pelo Espaço Movimento, Coletivo Juntas, Mandato do Professor Josemar, em parceria com o Ilê de Oxum Apara, foi mais que uma atividade formativa. Foi uma vivência ancestral, política e profundamente necessária. Em três dias, corpo, teoria e axé se entrelaçaram na celebração de uma das maiores intelectuais negras da história do país e contou com mulheres negras do Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Recife.
No primeiro dia, conduzido por Zeneide Lima, foi apresentada a trajetória de vida de Lélia Gonzalez, mulher negra, filha da favela, do terreiro e da universidade. Seu contato com o marxismo foi apresentado não como um detalhe, mas como eixo de sua leitura de mundo. Lélia mergulhou na teoria marxista e a utilizou como ferramenta para compreender a formação do capitalismo dependente no Brasil, a persistência da violência colonial e a racialização das relações de produção. Zeneide destacou como Lélia enxergava as estruturas econômicas da sociedade brasileira articuladas ao racismo e ao patriarcado.
Neste dia, também foi retomado o uso do conceito de massa marginal, importante para pensar os sujeitos que não se encaixam nas categorias clássicas da classe trabalhadora, mas que se constituem como força política decisiva: os trabalhadores informais, as mulheres negras das periferias, os corpos subalternizados. Lélia recorre a este conceito como uma chave para interpretar a dinâmica do capital no Brasil e para afirmar que a luta de classes precisa ser compreendida a partir da realidade concreta da população negra.
O segundo dia foi conduzido por Carla Zanella e teve como centro o feminismo de Lélia Gonzalez, pensado desde os territórios do corpo, da experiência e da luta. A partir da vivência da mulher negra, Lélia constrói um feminismo que recusa ser importado ou adaptado. Ela o cria desde as raízes da experiência amefricana, entendendo que o corpo da mulher negra é o ponto de partida para pensar a totalidade da sociedade. É nesse corpo que se interseccionam os efeitos da exploração de classe, do racismo e da opressão de gênero.
O destaque do dia foi a apresentação do conceito de amefricanidade, elaborado por Lélia para nomear a cultura, o saber e a resistência das populações negras da América Latina e Caribe. A amefricanidade rompe com a lógica colonial que marginaliza a experiência negra e afirma um lugar de potência civilizatória, intelectual e política das culturas afro-diaspóricas.
Ao colocar a amefricanidade como eixo de um feminismo comprometido com a transformação radical da sociedade, Lélia Gonzalez nos oferece as bases para a construção de um feminismo negro marxista, que compreenda o racismo como motor do capitalismo latino-americano e a experiência negra como chave de reorganização do mundo.
O terceiro dia teve como cenário o Ilê de Oxum Apara, fundado pelo Babalorixá Jair de Ogum, território de axé e resistência, frequentado por Lélia em vida. A atividade contou com a presença de mulheres do Juntas, do Emancipa e do MES/PSOL, além do deputado estadual Professor Josemar, do Rio de Janeiro. Foi a partir de seu conhecimento sobre a disputa jurídica envolvendo o acervo de Lélia Gonzalez que a aproximação com o Ilê aconteceu. A família da intelectual busca transferir o acervo para a Fundação Getúlio Vargas (FGV), ameaçando entregar à lógica do capital uma herança que foi doada, em vida, por Lélia a um espaço de luta coletiva e ancestralidade.
Em vida, Lélia Gonzalez doou seu acervo pessoal ao Ilê de Oxum Apara, confiando que essa comunidade tradicional de matriz africana, ou seja, território político, simbólico e negro guardaria com respeito e compromisso aquilo que produziu. Não há incoerência entre vida e morte. Ao contrário: há continuidade e coerência política. Lélia sabia o que fazia. Escolheu que seus arquivos, alguns inéditos, não fossem explorados pelo capital, mas servissem à formação política do povo negro, à mobilização coletiva, ao enfrentamento das estruturas de dominação.
Pela manhã, as participantes foram recebidas com um café da manhã coletivo. A seguir, uma roda de conversa foi conduzida por Silvana Santana, responsável por zelar pelo acervo. As mulheres presentes tiveram acesso a cartas e documentos de Lélia, em um momento de profunda emoção. Na sequência, o almoço coletivo, preparado com o cuidado que expressa o sentido da alimentação para os povos de matriz africana: ato de compartilhar, de cuidadoe afirmação da coletividade. Comer junto, nesses contextos, não é intervalo — é ritual de ligação entre ancestrais e vivos.
A parte da tarde foi marcada por uma visita guiada ao Ilê, espaço que referencia os orixás e os povos africanos, e que atua como território político de resistência da cultura ancestral negra. Em seguida, as participantes puderam visitar o local onde é guardado o precioso acervo de Lélia Gonzalez, conservado com imenso cuidado, mas sem qualquer apoio financeiro do Estado.
A atividade encerrou com dois momentos de força simbólica inegociável: a plantação da árvore Baobá e o assentamento da ancestral Lélia Gonzalez naquele solo sagrado. O Baobá, nas culturas africanas, é símbolo da ancestralidade, da sabedoria e da resistência ao tempo. Plantá-lo é um gesto de enraizamento da história. O assentamento, por sua vez, é o momento em que a energia de uma ancestral ou orixá é fixada na terra, dando-lhe morada e permanência. Silvana aguardou, com respeito e tempo, para realizar esse assentamento na presença de um coletivo de mulheres negras — gesto que honra Lélia em sua totalidade.
O Ilê de Oxum Apara deseja que o acervo seja disponibilizado para pesquisas, para a formação política dos movimentos, para a juventude negra, o que já vem fazendo há quase 30 anos, desde que recebeu a doação, mas precisa de apoio material para isso. O que está em disputa é muito mais que um conjunto de documentos: é o sentido político do legado de Lélia Gonzalez. Se será capturado para ser domesticado e transformado em fetiche acadêmico, ou se será cuidado pelas mãos do povo preto, em coerência com o que a própria Lélia construiu.
Revisitar Lélia Gonzalez, nesses tempos, não é apenas homenagear uma referência. É reconhecer que sua obra segue urgente, viva, estratégica. Em um momento em que muitas lutas da negritude ganham visibilidade, mas em que a lógica do capital se aprofunda em assassinar nossos corpos para garantir a máxima exploração, retomar Lélia é tarefa inadiável. Todas as organizações marxistas comprometidas com a revolução brasileira precisam entender que não há transformação possível sem colocar no centro o povo negro — em especial, as mulheres negras. A construção de um feminismo marxista negro, radical e amefricano, é tarefa nossa — aqui e agora. E a obra de Lélia Gonzalez é pedra fundamental dessa construção.