Nicarágua e o Estigma das Ditaduras
Voltar a ver o esquecido e descobrir ali os caminhos do futuro e não só a narrativa do passado, é o segredo mais rico da história.
Já se passaram 46 anos e ainda consigo sentir a brisa fresca no rosto quando, em um veículo aberto, entramos em Manágua liderando uma imensa fila de caminhões, caminhonetes, ônibus e todo tipo de veículo, transportando centenas de rapazes e moças de diferentes origens sociais, com armas diferentes e roupas variadas. Após os combates em Manágua, recuamos e, com essas forças, lutamos na Meseta de los Pueblos, conseguimos a libertação de Jinotepe e a emblemática tomada de Granada. Ao passar pelo “Camiño de Oriente”, respirei fundo e pensei nos amigos mais próximos que haviam caído e então escrevi: —Quero que eles sintam nesta lufada de ar este momento mágico que não puderam viver.
O dia 19 de julho, de 1979, foi um dia de júbilo, expresso no dia seguinte e de forma multitudinária na Praça da Revolução: uma representação genuína do povo celebrando o fim da ditadura dinástica que nos havia subjugado pela força das armas, da repressão e das mentiras. Já disse muitas vezes que a vitória não foi apenas militar. Foi acima de tudo uma vitória popular, cidadã, política. As armas foram um meio de enfrentar o modo de operar da ditadura militar, mas o fator decisivo foi a vontade de todo um povo apoiando os guerrilheiros que entravam nas cidades. De nada teriam servido os 110 fuzis com que entramos nos bairros orientais de Manágua, sem milhares de mulheres, idosos, jovens e crianças levantando barricadas, armando-se como podiam, alimentando-nos, dando-nos refúgio. Lutando juntos.

O anterior poderia parecer um fato comum, mas ao examinar a história, constata-se que onde as pessoas não decidiram se unir e lutar, só haveria revés, independentemente de termos rifles poderosos como os FAL. Muitos fatores contribuíram para que o povo lutasse. O cansaço, sim, mas também a convicção da unidade, o consenso entre forças diversas, opiniões contraditórias e perspectivas diferentes. Coragem, sim, e também raiva da boa. Raiva digna. Romper o medo e a opressão interna. A convicção de que, ou acabávamos com a ditadura ou a ditadura nos devorava.
O assassinato de Pedro Joaquín acabou de persuadir os mais acomodados e tímidos de que o momento havia chegado. Até o capital privado deu sua contribuição. Nessa etapa, socialistas, social-cristãos, liberais, conservadores e sandinistas fechamos fileiras. Todos contra a ditadura somozista! A longa luta plural e a vitória que acabou com aquela ditadura estão repletas de muitas luzes e ensinamentos. Os fatores que permitiram que ela se prolongasse por tanto tempo, os pequenos e grandes sucessos e, acima de tudo, os reveses ao longo de tantos anos, estão repletos de sabedoria. Dissecá-los e tirar lições é vital para aqueles que agora, alguns com cabelos brancos, lutamos contra a ditadura de Ortega Murillo.
Nessa luta, existe a tendência simplista de reduzir a luta à busca de culpados e descarregar sobre eles ódio e veneno, como se isso fosse a solução para os nossos males. Os fenômenos políticos e sociais são muito mais complexos e menos previsíveis do que os da natureza. É essencial, sem preconceitos ou interesses particulares, desvendar as causas, os fatores e as condições que favoreceram o atual regime ditatorial, para conjurá-lo no compromisso coletivo que deve conter o projeto futuro. Isso contribuirá de maneira construtiva para a organização das lutas de resistência nas novas condições.

Considero fundamental que investiguemos a relação entre a recorrência das ditaduras na Nicarágua e sua ligação com nossas misérias humanas; os vínculos entre a cultura política e os costumes que subjazem nossos desentendimentos e disputas como povo; e entre os sete pecados capitais destacados por todas as religiões e que também são mencionados nos manuais políticos. Aqueles que têm poder, grande ou pequeno, e não querem perdê-lo, exploram a ganância, a ira, a inveja, a luxúria, a soberba, a gula e a preguiça. Não sei se a soma de todos eles totaliza os ódios, presentes de forma tão massiva que seria preciso perguntar se falta um oitavo nessa lista.
Os autoritarismos de qualquer tipo tão presentes em nossa contemporaneidade, o ódio contra o outro, o diferente, aquele que não pensa como eu, provêm de outra cultura, de outra história. São armas letais usadas pelos poderosos. As provas são abundantes. A ditadura Ortega Murillo utiliza e promove, de forma direta ou por meio de seus agentes, cobertos ou dissimulados, o ódio e as diferenças. E nesta guerra de perseguição, nem Deus nem os seus sacerdotes escapam.
Quero ficar com uma síntese positiva, não só das sete virtudes que se opõem a esses flagelos, porque a nossa história também está cheia de exemplos de dignidade, paciência, honestidade, humildade, resistência e coragem. Sem isso, o dia 19 de julho não teria sido possível, nem haveria tantas pessoas que, dentro e no exílio, não se resignaram a aceitar a opressão. Milhares de pessoas que hoje resistem são parte ou herdeiras daqueles rapazes e moças que, há 46 anos, comemoramos a vitória na Praça da Revolução.

Faço um merecido reconhecimento à generosidade de tantas pessoas que, lutando pela liberdade e pela justiça, perderam suas vidas nas décadas de 50, 60, 70, 80 e 90 do século passado e aos assassinados durante e após 2018. Em breve chegará o momento inevitável da queda da ditadura Ortega Murillo e temos a convicção de que poderemos construir um país mais humano… E com a gente, nossos mortos, para que ninguém fique para trás.
Uma resposta ao “Manifiesto de la Red Feminista Anticarcelaria de América Latina*”