Soberania digital ou submissão tecnológica? Sobre datacenters no Brasil e o encontro de Haddad com as BigTechs
Precisamos impedir a reedição do nosso país como “fazendão” do mundo, em que desta vez as commodities serão os dados dos brasileiros, nossos recursos naturais e vetores energéticos
Foto: Encontro de Haddad com Jensen Huang, CEO da Nvidia, nos EUA. (Diogo Zacarias/MF)
Em maio deste ano, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, fez uma viagem aos EUA, seguida de um anúncio que chamou atenção: a pretensão de atrair R$ 2 trilhões em investimentos de Big Techs para o Brasil, através da construção de Data Centers das multinacionais estrangeiras em nosso território. A ideia, vendida como avanço tecnológico e potencial desenvolvimento na área, pode significar, na verdade, um enorme retrocesso à soberania e ao meio ambiente brasileiros, sem retorno significativo em aumento da arrecadação, postos de trabalho ou mesmo progresso na posição do Brasil na economia digital, em seu potencial tecnológico ou em sua política de dados, esta última, até então, inexistente.
Essa pretensão, sem qualquer plano robusto e visão estratégica da posição que a tecnologia, em especial aquela que trata sobre os dados, tem e terá na disputa geopolítica, econômica e até mesmo militar no próximo período, parece relegar ao Brasil a manutenção de sua posição de país profundamente dependente e subdesenvolvido, de joelhos para os interesses de bilionários estrangeiros. É a reedição do Brasil como “fazendão” do mundo, em que desta vez, as commodities não serão a soja, o minério de ferro ou o petróleo bruto, mas sim os dados dos brasileiros, nossos recursos naturais ou nossos vetores energéticos.
É importante descrever os conceitos de “dados” e de “Data Centers”: dado é a unidade básica de informação, utilizada para o funcionamento do aprendizado de máquina e dos grandes modelos de linguagem. Data Centers são grandes infraestruturas físicas, com centenas ou milhares de computadores de alta capacidade, responsáveis por armazenar, processar e distribuir dados; por isso, são indispensáveis para o funcionamento da economia digital, são esses servidores que dão condições para que sistemas e aplicações de inteligência artificial, redes sociais, serviços de streaming e tantos outros funcionem. Para tanto, demandam não só conectividade de alta velocidade, mas um alto consumo de energia e água, para resfriar os processadores.
Alguns dados que ajudam a dimensionar o impacto ambiental:
Um dos complexos da Amazon (AWS) que reúne 55 Data Centers na Virgínia (EUA), consome cerca de 15 TWh por ano – o equivalente à eletricidade necessária para abastecer 1,4 milhão de residências nos EUA anualmente (1).
Segundo dados da Agência Internacional de Energia, em 2022, o consumo de energia elétrica de Data Centers na Irlanda significou 18% do total consumido em todo o país (2).
O data center que o TikTok pretende instalar em Caucaia, no Ceará, prevê consumir a mesma quantidade de energia que 2,2 milhões de brasileiros por dia (3). Sobre este ponto crítico, recomendo um breve, mas excelente texto, anteriormente publicado na Revista Movimento “Água para as bigtechs e estiagem para o povo: o que não dizem sobre o mega data center do TikTok no Ceará” (4)
Na brecha da ausência de regulação, a cidade de Eldorado do Sul, recentemente devastada pelas enchentes no RS, se prepara para construir o que estão chamando de “cidade de data centers”; o Scala AI City pretende consumir uma quantidade de energia elétrica maior do que a capacidade de geração da 4ª maior hidrelétrica do país, a usina de Jirau (5). No auge, o empreendimento tem como previsão um consumo de energia equiparável ao de 40 milhões de pessoas.
Em termos hídricos, numa média otimista, um Data Center de porte médio consome 4,16 milhões de litros d’água por dia para resfriamento (6), quantidade equivalente à de uma cidade de cerca de 26 mil habitantes.
No Brasil, o número de data centers cresceu 628% entre 2013 e 2023 (7) e a projeção do governo, feita pela Empresa de Pesquisa Energética (8), é de que no ano de 2037 o consumo de energia desses data centers chegue à equivalência do consumo de 25 milhões de pessoas. Um crescimento desordenado, sem qualquer planejamento, regulação ou diretriz estabelecida.
O plano dos governos de plantão é de que nos tornemos uma ciber colônia?
O objetivo deste texto não é criar um antagonismo de combate ao desenvolvimento tecnológico, pelo contrário. Mas urge questionarmos: a quais interesses o desenvolvimento tecnológico brasileiro vai servir? Quem são os agentes indicados para desempenhar a tarefa do nosso desenvolvimento? Clamar para que as Big Techs instalem Data Centers por aqui resulta em algum desenvolvimento tecnológico? O grande objetivo do Brasil nesse xadrez é, diante do colapso climático iminente, fornecer os nossos recursos para que as Big Techs ampliem seus lucros às custas do planeta e dos nossos biomas?
O planeta está conflagrado por guerras, com uma extrema direita organizada e pujante em diversos países, os bilionários donos dessas empresas – que estiveram, aliás, na primeira fileira da posse de Donald Trump; de Jeff Bezos (Amazon) a Shou Zi Chew (TikTok), de Sundar Pichai (Google) a Sam Altman (OpenAI) – não têm qualquer interesse convergente com o povo brasileiro. Elon Musk vira seus canhões contra o Brasil diuturnamente; Zuckerberg, em declaração no início do ano, ameaçou explicitamente nossa soberania ao falar sobre a possibilidade de regulamentação dos serviços de sua empresa no Brasil (9). Isso sem falar no criminoso lobby contra o PL 2630, que criou uma arena de guerra no Congresso Nacional contra uma regulação ainda tímida, mas imperativa e inadiável, das redes sociais.
Haddad não especificou de onde tirou a cifra dos supostos R$ 2 trilhões, nem onde seria o investimento, mas, em declaração à imprensa, revelou sua principal preocupação: “Nós contratamos 60% da nossa TI fora do país, o que significa não apenas remessa de dólares para fora, mas subinvestimento no Brasil e acredito que o lançamento dessa política (Plano Nacional de Data Centers) vai fazer o investimento melhorar muito.” (10). Um leitor desavisado poderia inferir, então, que o ministro tem, com o governo, um plano de desenvolvimento da nossa tecnologia, uma nova política de dados… Não! O anúncio tem a ver com a pretensão do governo de enviar um projeto ao Congresso Nacional para desonerar Big Techs nos investimentos em bens de capital da tecnologia da informação, para Data Centers. Sim, desoneração para que multinacionais estrangeiras possam seguir armazenando e controlando nossos dados – só que agora em território nacional.
A prova da ganância insaciável e predatória das BigTechs veio poucas horas depois do ministro retornar ao Brasil. Um dos principais porta-vozes do lobby do neocolonialismo de dados, Mehdi Paryavi, representante da IDCA (Autoridade Internacional de Data Centers, que reúne representantes da Google, Amazon e Microsoft), declarou à Folha de São Paulo (11) que o pacote de isenções fiscais é pouco:
De acordo com o executivo, o país precisa construir uma imagem de potência digital, promovendo políticas de fomento ao investimento, com um portfólio claro dos recursos energéticos disponíveis e garantindo um arcabouço legal flexível e seguro para os negócios digitais.
O setor de data centers já criticou, por exemplo, trechos do projeto de lei de regulação de inteligência artificial que determinavam a remuneração pelo uso de dados protegidos por direitos autorais no desenvolvimento de modelos de linguagem.
Em português claro: querem as isenções, mas também garantias de subalternização brasileira para a exploração dos recursos naturais, sem qualquer contrapartida regulamentar do uso de dados de brasileiros para seus negócios. Querem o cenário perfeito de maximização do lucro para eles, às nossas custas, deixando para nós toda sorte de subproduto indesejável, seja na dimensão material ou digital.
Estamos reféns da Google, Microsoft, Amazon, e parece que não há intenção de revertermos essa situação. Um exemplo recente foi a mais conceituada universidade do país, a USP, que apostou num convênio com a Google para provedor de e-mail e nuvem, e teve o serviço abruptamente descontinuado (12), ficando sujeita a renovar um contrato que certamente terá valores exorbitantes. Dados acadêmicos e de gestão de nossa principal universidade, completamente entregues à governança e interesses financeiros de uma multinacional estrangeira. E infelizmente a USP não é uma exceção, os convênios se estendem pela esmagadora maioria de nossas universidades, empresas públicas e governos em todas as esferas.
A rota até então traçada por nosso país está na contramão da construção de nossa soberania digital, e na contramão das tendências internacionais firmadas por países que já entenderam a importância de desenvolver estruturas, projetos científicos e políticas que pavimentem o caminho. Parte das nossas tarefas, aliás, deveria ser a busca por cooperação no Sul Global sobre o tema.
O desencontro entre a política econômica aplicada pelo governo e o desenvolvimento da nossa soberania digital parece indubitável. Isso porque dias antes de embarcar para a viagem em que encontrou e prometeu benefícios fiscais a figuras como Roth Porat, diretora financeira da Google, e Jensen Huang, presidente executivo da Nvidia (10), o ministro Haddad, junto com o presidente Lula, apresentou um decreto contingenciando R$ 2,5 bilhões do MEC, colocando em xeque o funcionamento pleno das universidades federais. A medida foi parcialmente revogada, semanas depois, por pressão das comunidades universitárias; mas se mantém como constante ameaça, por ser consequência direta do chamado arcabouço fiscal, também instituído pelo governo, que impõe um teto aos investimentos nas áreas sociais, como a educação, e a ciência e tecnologia.
Precisamos rumar para o rompimento com a dependência tecnológica! Para isto é preciso romper com a lógica fiscalista, investir na educação e na ciência e tecnologia, regulamentar nacionalmente a atuação das BigTechs em todas as suas atividades, estabelecer camadas de proteção aos dados dos brasileiros, encarar estas empresas como a ameaça que são, e ouvir especialistas e movimentos da área para construir um Plano de Desenvolvimento da Soberania Digital e de Política de Dados com objetivos de curto, médio e longo prazo.
Não por uma soberania circunscrita aos limites do Estado ou do fortalecimento de possíveis “campeãs nacionais” do setor privado, mas uma soberania capitaneada por nossas universidades, laboratórios e empresas públicas, conectada às necessidades do nosso povo, com responsabilidade socioambiental e participação social e popular.
*Este texto é parte de esforço e elaborações coletivas, a partir do “Grupo de Estudos sobre o Digital” impulsionado pelo MES em São Paulo. E conta com aportes, em especial, do professor Artur Marques (UERN) e de Davi Barbosa, do MES-SP.
Referências