Bolívia – o que deu errado
Análise da eleição presidencial boliviana, cujos resultados indicam uma derrota dos candidatos que têm origem no campo do atual governo do MAS
O resultado eleitoral do primeiro turno da eleição boliviana chamou a atenção. Quem não estava acompanhando de perto pode ter ficado surpreso com a vitória de Rodrigo Paz, que passa ao segundo turno contra o ex-presidente Jorge Tuto Quiroga. Os dois candidatos que têm origem no campo do atual governo, do MAS, amargaram péssimos resultados. Andrónico chegou a 8,5% e o candidato oficial de Arce, Eduardo Castilho, ficou em quinto lugar, com 3,1%
Como explicar tamanha derrota do dito campo progressista, depois de anos de um profundo processo, em que o MAS se tornou referência internacional de projeto político. Como explicar que se derrotou um pesado golpe de estado, com Jeanine Áñez à cabeça e apoio de figuras como Elon Musk? A divisão e degradação do processo de construção política do MAS foi uma força mais potente na “implosão” do projeto que qualquer força externa. Alguns analistas falam em “derrota endógena”.
É fundamental discutir o que passou e extrair lições. O imperialismo e a extrema direita não descansam. Além da linha de maior intervenção militar na região, com ameaças escalando, está nítido o objetivo em saquear ainda mais os minerais da Bolívia, destruindo o meio ambiente e fazendo retroceder as conquistas sociais e econômicas do povo boliviano. O lítio boliviano é o alvo prioritário dos capitalistas da “nova ordem”.
Em que pese, tal processo não é uma derrota histórica, porque o povo boliviano tem muitas reservas, uma capacidade enorme de coordenar o protesto social e tudo indica que a resistência aos planos neoliberais pode ser mais forte que na Argentina de Millei. Mas é preciso ter o senso de proporções: foi uma derrota importante, que fortalece a extrema direita no continente e exige a abertura de um novo ciclo na esquerda do país.
Resultados impressionantes
O azarão Rodrigo Paz do Partido Democrata Cristão (direita católica), contrariando as pesquisas de opinião, chegou em primeiro lugar, com 32,08%. Jorge Tuto Quiroga que vai ao segundo turno, pela frente “Aliança Livre, recebeu 26, 94% dos votos.
Foi a primeira vez em décadas, desde que se instituiu a eleição por dois turnos, em 2009, que a disputa vai para o segundo turno.
O empresário Samuel Medina, que era uma das apostas prioritárias da burguesia conservadora e favorito em algumas pesquisas, chegou em terceiro com 19,93%. O número de votos nulo foi de quase 20%, o maior índice da história do país.
As candidaturas alinhadas com o campo progressista, expressando a brutal crise do MAS e dos processos anteriores, tiveram um desempenho pífio. Andronico Rodriguez, presidente do Senado, dirigente oriundo da base cocaleira e que muitos apontavam como sucessor de Evo, teve apenas 8,5% dos votos. Pior resultado teve o candidato oficial do MAS e do governo, o ministro Eduardo Castilho, que chegou em sexto lugar, com 3,1%.
Rodrigo Paz se apresenta como “centrista” ou liberal, sendo filho do ex-presidente Jaime Paz Zamora, nascido na Espanha e tendo feito carreira como prefeito da cidade de Tarija, no sul da Bolívia. Já Tuto Quiroga é um político tradicional, foi presidente da Bolívia após a renúncia de Hugo Banzer, entre 2001 e 2002. Conhecido pelo perfil conservador, alinhado com à direita, teve papel de destaque internacional no governo golpista de Añez.
O desastre do progressismo foi tamanho que Evo rompeu com Andrónico e convocou o voto nulo e Arce não teve condições de se candidatar à reeleição, com seu representante Castilho chegando em quinto lugar, apesar de toda máquina estatal.
Do auge à crise e as conquistas do processo
Dos processos políticos que tiveram condições de enfrentar o desgaste do neoliberalismo no começo do século XXI, na América Latina, a Bolívia aparentava uma das experiências mais sólidas, duradouras ou profundas. Na liderança do chamado bolivarianismo, junto ao Equador e encabeçados pela Venezuela de Chavez, o processo boliviano, referenciado no MAS e em Evo Morales apontou enormes conquistas sociais e políticas para o povo boliviano.
Fruto do processo que combinava potentes rebeliões de massa, de caráter antineoliberal, com o surgimento de novas ferramentas políticas democráticas, o processo boliviano emergiu na virada do século.
A primeira explosão, concentrada em Cochabamba, foi a “Guerra da Água” em 2000, onde uma rebelião popular se pronunciou em defesa da água e dos recursos naturais. Um novo salto, foi em 2003, onde o governo Sanchez de Lozada enfrentou uma semi-insurreição que fez lembrar os levantes de 1985, na chamada “Guerra do Gás”, onde o movimento popular alterou a relação de forças. Um plebiscito em 2004 deu maioria para a defesa do gás natural como patrimônio boliviano, seguido de novos enfrentamentos de rua em 2005, concluindo com a inédita vitória de um indígena Aymará, Evo Morales, nas eleições do final daquele ano.
A conquista de hegemonia foi tamanha que os resultados foram evidentes: além das vitórias eleitorais seguidas do MAS em três eleições presidências, houve uma grande assembleia nacional constituinte, onde foi constituído um Estado Plurinacional e medidas de caráter democrático como jamais visto na república boliviana. O controle dos recursos naturais estava em mãos do Estado, houve uma diminuição drástica da pobreza absoluta e relativa- mais da metade em menos de dez anos. Um salto na alfabetização, na cobertura de saúde e previdenciária dos aposentados mineiros e rurais.
A integração regional foi outro passo enorme dado por Evo e o MAS, com adesão à tratados regionais e aposta num projeto que resgatava o que Chavez voltava a levantar como “Nuestra América”.
O esgotamento político começa a ocorrer quando se debate a sucessão de 2019, quando Evo se impõe para além da previsão constitucional de um número limitado de reeleições, negando o resultado do referendo em 2016, deixando feridas entre aliados e dentro do seu próprio partido. A eleição de 2019, vencida por Evo oficialmente, deixa marcas de desconfianças, com muitos setores acusando fraudes e com dúvidas dentro do próprio movimento social. A extrema direita, que sempre foi ativa e chegou a organizar uma campanha secessionista durante os anos Evo, aproveita para impor um golpe de Estado, levando a ultraliberal Jeanine Añez ao poder.
Um processo efêmero, ainda que violento e autoritário, pois a relação de forças impedia um governo com essas características. A fortíssima resistência popular derrota o golpe, impõe eleições diretas, onde o MAS volta ao poder, agora mais dividido, com Arce como presidente, liderando a chama “ala renovadora”, tomando distância de Evo.
Durante o governo Arce, a crise se acirra, com acusações políticas e morais de ambos os setores. A crise econômica e a falta de perspectivas castigam o governo Arce, com várias tentativas de quarteladas, rupturas de cima a baixo, levando à erosão de sua base social e com isso, do próprio, MAS como ferramenta política.
O que se passa a seguir, é conhecido, assim como a derrota é recente, as feridas seguem abertas.
O que não avança, retrocede
A máxima de “o que não avança, retrocede” se impôs como uma lei de ferro, no caso boliviano. Derrota anunciada previamente, tanto Arce quanto Evo são responsáveis diretos por esse retrocesso. Do que eram duas correntes dentro do MAS, se fragmentaram em três, com a ruptura de Evo com seu ex-aliado Andronico. Podemos levantar quatro elementos para a reflexão do que levou a essa derrota, após conhecer um dos mais animados processos mudancistas da esquerda no século XXI:
a) Os limites da estratégia: A falta de uma perspectiva que pudesse mudar as bases econômicas e sociais da sociedade, não apenas suas bases políticas, foi fatal para o MAS. Ancorada num modelo de desenvolvimentismo extrativista, onde a regra era crescer a renda nacional para redistribuir em programas sociais, o limite de uma estratégia mais geral falou alto: o modelo chamado “Capitalismo Andino-Amazonico” não foi capaz de apontar para algo superior; incorreu no mesmo fracasso que outros setores, com diferença no tempo e espaço, como o caso do Syriza grego. Ao não conseguir superar as contradições de um tipo de governo, acaba sendo devorado por elas.
b) A falta de um projeto: Não houve uma mudança na matriz produtiva; não houve esforços para uma industrialização de novo tipo, que rompesse os padrões econômicos, podendo criar ferramentas limpas e ligadas às preocupações de uma transição energética e ecológica (como ao menos, em palavras, Petro parece preocupar-se). Um projeto coerente que pudesse seguir apoiando-se na democracia direta, no campo e na cidade, trazendo mudanças na representação e quebrando os privilégios de políticos e juízes, conclamando uma governabilidade à quente. Na falta de um projeto, se impõe outros “projetos”, de natureza pessoal e limitada.
c) A disputa de personalidades: o papel das lideranças é fundamental em qualquer processo político, é imprescindível; porém, a concentração de poderes e a defesa cega dos interesses parciais leva a conflitos insolúveis. Vejamos a deriva da Venezuela de Maduro, para não falar no poder familiar e autoritário dos Ortega na Nicarágua. A crise de direção também se manifesta no individualismo e no egoísmo de figuras que usam do seu tamanho como liderança para não se submeter ao trabalho coletivo e à prestação de contas para as bases.
d) A implosão da luta interna: A construção de camarilhas é uma característica da burocratização dos processos. A criação de um corpo de funcionários que ganha certa autonomia e reflete seus próprios interesses enquanto casta, à revelia do movimento social e do conjunto do povo, é sempre o ponto partida de lutas intestinas sem programa.
Lições para esquerda
São muitas as lições para esquerda. A primeira delas é um sinal de alerta para as próximas eleições que devemos ter na região. O calendário inclui presidenciais no final do ano no Chile, depois na Colômbia, além das eleições regionais e parlamentares da Argentina.
A segunda questão é ter uma metodologia que tire lições, não só dos triunfos, como dos fracassos. Os triunfos arrastam, mas os fracassos também ensinam.
Em terceiro lugar, os riscos que a institucionalização e a burocratização apontam, quando não há controle das bases, quando não há renovação de lideranças, estímulo ao debate democrático e organizações vivas, políticas e sociais, que reflitam o movimento de massas.
O famoso “problema de direção” que alguns levam a uma categoria abstrata, às vezes caricata, cobra um enorme preço. A “crise de alternativa” é um problema real, que não pode ser varrido para debaixo do tapete, nem evitar que exerçamos de forma saudável o processo de crítica e autocrítica.
A luta contra a extrema direita é renhida e cotidiana. Tirar lições dos processos fortalece a nossa luta para derrotar os planos dos neofascistas, dos Trump, dos Bolsonaros, dos Netahyahus e dos Milei.
Acompanhar o povo boliviano
Nos pareceu muito interessante o artigo de Gilberto Maringoni em “Terra é Redonda”, de alguma forma, “inaugurando” o debate sobre o processo como um todo. É preciso debater.
A direita vai apostar em pavimentar seu triunfo, com uma preferência por Tuto Quiroga, para se aproveitar, como Musk não esconde, de um governo capaz de lhe entregar o controle da parte boliviana do “Triangulo do Lítio”.
O povo boliviano tem reservas de luta, com um histórico de protestos e rebeliões superior a qualquer país do continente. Nos últimos cem anos, tivemos a primeira revolução operária da região, em 1952. Levantes como o de 1971(Assembleia Popular) e o de 1985, quando os mineiros tomaram La Paz. Sem contar os já citados levantes em defesa dos recursos naturais que condicionaram a política nas últimas duas décadas, ou mesmo recentemente, a força do movimento popular que parou o golpe. O número de votos de protesto, nulo somados aos votos da esquerda, pouco menos de um terço, é um capital nada desprezível para as batalhas do porvir.
A contradição entre a bravura do povo boliviano e incapacidade de sua direção é a contradição candente da conjuntura. Em meio ao luto inicial, é preciso seguir e apostar na luta.