Massacre Silencioso: o adoecimento psíquico da classe trabalhadora e a omissão política que sangra por dentro
Condições de trabalho causam danos à saúde mental de diversas categorias
Foto: Agência bancária. (SBMR)
O Brasil assiste a um massacre silencioso. Não há tanques nas ruas, nem tiros ecoando em praças públicas. Ele acontece nos escritórios climatizados, nas metas inatingíveis, nas agências bancárias, nas refinarias, nas baias de teleatendimento, nas salas estreitas onde técnicos de segurança do trabalho são deixados à própria sorte. É um massacre que não sangra por fora, mas por dentro. Dilacera a esperança, destrói o ânimo e, em muitos casos, apaga o desejo de viver.
É o adoecimento psíquico como a mais devastadora e invisível forma de aniquilação da classe trabalhadora.
Milhares de diagnósticos se acumulam todos os dias. Ansiedade generalizada (CID F41), depressão profunda (CID F32), burnout, insônia, pânico, síndrome do impostor, uso abusivo de psicotrópicos para manter a produção — esses são os sintomas mais comuns de uma epidemia que já não pode ser ignorada.
Os números confirmam a tragédia. Em 2024, o INSS concedeu 472,3 mil licenças médicas por transtornos mentais, o maior número em uma década — mais do que o dobro dos registros de 2014 (221,7 mil), com um salto de 68% em relação a 2023. E ainda assim, trata-se apenas da ponta do iceberg: há subnotificações, rejeições em perícias, trabalhadores informais e autônomos que jamais entram na estatística.
Esse colapso não é individual. Ele é estrutural. O trabalho perdeu a capacidade de gerar reconhecimento e pertencimento. A ideologia da alta performance, da superprodutividade e do medo permanente de retaliações se instalou como norma. O resultado é uma roda de moer gente que opera em silêncio, triturando subjetividades.
Nesse contexto, a CIPA deveria ser um espaço de proteção. A Comissão Interna de Prevenção de Acidentes é a principal conquista organizativa dos trabalhadores por local de trabalho. Mas, diante da nova era do adoecimento psíquico, ela precisa ser ressignificada: formação densa, coleta de dados, acolhimento dos casos de saúde mental. Infelizmente, a maioria das CIPAs ainda não compreende a dimensão histórica dessa tarefa. Os sindicatos, salvo raras exceções heroicas, seguem presos a uma pauta limitada. O Ministério Público do Trabalho, sobrecarregado e por vezes refém da tecnocracia, assiste à devastação de braços cruzados.
O setor bancário expõe a ferida de forma brutal. A Caixa Econômica Federal lidera o ranking de adoecimento mental: entre 2023 e 2024, 74% dos afastamentos por acidente de trabalho (B91) entre empregados da Caixa decorreram de transtornos mentais e comportamentais — muito acima dos 57,1% do setor bancário e infinitamente distante da média geral de apenas 5,99%. Somando-se as licenças por acidente de trabalho (B91) e por doença comum (B31) ligadas à saúde mental, o crescimento foi de 223% em 10 anos — de 749 casos em 2014 para 2.417 em 2024. Um salto que evidencia a falência de qualquer discurso institucional sobre “bem-estar corporativo”.
Mas não são apenas os bancários. Entre os petroleiros, os dados são menos sistematizados, mas os relatos são devastadores. Pesquisas em plataformas on-shore e off-shore mostram ambientes de trabalho marcados por penosidade, assédio moral, discriminação e sofrimento psíquico coletivo. Se nos bancos o colapso é visível nas estatísticas, nas refinarias e plataformas ele se revela nas narrativas: trabalhadores exaustos, deprimidos, vivendo sob regras opressoras e sob a sombra constante do risco. Essa transversalidade prova que o problema não é setorial, mas estrutural, e atinge toda a classe trabalhadora.
Diante disso, a proposta não pode ser tímida. Urge a criação de Comissões Permanentes de Prevenção ao Adoecimento Ocupacional, com participação paritária de trabalhadores, sindicatos, especialistas em saúde mental e órgãos de fiscalização. Esses espaços precisam ir além da formalidade burocrática: devem ter poder real de escuta, denúncia, acolhimento e interferência no ambiente de trabalho. O objetivo é claro: parar a roda da morte antes que ela devore uma geração inteira.
Há, contudo, uma novidade normativa. A NR-1, reformada em maio de 2025, reconheceu pela primeira vez o direito do trabalhador de recusar uma tarefa que represente risco psicológico iminente. É um marco histórico. Mas, enquanto o patronato insiste em ignorar a norma, a Justiça do Trabalho ainda engatinha em reconhecer a saúde psíquica como direito humano fundamental. Se não houver mobilização de base, se os adoecidos não se tornarem protagonistas de sua própria narrativa, a letra da lei seguirá inócua diante da engrenagem do capital.
Este artigo é, portanto, mais que uma denúncia. É uma convocatória. Bancários, petroleiros, técnicos de segurança, atendentes de call center, pedreiros: vocês não estão sós. A dor que carregam não é fraqueza, é resistência. Cabe a nós transformar diagnóstico em rebelião, sofrimento em pauta política, e a insurreição da alma em um novo projeto civilizatório.