Gerencialismo ou Ataque? O Que Se Esconde na Reforma Administrativa
A nova proposta de Reforma Administrativa apresentada pela Câmara Federal consolida um ataque ao serviço público, mascarado como “modernização”. Articulada pelo centrão e extrema direita com aval do mercado financeiro, a proposta inviabiliza o Estado social através de terceirização, meritocracia e teto de gastos – um assalto histórico aos direitos da classe trabalhadora
Os intentos ultraliberais de estrangulamento do Estado brasileiro não foram sepultados com a PEC 32. O Grupo de Trabalho da Reforma Administrativa, impulsionado por Hugo Motta (Republicanos) na presidência da Câmara Federal, com o suporte político do “centrão” e da extrema-direita, o respaldo do mercado financeiro e de representantes patronais, encontrou um ambiente favorável e exemplos concretos de medidas infraconstitucionais e normativas realizadas pelo Governo Lula 3.
A Ministra de Gestão e Inovação, Esther Dweck, executa o que chama de “Transformação do Estado” centrada no gerencialismo. Ao contrário da nova proposta de Reforma Administrativa, que ainda depende de tramitação no parlamento, Dweck tem colocado em prática sua própria reforma “fatiada”, como nos acordos firmados com as entidades representativas dos trabalhadores do Serviço Público Federal.
Para ficarmos em apenas um exemplo, o Magistério do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico teve as progressões na carreira atreladas à aprovação em processo de avaliação de desempenho, em razão do último acordo1. Esse “caso de sucesso” será estendido a todas as carreiras do serviço público no Brasil com esta Reforma Administrativa, pois é considerado incabível progredir apenas por tempo de serviço, ou seja, não basta trabalhar até morrer, como impôs a reforma da Previdência, é necessário permanecer com salário achatado.
Importante lembrar que a própria iniciativa do Grupo de Trabalho na Câmara dos Deputados foi resultado dos acordos para suprimir trechos do Projeto de Lei nº 1.466/2025 (que deu origem à Lei nº 15.141), que foram prontamente denunciados pelas entidades sindicais como estranhos aos acordos e, em conteúdo, como elementos que antecipavam uma Reforma Administrativa.
Um Misto de Ataques ao Povo e Delírios Neoliberais
A reforma resultante do Grupo de Trabalho da Reforma Administrativa está embalada no rançoso discurso de eficiência do serviço público, combinado a um linguajar adequado para disputar a opinião pública, prometendo “entregar um serviço com mais qualidade para o nosso principal cliente: o cidadão”. Curiosamente, “o cidadão” não foi ouvido sobre o que espera do serviço público. Nas palavras de Safatle é “uma tecnocracia que trata o povo como incapaz de decidir ‘questões técnicas’”2, por isso, o ataque da vez está chancelado por dezenas de tecnocratas do Estado, burocratas de sindicatos do topo da pirâmide do funcionalismo, representantes de entidades patronais, agentes do mercado e políticos profissionais defensores de interesses neoliberais.
A constitucionalização da “reserva do possível”, ou seja, a limitação financeira do Estado, especialmente em casos que possam gerar um impacto orçamentário significativo, como medicamentos que somente são obtidos com judicialização passam a considerar o impacto orçamentário. Essa é mais uma medida que coletivos artificiais, como o Movimento Pessoas à Frente (mais uma iniciativa da Fundação Lemann, pródiga em impulsionar movimentos “suprapartidários” como o RenovaBR), prestaram aporte conceitual definitivo para a conformação da proposta.
Na visão colonizada do GT da Reforma Administrativa, no serviço público faltaria uma “cultura orientada para a digitalização”, o que tanto causaria uma “preferência pelos métodos tradicionais”, quanto uma “cultura organizacional resistente à mudança”. A solução? Uma profusão de dashboards, ou seja, painéis eletrônicos de controle de indicadores para atenderem aos fetiches dos planejamentos estratégicos da subcultura gerencialista. Caso fossem apenas brinquedos de gente mimada da tecnocracia Estatal não seria tão preocupante, mas a proposta condiciona fatores de execução orçamentária a tais instrumentos. Na prática, é uma “burrocratização”, pois na gestão por resultados o produto não é a falta de leitos hospitalares, ou a insuficiência de vagas em creches, mas o infográfico da sala de controle bem distante da execução do serviço público que atende à classe trabalhadora.
O discurso do aumento da qualidade nos serviços públicos, entretanto, cai por terra quando confrontado com a realidade do que pretende fazer: reduzir despesas nos serviços públicos, fazer “mais com menos” e fazer fechar a conta para manter viva a farra do desvio do orçamento público para o sistema financeiro, por meio do sistema gerador de dívida pública brasileiro que, a pretexto de conter inflação, mantém a segunda mais alta taxa real de juros do mundo3. Essa política de altas taxas de juros, controlada pelo próprio mercado financeiro por meio do COPOM – Comitê de Política Monetária sem nenhuma interferência governamental, foi a responsável pela proposição do Novo Arcabouço Fiscal (Lei Complementar nº 200/2023), que congela os gastos públicos indefinidamente, permitindo um crescimento anual além da inflação de no máximo 2,5% – mesmo que a arrecadação alcance níveis muito superiores, que tem como objetivo declarado garantir a sustentabilidade da dívida pública, permitindo seu livre crescimento e limitando os investimentos em serviços públicos.
A narrativa em construção visa disputar a opinião pública, por meio de um discurso de acabar com privilégios restritos à casta de intocáveis (magistrados, procuradores e advogados públicos), como férias superiores a 30 dias, adicionais de férias maiores que 1/3, adicionais e vantagens remuneratórias, inclusive remunerações superiores ao teto constitucional. No entanto, são atacados direitos que abrangem todo o funcionalismo e são direcionados à correção de assimetrias, como os adicionais de insalubridade e de periculosidade. E não para nisso: torna o estágio probatório um contrato de experiência da CLT de 3 anos, ampliando a discricionariedade e a subjetividade; cria a figura do servidor público efetivo a termo, integrante do quadro de uma carreira, porém com permanência no cargo por, no máximo, 10 anos; e, a vedação de progressão por tempo de serviço.
A meritocracia e o gerencialismo são objetivos na proposta: uma casta de tecnocratas do Estado passariam a gerir a Administração Pública, com obrigações apenas aos seus infográficos, cujos altos escalões poderiam receber um 14º salário de até 4 vezes a sua remuneração. Esta proposta de Reforma Administrativa é um ponto de não retorno para o serviço público no Brasil, pois vincula todas as esferas de governo (municipal, estadual e federal), todos os poderes (executivo, legislativo e judiciário), os órgãos autônomos (Tribunais de Contas, Ministério Público e Defensoria Pública) e o tipo de vínculo (RJU e CLT), aprofundando o ajuste fiscal: 1. expande as regras do “Arcabouço Fiscal” para estados e municípios; 2. congela as despesas de pessoal (ativos, aposentados e pensionistas), mesmo com crescimento da receita primária; 3. prepara uma nova contrarreforma da Previdência, com a redução do espaço orçamentário.
O arcabouço jurídico existente não exigiu incluir nenhuma mudança em tipos contratuais valiosos para as consequências desta Reforma Administrativa. Com o estrangulamento do serviço público, a tendência é uma profusão dos contratos de gestão, utilizados para entregar dinheiro público às Organizações Sociais executarem políticas públicas. Governadores como Zema (Novo/MG)4, Tarcísio (Republicanos/SP)5 e Ratinho Jr. (PSD/PR)6, e prefeitos como Topázio Neto (PSD, de Florianópolis/SC)7, e João Campos (PSB, de Recife/PE)8, utilizam ostensivamente este instrumento, com recorrentes denúncias de corrupção e prestação de serviços com qualidade duvidosa.
Sem Ilusões! Não há o que Melhorar na Nova Proposta de Reforma Administrativa
A constitucionalização de temas como o teletrabalho, a instituição de tabelas únicas de remuneração e a prioridade para concursos para carreiras transversais podem acarretar a ilusão de pressões com o lobby corporativista, tanto por oportunismo de oligarquias sindicais, quanto por ilusões legítimas de tentar “melhorar” ou “aproveitar” alguma coisa dessa proposta de Reforma Administrativa, um erro crasso! É fundamental unificar uma frente de luta para derrotar na íntegra mais essa ameaça ao serviço público. O ataque não é apenas sem precedentes e direcionado aos trabalhadores do serviço público, é uma escalada para a ruína da capacidade do Estado atender aos serviços mais essenciais para toda a classe trabalhadora.
A atuação da vanguarda do movimento sindical não pode ficar limitada aos expedientes atuais do FONASEFE, que focam na pressão sobre bancadas e na interlocução com o Governo, pois a mesma bancada parlamentar que garantiu a derrubada do pacote “BBB” – Bets, Bancos e Bilionários (Medida Provisória nº 1.303/2025) afiança esta proposta de Reforma Administrativa, portanto, somente as ruas podem derrotar definitivamente este projeto com o exemplo recente da mobilização contra a PEC da blindagem.
As trabalhadoras e os trabalhadores do serviço público, em todas as esferas, poderes e entidades, precisam cerrar fileiras para barrar mais esse ataque, construindo com as demais categorias de trabalhadores autônomos, assalariados, precarizados e desempregados um projeto de soberania popular onde o Estado brasileiro esteja a serviço da Classe Trabalhadora.
Baixe abaixo o panfleto eletrônico do Coletivo Sindical TLS sobre a Nova Proposta de Reforma Administrativa.
REFERÊNCIAS
- Vide artigo 54 da Lei nº 15.141, de 2 de junho de 2025. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2025/lei/l15141.htm#art54. Acesso em: 12 out. 2025. ↩︎
- SAFATLE, Vladimir. A Esquerda que não teme dizer seu nome. Editora Planeta, 2025. ↩︎
- VIEIRA, Jason. Ranking Mundial de Juros Reais [S.l.]L MoneYou, 16 set. 2025 Disponível em https://static.poder360.com.br/2025/09/ranking-juros-reais-moneyou-17set2025.pdf. Acesso em: 13 out. 2025. ↩︎
- Governo Zema é denunciado por irregularidades contra auxiliares de serviços da educação de MG. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2025/03/27/governo-zema-e-denunciado-por-irregularidades-contra-auxiliares-de-servicos-da-educacao-de-mg/. Acesso em: 13 out. 2025. ↩︎
- Justiça de SP anula leilões para gestão privada de escolas estaduais. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2025-03/justica-de-sp-anula-leiloes-para-gestao-privada-de-escolas-estaduais. Acesso em: 13 out. 2025. ↩︎
- APP-Sindicato denuncia nova manobra do governo Ratinho Jr. para fechar cursos que oferecem ensino técnico gratuito. Disponível em: https://appsindicato.org.br/app-sindicato-denuncia-nova-manobra-do-governo-ratinho-jr-para-fechar-cursos-que-oferecem-ensino-tecnico-gratuito/. Acesso em: 13 out. 2025. ↩︎
- TCE/SC apura denúncia de irregularidades em contrato de consultoria da Secretaria Estadual da Saúde. Disponível em: https://www.tcesc.tc.br/tcesc-apura-denuncia-de-irregularidades-em-contrato-de-consultoria-da-secretaria-estadual-da-0. Acesso em: 13 out. 2025. ↩︎
- MPC-PE pede auditoria do TCE em contratos de engenharia da Prefeitura do Recife. Disponível em: https://www.tcepe.tc.br/internet/index.php/noticias-mpco/7916-mpc-pe-pede-auditoria-do-tce-em-contratos-de-engenharia-da-prefeitura-do-recife. Acesso em: 13 out. 2025. ↩︎