Milei: Uma corrida desesperada contra o tempo
O governo Milei será testado novamente nas urnas no próximo domingo, dessa vez com as “fichas” de Trump
A política argentina já conheceu todo tipo de “corridas”. Nos últimos anos foram as “corridas bancárias”, “corridas cambiais”, etc que ajudaram a determinar o conjunto da situação política.
Dessa vez, temos uma corrida de outro tipo, ainda mais importante e com traços dramáticos. Há cerca de cinco dias da eleição, Milei corre para evitar uma derrota que possa comprometer não só seus planos como abrir uma crise sem precedentes. Como em um jogo de cassino, ele decidiu apostar tudo: com o apoio dos Estados Unidos, Milei e seu núcleo duro querem suplantar todas as crises recentes vividas para vencer ou empatar as eleições do próximo dia 26, mantendo, assim, a “economia em pé”.
A eleição argentina vai ajudar a determinar a relação de forças continental, onde Trump acossa a Venezuela e a Colômbia, quer chantagear o Brasil e apostar em novos cabeças-de-ponte para sua política. Milei é o seu laboratório mais importante.
O que ocorrer no domingo 26 terá impacto para o imperialismo trumpista, para os que resistem à extrema direita em geral, e para a esquerda internacionalista em particular.
São frágeis os fios que amarram o plano Milei
A situação é um tanto quanto surreal: Milei precisa de estabilidade econômica para governar; mas precisa de estabilidade política para manter a economia sem entrar em um total colapso conjuntural. E nisso, a relação com Trump deu um salto. O que antes eram relações marcadas pela submissão ao FMI, via acordos e maior endividamento, agora se tornou uma parte decisiva da estratégica e tática do governo. É uma salvação direta de Trump, via seu Secretário de Tesouro, Scott Bessent, para o governo de Milei disputar os rumos políticos da Argentina e da região.
É como se em um cassino, Trump e Milei jogassem todas as suas fichas, em um tudo ou nada, dentro do contexto que envolve não só a Argentina como também toda a disputa que a extrema direita mundial está fazendo. Paul Krugman escreveu recentemente sobre o assunto
“A Argentina, para dizer o mínimo, não é um país vizinho e representa menos de 0,5% das exportações dos EUA. Por que, exatamente, os contribuintes americanos deveriam socorrer Javier Milei?
Sabemos por que Trump e Bessent querem ajudar Milei. Primeiro, ele é um favorito do MAGA (Maga, Movimento de Libertação e Ação) que gosta de posar para políticos de direita dos EUA com uma motosserra como acessório. Portanto, os trumpistas querem que um político de direita e antiestatista tenha sucesso, não importa quanto dinheiro dos contribuintes isso custe.
Segundo, alguns bilionários de fundos de hedge americanos, pessoalmente próximos de Bessent, apostaram pesadamente em Milei e compraram títulos argentinos. O pacote de resgate quase certamente não conseguirá recuperar a economia argentina e provavelmente não socorrerá Milei politicamente. Mas pode dar aos amigos de Bessent tempo suficiente para sacar grande parte de seu dinheiro antes que a economia argentina chegue ao fundo do poço.”
O governo Milei será testado novamente nas urnas no próximo domingo. Trump jogou toda a força para buscar salvá-lo e tal qual fez em outros países, usa da chantagem ao afirmar que ‘se Milei não vence, vamos embora’.
Milei está numa situação delicada, seja política seja econômica. Voltemos a um artigo do marxista argentino, Eduardo Lucita:
“O resgate tem como único objetivos: evitar um colapso cambial, melhorar as chances eleitorais do oficialismo, sustentar o governo Milei, único aliado estratégico na região, e impulsionar a estratégia geopolítica do império de diminuir a presença da China na região”
Os frágeis fios que Trump oferece não são capazes de resolver os impasses estruturais. Oferece uma proposta desesperada, que pode dar relativamente certo, para o governo sobreviver.
Desde o começo de sua gestão, Milei passou por diferentes cenários; uma das suas conquistas relativas foi ter reduzido a inflação, sua bandeira central. Dentre os revés que sofreu, podemos afirmar que por duas vezes sua gestão ficou questionada.
A primeira delas foi na votação da Lei de Bases , em junho de 2024, ainda no começo do mandato. Após um importante ciclo inicial de resistências, com duas greves gerais, manifestações de piqueteiros e atos democráticos, Milei quase viu seu projeto naufragar no senado, quando aprovou por apenas um voto, sua normativa principal de governo, a Lei de Bases que sustentavam suas prerrogativas de mandato. Ali, ganhou fôlego com os votos da oposição moderada e apoio da burguesia e da grande mídia, para seguir seu plano central: ajuste (motosserra) com controle inflacionário.
A segunda vez que seu governo foi à pique, aconteceu na semana seguinte à eleição da Província de Buenos Aires. Desgastes ligados aos escândalos de corrupção, a resistência intermitente da luta educativa e do hospital Garraham, o desgaste do governo em geral, encontraram eco na vitória dilatada do peronismo conduzido por Axel Kicilof na Província de Buenos Aires, maior colégio eleitoral do país, com quase 40% do padrão dos argentinos aptos a votar. Isso desencadeou mais desconfiança e instabilidade no projeto econômico, com o mercado dando sinais de nervosismo, o risco-país decolando.
Trump entrou em campo, na mesma toada do que está fazendo no Caribe contra a Venezuela, para intervir diretamente no país, agora condicionando o apoio à manutenção do plano Milei.
A crise orgânica e as múltiplas crises
A Argentina vive uma crise de projeto. Dados recentes indicam que a China já é a principal parceira comercial da Argentina. Ou seja, a dissociação entre as condições políticas e sociais marca a realidade, quando Milei quer um alinhamento em termos neocoloniais com os Estados Unidos, agora na Era Trump.
A crise é econômica, pois o nível de endividamento é insustentável. A compra desesperada de dólares por parte do governo não faz mais que postergar o choque que deve vir e vai pegar a burguesia dividida- um setor vai pedir a dolarização, outro com saídas como deixar a desvalorização, sem uma estratégia comum para tirar a Argentina do beco sem saída, agravado pelos empréstimos contraídos na última década com o FMI.
A crise é social, pois os níveis da atividade produtiva- do ramo metalúrgico, por exemplo, caíram a níveis da pandemia. O país controla a inflação, com índices maquiados, mas tem um amplo passivo de miséria, pobreza, violência e falta de empregos com qualidade. A redução dos benefícios sociais promovida por Milei atinge em cheio os bairros populares, que parecem barris de pólvora prestes a explodir.
A crise também é política: após duas experiências “gradualistas”, com Macri à direita e o retorno do peronismo à esquerda, Milei venceu prometendo choque completo e mudanças na estrutura do regime. Sua proposta “anticasta” não resistiu aos dois primeiros anos de mandato. O peronismo se revigora, apesar de dividido, ainda que sem a mesma capacidade anterior. O fato é que a antiga “fissura”, ou greta para usar o termo em espanhol, entre o peronismo e a oposição de direita (que Macri era a principal expressão”) foi engolida por uma crise que ainda não derivou em um novo realinhamento de forças políticas nacionais. O governo Milei é a própria gestão dessa crise política, tentando empurrar a relação de forças mais à direita, após duas décadas marcadas pela rebelião de 2001.
A próxima crise aguda vai depender da dinâmica do governo Milei, pois a corrida contra o tempo até domingo deve condicionar os próximos capítulos daqui até a eleição geral em 2027.
Para aplicar seu projeto Milei prepara reformas neoliberais de alcance: uma reforma fiscal e uma reforma trabalhista. O projeto da burguesia argentina ainda é apostar – com cada vez mais desconfiança – no plano Milei e em uma maior subordinação aos Estados Unidos. Isso que se expressou na última reunião do Colóquio Ideia – onde os grandes empresários do país se reúnem para deliberar sobre os planos políticos e econômicos.
A questão se dá na articulação dos tempos- a crise conjuntural ser o gatilho para desbordar a crise estrutural, abrindo caminho para novas hipóteses ou cenários.
Ainda é baixo o nível de atividade do movimento de massas, onde os piqueteiros foram muito atacados pelo plano Milei, a juventude foi um setor importante que lutou em relação ao tema universidade, mas ainda não existem ações coordenadas ou massivas como em outros momentos o país vivenciou.
Milei segue sendo estratégico
A pergunta a ser respondida é porque Trump e os seus funcionários saíram em socorro a Milei. E esse socorro foi providencial, ainda que talvez não seja suficiente para evitar uma derrota no próximo domingo.
Trump fez isso porque seu projeto é uma intervenção aberta e direta no continente latino-americano. Trump aciona diversos atores políticos para articular seu plano: conta com Corina Machado no acosso ao Caribe, Venezuela e Colômbia; Bukele como modelo de fechamento de regime, e ponta de lança na América Central, e Milei como propaganda do ultraliberalismo e da entrega da soberania nacional.
Trump não irá parar. Precisa disputar de forma aberta cada processo; negocia para ganhar tempo com o Brasil, segue fechando o cerco com a Venezuela, aposta suas fichas em Kast no Chile. Por esses e outros motivos, Milei é estratégico.
Um setor da burguesia brasileira, que visa um bolsonarismo sem Bolsonaro, tomou emprestado as credenciais de Milei, batizando com seu nome a estratégia de lutar por um governo com capacidades mais amplas de fazer o ajuste e reprimir o movimento de massas.
Milei, portanto, carrega as contradições dos tempos e da crise estrutural do ‘laboratório Argentina’.
Tão aberto quanto o futuro do seu governo é o cenário das outras forças sociais que atuam. Haverá espaço para uma burguesia dissidente? Um setor de governadores lançou um projeto eleitoral para ser a “terceira força”, com diálogos com peronismo, mas também com pautas do governo. Ainda não se sabe o alcance que esse setor vai ter em meio à polarização da eleição de domingo.
O peronismo, dividido em alas e frações, teve um resultado vitorioso na eleição da Provincia de Buenos Aires, posicionando uma de suas lideranças, o governador Axel Kicillof como nome forte para sucessão pós-Milei. O peronismo guarda força política e eleitoral, sendo carro chefe da oposição a Milei; contudo, duas contradições o alcançam: como romper o modelo de dependência do FMI, revalidado na última gestão peronista de Fernandez e pelas tensões geradas por sua estratégia de “deixar sangrar” Milei. Ou seja, sua aposta passa longe de fomentar uma ação independente do movimento de massas.
Esse é o mesmo dilema que tem a maioria do movimento sindical, que depois de duas greves gerais com adesão, entrou em “modo de espera”. A burocracia sindical sabe que é um ator central e por isso mesmo sempre aposta na estratégia de negociação e desgaste.
A esquerda radical, que na Argentina tem um peso importante na vanguarda, com influência eleitoral em alguns setores de massa, tem um desafio, que, ao mesmo tempo, é seu limite. Como romper o seu teto político e eleitoral e se transformar numa força dirigente capaz de hegemonizar o sentimento a favor da soberania nacional para impor uma nova agenda no país. Ou melhor, como massificar a resistência social e política para que essa finalidade esteja presente na luta contra Milei.
Três cenários abertos para domingo
Milei está numa corrida desesperada para usar do socorro de Trump e evitar uma derrota que imploda seu governo e seu plano.
A favor de sua tática estão os 20 bilhões e certa aceitação da burguesia argentina de que é o “único caminho”. Como fatores contrários pesam a última derrota regional, os três escândalos de corrupção que debilitaram a imagem de seu governo (o da venda ilegal de criptomoedas, a corrupção envolvendo sua irmã, Karina e a recente renúncia do seu candidato principal, Espert, por vínculos com o tráfico de drogas), a instabilidade que os argentinos acompanham na cotação do dólar e o mais importante, a retração das condições de vida da população.
As pesquisas eleitorais são muito desiguais. Algumas prospectam um empate nacional, onde possa existir um equilíbrio entre Milei e o peronismo. De toda forma, tudo muito imprevisível.
A depender dos resultados, poderemos ter três cenários:
– um empate ou vitória de Milei por poucos votos, o que seria o da sobrevivência. Onde o governo teria dificuldades, mas sairia relativamente inteiro para lutar por seu plano;
– um empate inclinado por algumas vitórias da oposição, onde seria o cenário de agonia, com o dia seguinte e as variáveis econômicas e cambiais pesando sobre o futuro do governo.
– um terceiro cenário seria uma derrota mais aberta do governo, onde poderíamos ter uma “crise prolongada”, abrindo uma nova situação política no país, com desdobramentos ainda mais tensos.
O fato é que derrotar o projeto Milei é central para derrotar a extrema direita e o plano Trump. E junto a isso seguir acompanhando o processo rico da esquerda e dos movimentos sociais argentinos, seja na sua expressão eleitoral – que hoje se agrupa na Frente de Esquerda Unidade, seja na sua recomposição política, onde agrupamentos como Ventos do Povo e outros espaços aparecem como novidades e apostas.