Movimento LGBTQIA+ e o esvaziamento da luta politica em Jundiaí
A dinâmica da luta por representatividade institucional na cidade resultou em um distanciamento entre “organizações” e suas bases sociais no último período
O Movimento Social LGBTQIA+ no Brasil possui uma trajetória marcada pela luta por reconhecimento, direitos civis e combate à violência e discriminação. Desde sua emergência mais organizada na década de 1970, o movimento transitou de pautas focadas na liberação sexual e costumes para uma agenda mais pragmática de direitos humanos e políticas públicas. Em Jundiaí, a dinâmica da luta se dá por uma visibilidade/representatividade institucional que no último período resultou em um distanciamento das “organizações” com as bases sociais e aprofundou uma articulação com os poderes públicos como central. Tais movimentos caminharam ainda para um esvaziamento da luta política ideológica, focando na luta institucional, que pode levar a despolitização do movimento, neutralizando seu potencial transformador.
A partir do processo de redemocratização e após a virada do século XXI, o movimento LGBTQIAPN+ brasileiro intensificou sua interação com o Estado, buscando a formulação de políticas públicas e a criação de marcos legais. Este processo de institucionalização envolveu a criação de conselhos, programas específicos e, em nível municipal, a incorporação de eventos da agenda da comunidade no calendário oficial.
Em Jundiaí, a existência do mês da Diversidade e a realização da Parada do Orgulho LGBTQIAPN+ com apoio governamental são exemplos da institucionalização de pautas e como, a partir dela, a luta se distância da rua. Embora essas conquistas representem vitórias importantes para a visibilidade e o combate inicial ao estigma, elas também introduzem um risco de mudança do seu caráter.
Essa mudança ocorre quando o Estado ou a estrutura política local seleciona e apoia as pautas que são mais palatáveis à maioria social ou menos incômoda em termos de transformação estrutural. A “festa do orgulho” ou a “aceitação” de maneira simbólica, ainda que importante, pode criar uma cortina de fumaça, esvaziando o protesto e a demanda por políticas de justiça social que são inerentes à luta de grupos historicamente marginalizados.
A inclusão no calendário da cidade transforma o protesto em aceitação da celebração. Onde havia a reivindicação radical pela desconstrução das normas de gênero e sexualidade, passa a haver o reconhecimento formal da “diversidade”. Os Estados/Cidades, ao abraçar o evento, podem estar praticando uma “tolerância” que é seletiva e instável, aceitando a imagem colorida do Orgulho, mas negligenciando as políticas estruturais.
A Parada, por exemplo, embora vital, pode ser reduzida a um evento festivo que celebra a “diversidade” de forma superficial, sem que a esfera pública ou a sociedade local seja efetivamente pressionada a resolver problemas graves, tais como: vulnerabilidade das pessoas trans, ausência ou precariedade de políticas municipais específicas para a empregabilidade da comunidade, acolhimento e saúde da população travesti e transexual. Segurança Pública: A ineficácia no combate aos crimes de LGBTfobia, que persistem mesmo com o avanço da criminalização em âmbito federal. Educação: A dificuldade em implementar programas de combate à LGBTfobia e evasão escolar em nível local, frequentemente barrados por resistências conservadoras na Câmara e na sociedade.
A filósofa Judith Butler oferece ferramentas conceituais cruciais para entender como a própria forma de se organizar e reivindicar direitos pode ser capturada pelas normas hegemônicas. O movimento LGBTQIAPN+ frequentemente se engaja na performatividade política, ou seja, a afirmação de uma identidade (lésbica, gay, bissexual, trans…) para reivindicar o reconhecimento. A Parada do Orgulho, por exemplo, é um ato performativo de massiva visibilidade, que enche os espaços em que ocorrem, e com ampla participação da população trans, mas que não muda o fato do Brasil ser o país que mais mata pessoas trans no mundo, há 16 anos (ANTRA). Não altera o fato de que 82% da população trans, entre jovens de 14 a 18 anos, devido à transfobia, assédio e violência dentro do ambiente escolar, evade das escolas. Ainda, representam apenas cerca de 0,3% dos universitários federais, segundo o Gemaa, e uma pesquisa da Antra indicou que 70% da comunidade não concluiu o ensino médio, com apenas 0,02% chegando ao ensino superior.
Para Butler, a luta política não deve se contentar com o mero reconhecimento de que o grupo existe; ela deve expor e combater a precariedade das vidas que o sistema insiste em marginalizar. O esvaziamento, neste sentido, não é a inatividade do movimento, mas sim a neutralização do seu potencial subversivo pela via da “aceitação” simbólica.
Crítica à Representatividade Vazia
A demanda por representatividade no movimento LGBTQIAPN+ é complexa, pois se baseia, na maior parte dos casos, na premissa de que a inclusão de indivíduos marginalizados em espaços de poder é sinônimo de avanço. A ascensão de alguns indivíduos LGBTQIAPN+ a posições de destaque não garante a emancipação da comunidade como um todo e corre o sério risco de se tornar uma inclusão vazia, que falha em garantir a efetivação de direitos e a segurança material para a maior parte da comunidade.
O descolamento entre o reconhecimento formal e a mudança material. O sistema de representação, ao cooptar a diversidade, pode focar apenas em reformas superficiais, como a celebração de marchas e o uso de bandeiras, sem desmantelar as estruturas de poder que perpetuam a desigualdade. A representatividade pode ser apenas um símbolo de tolerância que legitima um status quo opressor. A verdadeira garantia de direitos requer uma luta focada na transformação radical da estrutura socioeconômica e legal, uma luta que deve rejeitar a inclusão simbólica em favor da autonomia e do poder político real das comunidades mais marginalizadas.
Malcolm X, já questionava a inclusão simbólica nas estruturas de poder, se seria era um caminho real para a libertação, apontando que a mera representatividade não equivale a poder real. A presença de figuras da comunidade sem um programa político de ruptura do sistema serve mais para legitimar o sistema do que para promover uma transformação social efetiva, da vida das pessoas mais vulnerabilizadas. Assim como no dilema do “Voto ou a Bala”, a participação política só é eficaz se for sustentada por uma base social autônoma e combativa, capaz de exercer pressão radical e autodeterminação, em vez de depender da mera aceitação e chancela do poder hegemônico para garantir os direitos e o controle das próprias pautas.
A Captura Neoliberal da Luta LGBTQIA+
O neoliberalismo representa um desafio estrutural para o movimento LGBTQIA+, pois se trata de uma ideologia que captura as pautas para atribuir uma lógica com viés mais consumista e de esfacelamento da vida coletiva, visando perpetuar em novos moldes as opressões e explorações do sistema capitalista. Ao invés de buscar a transformação radical das estruturas sociais que geram a opressão, o sistema incentiva a identidade como nicho de consumo e individualizante transformando a diversidade em commodity.
O evento, que nasceu como um ato de revolta e protesto contra a marginalização policial, é transformado em uma festa patrocinada, onde a capacidade de celebrar e ter “orgulho” é mediado por um lugar de segregação. A criação dessas áreas segregadas materializa a exclusão e a estratificação de classe dentro do próprio movimento, fortalecendo uma ideia de privilégio e construindo uma “elite” LGBTQIAPN+ ofuscando a precariedade vivida pela maioria.
Tais ações têm o efeito direto de esvaziar a luta política ao priorizar o reconhecimento ao invés de organizar essas pessoas para lutar por políticas públicas estruturais (como saúde pública humanizada ou ações afirmativas) e mudança do sistema que oprime e explora. O foco migra da luta por direitos humanos universais para a celebração da aceitação cosmética, enquanto o racismo, a transfobia e a violência de classe persistem inalterados na base da pirâmide social. O neoliberalismo, portanto, não apenas coexiste com a diversidade, mas a instrumentaliza, transformando o protesto em produto e substituindo a busca por justiça social pela otimização do lucro.
A diversidade em luta contra as estruturas no território de Jundiaí/SP
A transição de uma agenda focada na representatividade simbólica para uma luta estrutural é crucial para o movimento LGBTQIAPN+ em Jundiaí. A comunidade, organizações, movimentos sociais, devem rejeitar a ilusão de que a mera inclusão em um sistema capitalista e burguês resolverá as opressões e preconceitos, e passar a compreender a marginalização da comunidade LGBTQIAPN+ como profundamente entrelaçada com as contradições de classe e a exploração do trabalho.
A precariedade das vidas, o desemprego ou a exploração através de empregos precarizados, a falta de moradia e o acesso limitado à saúde de qualidade, que afetam desproporcionalmente a população LGBTQIAPN+ mais pobre, não são meros acidentes sociais, mas sim resultados diretos da lógica de acumulação capitalista que preza o lucro acima da vida humana. Portanto, a luta local deve ir além de demandas identitárias superficiais, focando na desalienação e na transformação das relações de produção, reconhecendo que a verdadeira libertação de gênero e sexualidade está intrinsecamente ligada à emancipação da população.
Nesse contexto, a organização de movimentos sociais e demais organizações populares, que tenham um firme e sincero compromisso com a pauta LGBTQIAPN+, devem atuar como vanguarda de base, construindo uma consciência de classe interseccional que una as pautas de gênero e sexualidade com a luta antirracista e anticapitalista. A importância reside na capacidade desses grupos de romper com a cooptação estatal, estrutural do sistema capitalista, mantendo a autonomia para pressionar por mudanças radicais como políticas de renda, trabalho, moradia e alimentação de qualidade, com cortes de classe e raça definidos.
Em Jundiaí, o desafio é construir uma força política que não se contente com a gestão da miséria ou a aceitação simbólica, mas que promova a mobilização das massas oprimidas para a conquista de um poder popular que subverta o sistema, garantindo direitos sociais plenos e o fim da exploração para todos, independentemente de sua identidade ou orientação.