“O mundo está em um precipício: podemos cair ou construir algo melhor” – Entrevista com Zuksiwa Wanner
Entrevista com Zuksiwa Wanner, escritora e ativista sul-africana, presa pelo Estado de Israel quando participava da Global Sumud Flotilla
A África do Sul é um dos países que está na vanguarda na solidariedade à Palestina. Por sua localização e história, de quem combateu o regime do Apartheid e o colonialismo, o país, sua sociedade e movimentos sociais, se destacam pelo combate ao genocidio.
O país tomou a dianteira ao denunciar o Estado de Israel pelo crime de genocídio na Corte Internacional de Justiça (CIJ). Depois, ainda em 2023, o parlamento sul-africano aprovou uma moção simbólica pelo rompimento de laços diplomáticos com Israel e o fechamento das embaixada em Pretória. O presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, comparou as ações de Israel ao apartheid.
Vê-se em todos país, na cultura e nas camadas mais amplas do povo, um expressivo apoio ao povo palestino. Desde grafites em conjuntos populares em cidades como Cidade do Cabo e Joanesburgo à manifestações continuas massivas, o povo sul-africano tem sido presente no movimento mundial de solidariedade à Resistência Palestina.
Em relação a Global Summud Flotilha, também se notou tal presença: vários ativistas sul-africanos estiveram presentes na Flotilha, entre eles, Mandla Mandela, neto do líder histórico Nelson Mandela. Uma das personalidades destacadas que esteve na delegação da Flotilha foi Zuksiwa Wanner, premiada e reconhecida escritora e jornalista sul-africana.
Zukiswa Wanner é escritoa, ensaísta, editora e curadora, Zukiswa Wanner nasceu em Lusaka, na Zâmbia, filha de um sul-africano exilado e de uma zimbabweana. Cresceu no Zimbabwe e formou-se em jornalismo na Hawai’i Pacific University no Havaí, EUA.
Compartilhamos uma entrevista realizada apenas dias após a sua chegada, depois de ficar presa nas masmorras israelenses, aproveitando uma gira que fizemos no país sul-africano, como parte do processo para se relacionar e aprofundar nossas relações nesse continente
Israel Dutra (Esquerda em Movimento): Em primeiro lugar, muito obrigado, Zukiswa. Fui informado que você é uma internacionalista admirada pelos povos do mundo, no Brasil e na África do Sul, como os que estiveram na Global Sumud Flotilla.
Zukiswa Wanner: Muito obrigada, camarada.
Israel Dutra (Esquerda em Movimento): Como se articulou o movimento de solidariedade na África do Sul, do qual você e Mandla Mandela foram parte participando da flotilha?
Zukiswa Wanner: Sabe, eu acho que nós entendemos a solidariedade não apenas com a Palestina, mas com o Sul Global em geral. Eu sempre digo que a Palestina é o ponto zero, mas o inimigo é o capitalismo. E, assim como acontece na África do Sul, onde a classe trabalhadora é levada a acreditar que não é bem-sucedida por causa das pessoas dos países vizinhos, eu vi exatamente a mesma coisa acontecer no Brasil.
As favelas do Brasil e os townships da África do Sul estão inundados de armas e drogas. Mas nenhuma das pessoas que vivem nas favelas ou nos townships realmente fabricam essas armas, nem tem como trazer essas drogas de onde quer que venham. Então, essas são as mesmas armas que, na maior parte do tempo, vemos sendo testadas nos palestinos.
Israel Dutra (Esquerda em Movimento): Como foi a experiência de quase mais de um mês no mar, aproximando-se de Gaza e depois sendo presa? Como foi isso para você?
Zukiswa Wanner: Estar na flotilha foi uma experiência de grande camaradagem. Eu acho que, muitas vezes, ao assistirmos a esse genocídio acontecer, caímos na armadilha de pensar que a luta é algo localizado, que sou só eu que enxergo isso. Mas, estando agora com todas essas pessoas diferentes — no meu barco, por exemplo, éramos 15 pessoas de sete países diferentes, você percebe como há pessoas de diferentes partes do mundo, mas com um só coração
Eu acho que, nesse momento, você percebe que, mesmo estando frustrado com eles, do Lula, do Cyril, do Trump, nenhum deles tem tanto poder quanto nós, o povo.
Israel Dutra (Esquerda em Movimento): Fale um pouco mais sobre isso.
Zukiswa Wanner: Certo. Então, mesmo antes de eu embarcar em Túnis, antes mesmo de subirmos nos barcos, uma das coisas que notei foi como o povo em Túnis estava unido. Na noite em que um dos barcos foi atacado por um drone, o que aconteceu foi que as pessoas não se intimidaram. O povo de Túnis foi até o cais, até o porto, gritando e dizendo: “Nós vamos. Não temos medo de vocês.”
Isso foi uma coisa. E depois, nós que estávamos na flotilha, quando perguntaram: “Vocês querem ir?”, o problema não foi que as pessoas desistiram. O problema foi que mais pessoas queriam ir, porque não íamos deixar que nos intimidassem.
E então, por causa dos ataques, dos ataques de drones contra os dois barcos, tivemos que ficar mais tempo. Por isso, precisávamos sair de onde estávamos hospedados. Quando nos mudamos para o novo local, havia uma casa para os sul-africanos, uma para os homens e outra para as mulheres. E uma das coisas mais interessantes foi quando uma pessoa do nosso grupo foi comprar, acho que comida, e o dono da loja se recusou a aceitar o pagamento assim que descobriu que éramos sul-africanos.
Israel Dutra (Esquerda em Movimento): Uma solidariedade prática.
Zukiswa Wanner: Com certeza. E então, quando fomos interceptados, estávamos ali sentados e depois nos levaram para o porto de Ashdode. Ficamos do lado de fora e eles mandaram a gente calar a boca, ficar em silêncio. E em determinado momento, Ben-Gvir chegou. E quando ele apareceu, querendo fazer um discurso, no instante em que todos o viram ali na frente, começaram a gritar: “Palestina livre!”
Israel Dutra (Esquerda em Movimento): Que lindo.
Zukiswa Wanner: E todos continuaram gritando isso o tempo todo e, claro, ele nunca conseguiu falar. Então ele foi embora, porque tinha vindo com câmeras e, como não pôde discursar, acabou saindo.
Mas, assim que ele foi embora, claro que fomos punidos. Colocaram algemas de plástico em nós e ficamos sentados ali por horas. Mas posso garantir que, se ele tivesse voltado, a mesma coisa teria acontecido novamente.
Ah, sim, e então, aquele pequeno incidente que eu contei com uma jovem, você sabe da história. Quando entrei e perguntei aos militares: “Israel é um Estado racista?” Depois que nos ficharam, primeiro não nos permitiram ver advogados enquanto estávamos lá, enquanto nos interrogavam. Acho que posso ter sido a única pessoa que realmente viu uma advogada, porque a advogada estava chegando justamente quando eu me sentei. Ela imediatamente perguntou: “Você quer ver um advogado?” e eu respondi: “Sim.” Aí eles perguntaram: “Cadê seu advogado?” e eu disse: “Minha advogada está bem aqui.” Então acho que posso ter sido uma das poucas pessoas que viu uma advogada.
Isso é engraçado. Quando estavam nos retirando, entrando e revistando nossas coisas, passando tudo pela segurança, eles pegaram minha camiseta e me deram uma branca, porque minha camiseta dizia “África pela Palestina”. Então, eles confiscaram a minha. Mas o que aconteceu é que eu só tinha uma bolsinha pequena, como a que eu tenho, e dentro dela havia mais duas camisetas dobradas, batom, gloss, perfume e algumas outras coisas. Eles levaram tudo isso, além dos meus brincos. Mas a pessoa que estava revistando deixou minhas duas camisetas que estavam dentro da bolsa. Essas são as duas camisetas que eles não levaram. Esta aqui é só verde na frente. E esta outra tem escrito isto na frente: “Se levante, resista”
Não, mas é isso que está escrito nas costas. Vê? Esta aqui mostra o mapa de Gaza antes de ser destruída. Então, era uma camiseta ainda mais revolucionária do que a “África pela Palestina”.E esta aqui: “Boicote ao Apartheid de Israel”. Então, essas são as duas camisetas que eu trouxe de volta, cortesia dos sionistas.
Israel Dutra (Esquerda em Movimento): Enganou o sionista! – eis que alguém pergunta porquê todos os sequestrados pelo Estado de Israel voltarem aos seus países com camisetas brancas.
Zukiswa Wanner: Essas são as camisetas de prisão que eles nos deram. Então, decidimos que faríamos… como se diz… E você sabe qual é a ironia dessas camisetas brancas? Ah, antes deixa eu contar.
Eles nos colocaram em ônibus durante a noite e chegamos a Ketziot, no deserto de Negev. Nos colocaram em uma cela — era bem pequena e estávamos muito apertados. Estava quente. Chamaram cada um de nós, um por um, e nos levaram para uma sala. Lá, nos disseram para tirar nossas roupas e vestir o uniforme de prisão. Eles nos deram roupas íntimas, uma camiseta branca, um moletom cinza e uma calça cinza.
Israel Dutra (Esquerda em Movimento): É, como em Brasil, com brasileiros. Chegaram com essas roupas.
Zukiswa Wanner: Mas a camiseta, sabe, isso é importante para as relações do BRICS, foi fabricada na Índia. Enfim, quando me deram o moletom e a calça, eram pequenos, então pedi um tamanho maior. Havia uma mulher do Egito e outra da Turquia comigo, e elas [as militares do exército sionista] estavam dizendo a todos para tirarem os hijabs. A mulher egípcia disse: “Eu não vou sair daqui sem meu hijab. Eu me recuso. Vou ficar sentada.” Ela foi a primeira a falar com tanta firmeza com eles. Depois, Iqbal, da Turquia, também disse: “Eu também não vou a lugar nenhum sem meu hijab.” A partir desse momento, eles tiveram que permitir que todos pudessem usar seus hijabs.
E então eu disse a elas, “Não, esta é outra “Botox Betty”, né?” A segunda era muito rígida, muito zangada, muito infeliz. Os sionistas são pessoas muito infelizes, estão sempre gritando. Então eu perguntei: “Posso ir ao banheiro?” A outra mulher tinha ido buscar roupas que servissem. Mas ela se recusou. Quando a outra voltou, eu disse: “Olha, quero ir ao banheiro, mas sua colega não me deixa.” E ela respondeu: “Não, você não pode ir.” E eu disse: “Tudo bem, então vou fazer xixi aqui mesmo, porque estou grávida.”
Então essa outra disse: “Não, vamos lá.” Então fomos. Ela disse: “Você tem dois minutos.” Eles gostam de falar “um minuto, dois minutos”. Fui ao banheiro, voltei, e então me deram minhas roupas. Vesti-as e fomos para outra cela. Quando cheguei lá, a Rabab, do Egito, veio me abraçar, e eu perguntei: “Por quê?” Ela disse: “Ah, você está grávida.” Eu respondi: “Não, não estou.”
Fomos levados às celas. Na nossa cela éramos 10 pessoas, cinco camas, mas 10 pessoas. Eles deram sete colchões. Havia pessoas da Suíça, Brasil, Japão, Marrocos, Síria, África do Sul, França, Alemanha, Bélgica e Itália. Três pessoas se chamavam Maryam. O mais novo era um psicólogo suíço de 30 anos, e o mais velho tinha 78 anos, da Itália. Havia também uma belga-libanesa de 53 anos que trabalha na Comissão Europeia. Ela disse: “Provavelmente vou ser demitida quando voltar, mas nunca me senti tão livre.”
Então comecei a recitar para ela as primeiras linhas de um poema de Mahmoud Darwish. Dizia:
É possível andar de cavalo numa cela de prisão e fugir
É possível que as paredes da prisão desapareçam.
Que a cela se torne uma terra distante, sem fronteiras.
Ah, o que fizeste com as paredes?
Devolvi-as às pedras.
E o que fizeste com o teto?
Tornei-o numa sela.
E as algemas?
Transformei-as em um lápis.
O guarda da prisão ficou zangado.
Terminou o meu diálogo.
Ele disse que não gosta de poesia.
E trancou a porta da minha cela.
Voltou para me ver de manhã.
Gritou comigo.
Esta água veio de onde?
Trouxe-a do Rio Nilo.
E as árvores?
Das hortas de Damasco.
E a música?
Do meu batimento do coração.
O guarda da prisão ficou zangado.
Terminou o meu diálogo.
Ele disse que não gostava da minha poesia.
E trancou a porta da minha cela.
Mas ele voltou à noite.
Esta lua veio de onde?
Da noite de Bagdá
E o vinho?
Dos vinhedos de Argel.
E esta liberdade?
Das algemas com que me prenderam na noite passada.
Então o guarda ficou triste.
Pediu que eu lhe devolvesse a sua liberdade.
Zukiswa Wanner: Tenho muita esperança, em parte por conversas como esta e também porque hoje mesmo estava falando com camaradas de todo o mundo, perguntando: “Vamos nos encontrar em dezembro para o G20 para protestar?”
Acredito que nós, povos do mundo, somos poderosos como grupo. Não percebi o quanto até ir para a flotilha. O mundo está em um precipício: podemos cair ou construir algo melhor. E com mais pessoas como as que conheci na flotilha, podemos escolher a direção certa.
Também vi momentos incríveis de solidariedade e resistência na prisão. Pessoas do Sul Global estão acostumadas a resistir; do Norte Global, geralmente não. Na primeira noite, fomos obrigados a ficar contra a parede a cada duas horas, com cães e armas com lasers. Fizemos isso na primeira noite, mas na segunda nos recusamos. Eles disseram: “Vamos colocar vocês na prisão?” E nós respondemos: “Estamos aqui. O que vocês vão fazer?” E não nos incomodaram mais.
E então nos deixaram sair. Havia uma placa que dizia que os prisioneiros deveriam ter uma hora fora e poder fumar. Mas nos liberaram apenas 15 minutos para tomar banho. Aí nós dissemos a eles: “A placa diz, nós conseguimos ler, que deveríamos ter uma hora fora e poder fumar um cigarro.”
Eles responderam: “Vocês não são prisioneiros, são ativistas.” E nós dissemos: “Ok.”
Como havia alguém que não tinha recebido atendimento médico, e nós tínhamos pedido um médico durante toda a noite anterior, sentamos e nos recusamos a voltar para as celas até que um médico aparecesse.
E então, acho que o último episódio, que foi particularmente interessante, foi quando tentaram nos obrigar a assistir àquele filme sobre 7 de outubro, aquele muito mal feito. Uma das mulheres é musicista, e ela transformou o filme em música, usando o áudio do filme, e começou a cantar uma canção sobre “Palestina Livre”.
E então, quando fomos levados para ver o juiz, nos chamavam aos poucos. Enquanto esperávamos, estávamos diante de um guarda. Acho que foi a Yasmin quem lhe perguntou: “Por que vocês estão matando crianças?” E ela continuava, sabe?
Eu olhei para ele e disse: “Escute, você pode matar pessoas, prender, mutilar, mas não pode nos obrigar a amar você. Todo mundo no mundo te odeia.” Ele ficou muito zangado e gritou: “Cale a boca.” Uma última coisa: conheci minha amiga de escola Tafadzwa, do Zimbábue. Ela foi presa por Mugabe. No Brasil, as pessoas têm uma visão distorcida dos movimentos nacionalistas africanos, e pessoas como ela ajudam a abrir mentes. Adoraria! E vocês precisam conhecer nossos camaradas.