Em um ano de peste

Sobre os impactos da pandemia no sistema de saúde estadunidense e dos países da periferia.

Mike Davis 3 abr 2020, 15:22

Enquanto o coronavírus se espalha rapidamente pelo mundo, ultrapassando nossa capacidade de testes e, sobretudo, de tratamento, o monstro que há muito tempo se antecipava está finalmente a nossa porta. Com o capitalismo global tão impotente para enfrentar essa crise biológica, nossas demandas devem ser por uma infraestrutura internacional de saúde pública apropriada.

Coronavírus é aquele velho filme a que nós estamos sempre assistindo desde que o livro de Richard Preston The Hot Zone, de 1994, nos introduziu ao demônio da exterminação, nascido em uma misteriosa caverna de morcegos na África Central, conhecido como ebola. É apenas o primeiro de uma sucessão de novas doenças surgidas no “campo virgem” (esse é o termo adequado) dos inexperientes sistemas imunológicos da humanidade. O ebola foi logo sucedido pela gripe aviária, que atacou os humanos em 1997, e a SARS que emergiu no final de 2002: nos dois casos ele apareceu primeiro em Guandong, o centro manufatureiro global.

Hollywood, é claro, abraçou lascivamente esses surtos e produziu uma série de filmes para nos excitar e assustar (Contágio, de Steven Soderbergs, lançado em 2011, se destaca por sua acuidade científica e estranha antecipação do caos atual). Além dos filmes e dos inumeráveis romances lúgubres, centenas de livros sérios e milhares de artigos científicos responderam a cada surto, muitos deles enfatizando o terrível estado de prevenção global para detectar e responder a cada uma das novas doenças.

Caos numérico

Então, o coronavírus passa pela porta da frente como um monstro familiar. Sequenciar o seu genoma (muito familiar a sua muito estudada irmã SARS) foi fácil, embora os mais vitais bits de informação ainda estejam faltando. Enquanto pesquisadores trabalham noite e dia para caracterizar o surto, eles encaram três enormes desafios. Primeiro, a contínua escassez de kits de teste, especialmente nos Estados Unidos e na África, impediu estimativas precisas de parâmetros fundamentais como a taxa de reprodução, o tamanho da população infectada e o número de infecções benignas. O resultado foi um caos numérico. 

Segundo, assim como as gripes anuais, o vírus sofre mutações ao ser transmitido através de populações de diferente composições etárias e de condições de saúde. A variedade que os estadunidenses são mais suscetíveis de contrair já é minimamente diferente daquela do surto inicial em Wuhan. Mutações posteriores podem ser benignas ou podem alterar a atual distribuição de virulência, que agora atinge acentuadamente aqueles com mais de cinquenta anos. O “resfriado corona” de Trump é, no mínimo, um perigo mortal para o quarto da população estadunidense que é idosa, tem sistemas imunológicos fracos ou problemas respiratórios crônicos.

Terceiro, mesmo se o vírus permanecer estável e sofrer apenas pequenas mutações, seus impactos nos grupos de pessoas mais novas pode diferir radicalmente em países pobres e entre grupos de extrema pobreza. Considere a experiência global da “gripe espanhola” de 1918 e 1919, que se estima ter matado de um a dois por cento da humanidade. Nos Estados Unidos e na Europa, a H1N1 original era principalmente mortífera nos jovens adultos. Isso foi explicado inicialmente como o resultado de seus sistemas imunológicos relativamente fortes, que sobrerreagiam à infecção atacando células do pulmão, o que levava a pneumonias e choques sépticos. Mais recentemente, contudo, alguns epidemiologistas teorizaram que adultos mais velhos podem ter tido uma “memória imunitária” de um surto anterior nos anos 1890 que teria dado proteção a eles.

Em qualquer dos eventos, a gripe encontrou um nicho favorecido em campos do exércitos e trincheiras de batalha onde elas ceifaram a vida de dezenas de milhares de jovens soldados. Isso se tornou um fator importante na batalha dos impérios. O colapso do Grande Ofensiva Germânica, da primavera de 1918, e logo o resultado da guerra, foi atribuído ao fato dos Aliados, em oposição aos seus inimigos, terem podido reabastecer seus exércitos doentes com novas tropas estadunidenses.

Mas a gripe espanhola teve um perfil diferente em países pobres. É raramente estimado que quase sessenta por cento da mortalidade global (isto é, ao menos vinte milhões de mortes) ocorreram em Punjab, Mumbai e outras partes da Índia ocidental, onde exportações de grãos para a Grã-Bretanha e brutais práticas de requisições coincidiram com uma forte seca. O resultado foi que a escassez de alimentos levou milhões de pessoas à beira da fome. Elas se tornaram vítimas de uma sinergia sinistra entre subnutrição – que suprimiram a resposta imune à infecção – e uma desenfreada pneumonia viral e bactericida. Em um caso parecido no Irã sob ocupação britânica, muitos anos de seca, cólera e escassez de alimentos, seguidos pela difusão de um surto de malária, pré-condicionaram a morte de um quinto da população.

Essa história – especialmente as desconhecidas consequências das interações com a subnutrição e infecções existentes – deve nos alertar para o fato do COVID-19 poder tomar um caminho diferente e mais mortal nas densas e doentias favelas da África e da Ásia meridional. Com casos aparecendo agora em Lagos, Kigali, Addis Ababa e Kinshasa, ninguém sabe (e não saberá por algum tempo por conta da falta de testes) como eles vão se relacionar com as condições de saúde e doenças locais. Alguns argumentaram que, por conta da população urbana da África ser a mais jovem do mundo, a doença pandêmica teria só um suave impacto. Sob a luz da experiência de 1918, essa é uma extrapolação tola, assim como a suposição de que pandemias, como a gripe sazonal, irão retroceder em climas mais quentes (Tom Hanks acaba de contrair o vírus na Austrália, onde ainda é verão).

Um Katrina médico

Daqui a um ano, nós talvez olharemos com admiração o sucesso da China em conter a pandemia e com horror para o fracasso dos Estados Unidos. (Eu estou fazendo a suposição de que a heroica declaração da China a respeito do rápido declínio da transmissão é mais ou menos precisa). A inabilidade de nossas instituições em manter a caixa de Pandora fechada, é claro, não é uma surpresa. Desde 2000 nós vimos repetidos colapsos na linha de frente do sistema de saúde.

Tanto as temporadas de gripe de 2009 quanto a de 2018, por exemplo, superlotaram hospitais ao redor do país, expondo a chocante escassez de leitos hospitalares depois de anos de cortes que visavam ao lucro na capacidade de acolhimento de pacientes. A crise data da ofensiva corporativa que trouxe Reagan ao poder e converteu os líderes democratas em suas embocaduras neoliberais. De acordo com a American Hospital Association, o número de leitos hospitalares declinou extraordinários 39 por cento entre 1981 e 1999. O propósito era aumentar lucros ao aumentar o “census” (o número de leitos ocupados). Mas o objetivo administrativo de uma taxa de 90 por cento de ocupação significa que os hospitais não tinham mais capacidade de absorver o influxo de pacientes durante epidemias e emergências médicas.

No novo século, a medicina de emergência tem continuamente sido reduzida pelo setor privado pelo imperativo do “valor para o acionista” de crescimento dos lucros e dividendos a curto termo e, no setor público, pela austeridade fiscal e pelos cortes na preparação dos orçamentos estaduais e federais. Como resultado, há apenas 45 mil leitos de UTI disponíveis para lidar com a projeção do fluxo de casos sérios e críticos de coronavírus. (Em comparação, os sul-coreanos têm disponível mais de três vezes mais leitos em relação a sua população que os estadunidenses). De acordo com uma investigação realizada pelo USA Today: “apenas oito estados teriam leitos hospitalares suficientes para tratar o um milhão de estadunidenses de mais de 60 anos que podem se adoecerem com a COVID-19”.

Nós estamos nos estágios iniciais de um Katrina médico. Desinvestir em preparações médicas emergenciais ao mesmo tempo em que toda opinião especializada tem recomendado uma maior expansão da capacidade faz faltar suplementos elementares assim como leitos emergenciais.

Estoques nacionais e regionais se mantiveram a níveis muito mais baixos do que o indicado por modelos epidemiológicos. Então, o fiasco do kit de testes coincidiu com uma escassez de equipamentos de proteção básicos para trabalhadores da saúde. Enfermeiros militantes, nossa consciência social nacional, têm certeza de que nós entendemos os graves problemas criados por inadequados estoques de suprimentos de proteção como as máscaras N95. Eles também nos lembram que hospitais se tornaram estufas de superbug resistentes a antibióticos com o C. difficile, que podem se tornar grandes assassinos secundários em enfermarias hospitalares superlotadas.

A divisão social        

O surto expôs instantaneamente a forte divisão de classe na saúde que a Our Revolution colocou na agenda nacional. Em suma, aqueles que dispõem de bons planos de saúde e que também podem trabalhar ou dar aulas de casa estão confortavelmente isolados, desde que sigam prudentemente as recomendações. Funcionários públicos e outros grupos de trabalhadores sindicalizados com cobertura decente terão que fazer difíceis escolhas entre renda e proteção. Enquanto isso, milhões de trabalhadores de serviços de baixos salários, empregados rurais, desempregados e sem-tetos estão sendo jogados aos leões.

Como todos nós sabemos, cobertura universal em qualquer sentido justificativo requer provisão universal para licença-saúde paga. Quarenta e cinco por cento da força de trabalho têm atualmente este direito negado e, portanto, estão virtualmente compelidos a transmitir a infecção ou a não ter o que comer. Da mesma forma, quatorze estados republicanos recusaram-se a decretar a provisão do Affordable Care Act, que expande a Medicaid aos trabalhadores pobres. É por isso que um em cada quatro texanos, por exemplo, não tem cobertura e possui apenas a sala de emergência do hospital local para buscar tratamento.

As contradições mortais do sistema privado de saúde em tempos de peste se expõem mais duramente na lucrativa indústria de casas de repouso, que abriga 2,5 milhões de idosos estadunidenses, a maioria deles no Medicare. É uma indústria altamente competitiva capitalizada a partir de baixos salários, falta de pessoal e corte de custos ilegais. Dezenas de milhares morrem todos os anos por conta da negligência das instalações de procedimentos básicos de controle de infecção e da falência dos governos em manter uma gestão responsável, no que só pode ser descrito como homicídio deliberado. Muitas casas – particularmente nos estados do sul – acham mais barato pagar multas por violações sanitárias do que ter que contratar pessoal adicional e treiná-lo adequadamente.      

Não surpreende que o primeiro epicentro de transmissão comunitária nos Estados Unidos tenha sido o Life Care Center, um lar de idosos em Kirkland, no subúrbio de Seattle. Eu conversei com Jim Straub, um velho amigo sindicalista das casas de repouso de Seattle, que está escrevendo um artigo sobre elas para a Nation. Ele caracterizou a instalação como “uma com os piores funcionários do estado” e todo o sistema de casas de repouso de Washington como “o mais subfinanciado no país – um absurdo oásis de sofrimento austero em um mar de dinheiro de tecnologia”.          

Além disso, ele apontou que os oficiais públicos de saúde estavam negligenciando o fator crucial que explica a rápida transmissão da doença do Life Care Center para outras dez casas de repouso ali perto: “Trabalhadores de casas de repouso da região do aluguel mais caro dos EUA normalmente trabalham em muitos empregos, em diferentes casas de repousos”. Ele afirma que autoridades falharam em encontrar os nomes e locações desses segundo empregos e assim perderam o controle da propagação do COVID-19. E ninguém está até o momento propondo compensar os trabalhadores expostos mantendo-os em casa.

Ao redor do país, dezenas, provavelmente centenas de outras casas de repouso se tornarão pontos de coronavírus. Muitos trabalhadores irão eventualmente optar pelo banco alimentar ao invés de trabalhar sob tais condições e ficar em casa. Nesse caso, o sistema vai entrar em colapso e nós não devemos esperar que a National Guard troque roupas de cama.

Solidariedade Internacional

A pandemia transmite, com cada passo de seu avanço mortal, a necessidade de cobertura universal e férias remuneradas. Enquanto Biden se afasta de Trump, os progressistas devem se unir, como Bernie propõe, para ganhar a convenção pelo Medicare for All. Os delegados de Sanders e Warren combinados têm um papel a cumprir no Fórum de Milwaukee’s Fiserv no meio de julho, mas o resto de nós temos um papel tão importante quanto nas ruas, começando as lutas contra despejo, demissões, e empregados que se recusam a compensar os trabalhadores de licença agora. (Medo de contaminação? Permaneça dez metros de distância do manifestante ao lado, e isso só criará uma imagem ainda mais forte na TV. Mas nós precisamos recuperar as ruas).

Mas a cobertura universal e demandas associadas são apenas um primeiro passo. É desapontador que, nos debates das primárias, nem Sanders nem Warren tenham chamado atenção para a abdicação da Big Pharma em pesquisar e desenvolver novos antibióticos e antivirais. Das dezoito maiores companhias farmacêuticas, quinze abandonaram completamente o campo. Remédios para o coração, calmante viciantes, e tratamentos para impotência masculina são líderes em lucros, mas não a defesa contra infecções hospitalares, doenças emergentes e tradicionais assassinos tropicais. Uma vacina universal para a influenza – quer dizer, uma vacina que mire as partes imutáveis da superfície proteica do vírus – é uma possibilidade há décadas mas nunca lucrativa o bastante para se tornar uma prioridade.

Enquanto a revolução antibiótica é jogada para trás, antigas doenças irão reaparecer junto a novas infecções, e hospitais se tornarão jazigos. Até mesmo Trump pode oportunisticamente ir contra absurdos custos de prescrição, mas nós precisamos de uma visão mais ousada que busque quebrar os monopólios das drogas e providenciar para o público produção de remédios que salvam vidas. (Isso costumava ser o caso: durante a Segunda Guerra Mundial, o exército alistou Jonas Salk e outros pesquisadores para desenvolver a primeira vacina contra gripe). Como eu escrevi quinze anos atrás no meu livro The Monster at Our Door – The Global Threat of Avian Flu:

Acesso a medicamentos que salvam vidas, incluindo vacinas, antibióticos e antivirais, deve ser um direito humano, universalmente disponível a nenhum custo. Se os mercados não podem providenciar incentivos a produção de baixo custo como medicamentos, então os governos e organizações sem fins lucrativos devem tomar a responsabilidade para a sua produção e distribuição. A sobrevivência dos pobres deve a qualquer momento receber maior prioridade que os lucros da Big Pharma.

A atual pandemia expande esse argumento: a globalização capitalista parece agora ser biologicamente insustentável na ausência de uma verdadeira infraestrutura internacional de saúde pública.

Isso necessita de um desenho socialista independente pela sobrevivência humana que vá além de um segundo New Deal. Desde os dias do Occupy, os progressistas colocaram sucessivamente a luta contra a desigualdade de renda e de saúde na primeira página, uma grande conquista. Mas agora os socialistas devem dar o passo seguinte e, tendo o sistema de saúde e as indústrias farmacêuticas como alvos principais, advogar a favor da propriedade social e da democratização do poder econômico.

Mas nós também precisamos fazer uma avaliação honesta de nossa fraqueza política e moral. Mesmo excitado como eu estava a respeito da evolução da esquerda dentre uma nova geração e o retorno da palavra “socialismo” no discurso político, existe um elemento perturbador de solipsismo nacional no movimento progressista que é simétrico com o novo nacionalismo. Nós falamos apenas da classe trabalhadora estadunidense e da história radical dos Estados Unidos (talvez esquecendo que Eugene Debs era um internacionalista em essência). Por vezes isso fica perto de uma versão de esquerda do America Firstism[1].

Abordando a pandemia, socialistas devem encontrar toda oportunidade para lembrar os outros da urgência da solidariedade internacional. Concretamente, nós precisamos agitar nossos amigos progressistas e seus ídolos políticos para reivindicar um massivo aumento da produção de kits de teste, suprimentos protetores, e medicamentos salva-vidas para a distribuição gratuita em países pobres. Cabe a nós assegurar que o Medicare for All se torne uma política não só interna como externa.

Este artigo faz parte da décima sexta edição da Revista Movimento. Originalmente publicado na revista Jacobin. Tradução de Pedro Micussi.

[1] Referência ao slogan America First, de Donald Trump. Nota do Tradutor.


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