Cultura é memória

A afirmação, no âmbito cultural, de uma identidade coletiva excludente e agressiva não encontra respaldo no projeto constitucional.

Isaque Castella 12 maio 2020, 17:09

Em 1988, ano de promulgação da nossa atual Constituição, a escola de samba Unidos de Vila Isabel levou para o carnaval da Marquês da Sapucaí o enredo “Kizomba”. A letra do samba da agremiação dizia “Esta Kizomba é nossa Constituição”. Propondo a desconstrução do mito em torno da generosidade da Princesa Isabel na abolição da escravidão e reconhecendo a luta histórica da negritude brasileira, a escola de Noel cantava contra o racismo e festejava o congraçamento de todas e todos na festa democrática e pluralista que marcava a transição política no Brasil.

O período imediatamente anterior, da ditadura militar, ficou caracterizado pela tentativa de conformação de uma identidade nacional homogeneizante, a partir do paradigma da assimilação, que implicava no apagamento das manifestações populares, indígenas e afro-brasileiras, ou seja, das diferenças étnico-culturais em prol de uma unidade nacional estranguladora das matrizes e raízes constitutivas da formação do que se diz “o povo brasileiro”.

Por sua vez, o constitucionalismo de 1988 assentou suas bases em uma perspectiva diversa, perpassando o que os constitucionalistas costumam chamar, no rastro de uma tradição habermasiana, de patriotismo constitucional. Tal conceito se atrela ao paradigma da alteridade e se materializa na afirmação de uma identidade coletiva mediada pela Constituição e calcada no reconhecimento da diversidade cultural, isto é, do outro enquanto outro e merecedor de igual proteção na sua singularidade. Consigo enxergar nesse compromisso uma proximidade com as éticas levinasiana e derridiana.

Ao tratar da cultura, o artigo 215 da Constituição Federal dispõe: “Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. O parágrafo primeiro é a expressão do novo paradigma ao dispor que “§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”. Ademais, o artigo 216 faz referência à ideia de “memória” como cultura, ao estabelecer como patrimônio cultural brasileiro os bens referentes à memória dos grupos formadores da sociedade brasileira.

E, nesse sentido, se dá a legítima perplexidade de muitas e muitos diante de posicionamentos como o da gestora federal da cultura que se propõe, de forma insensível, a dar as costas para a história, naturalizar práticas de tortura, se isentar de qualquer responsabilidade enquanto compromisso de quem herda, como diria Derrida, com a reparação histórica necessária e devida aos grupos que sofreram genocídios por parte do Estado brasileiro. E para piorar, se é possível, a mesma gestora demonstra ter apreço pelo paradigma assimilatório da ditadura militar ao cantar publicamente uma das canções apropriadas pelo ideário ufanista do regime autocrático. Tudo isso sob a égide da Constituição de 1988, que agora vemos mais nitidamente como marcou uma transição incompleta no Brasil.

Todavia, assistindo à live que reuniu sete escolas de samba do Rio de Janeiro, no último sábado, no barracão da Beija-Flor de Nilópolis, na Cidade do Samba, pude me deparar, mais uma vez, e com um sorriso esperançoso, com a discografia de agremiações como a própria Vila Isabel e, sobretudo, Portela e Mangueira. É impressionante como elas cantam a brasilidade de forma a refletir tão brilhantemente nossas raízes culturais. E isso me fez refletir muito em torno de como precisamos valorizar esse patrimônio que é o carnaval das escolas, que é o samba. Esse país é grande demais, e é grande na riqueza da diversidade de suas manifestações artísticas e étnico-culturais, bem como de vozes. É preciso ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês, como destaca o hino da verde-e-rosa de 2019, vez que hoje tão importante quanto dizer de lugar de fala é dizer de lugar de escuta. Nos escutemos, pois.


TV Movimento

Balanço e perspectivas da esquerda após as eleições de 2024

A Fundação Lauro Campos e Marielle Franco debate o balanço e as perspectivas da esquerda após as eleições municipais, com a presidente da FLCMF, Luciana Genro, o professor de Filosofia da USP, Vladimir Safatle, e o professor de Relações Internacionais da UFABC, Gilberto Maringoni

O Impasse Venezuelano

Debate realizado pela Revista Movimento sobre a situação política atual da Venezuela e os desafios enfrentados para a esquerda socialista, com o Luís Bonilla-Molina, militante da IV Internacional, e Pedro Eusse, dirigente do Partido Comunista da Venezuela

Emergência Climática e as lições do Rio Grande do Sul

Assista à nova aula do canal "Crítica Marxista", uma iniciativa de formação política da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, do PSOL, em parceria com a Revista Movimento, com Michael Löwy, sociólogo e um dos formuladores do conceito de "ecossocialismo", e Roberto Robaina, vereador de Porto Alegre e fundador do PSOL.
Editorial
Israel Dutra e Roberto Robaina | 27 nov 2024

A conjuntura se move… prisão para Bolsonaro e duas outras tarefas

Diversas lutas se combinam no momento: pela prisão de Bolsonaro, pelo fim da a escala 6x1 e contra o ajuste fiscal
A conjuntura se move… prisão para Bolsonaro e duas outras tarefas
Edição Mensal
Capa da última edição da Revista Movimento
Revista Movimento nº 54
Nova edição da Revista Movimento debate as Vértices da Política Internacional
Ler mais

Podcast Em Movimento

Colunistas

Ver todos

Parlamentares do Movimento Esquerda Socialista (PSOL)

Ver todos

Podcast Em Movimento

Capa da última edição da Revista Movimento
Nova edição da Revista Movimento debate as Vértices da Política Internacional

Autores

Pedro Micussi