Educação pra quem?

Sobre o programa de teleaulas do estado de Minas Gerais.

Sara Azevedo 13 maio 2020, 17:38

No final da tarde da última terça (12), foi divulgado um vídeo pela Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais (SEE/MG), no qual a secretária Júlia Sant’Anna informa acerca da retomada das aulas da rede pública estadual através do regime de teleaulas. Vários documentos foram enviados aos professores com orientações em torno de como seria tal dinâmica. Todos estão balizados pela Resolução 4310, que trata da regulação dos trabalhos escolares durante esse período de quarentena em face da pandemia. O texto explicita como será o trabalho de cada componente dos trabalhadores em educação que atuam em escolas de nível básico.

O programa como um todo se denomina “Se liga na Educação”, sendo calcado na promoção de aulas por meio de teleaulas geradas pela TV pública Rede Minas. O material didático estabelecido é composto por apostilas feitas pela própria SEE/MG, juntamente a sua parceria com o Instituto Unibanco. Nesse ponto, tal proposta já fere um dos preceitos básicos na educação, a saber, a liberdade de cátedra dos professores e a escolha dos conteúdos a serem vinculados, inexistindo amplo debate ou consulta aos profissionais.

As aulas televisionadas seguirão um padrão com grade horária. Cada aula de 20 minutos será ministrada por uma equipe contratada há pouco mais de 1 mês, com dotação orçamentária exclusiva para esse fim, mesmo o governo do estado falando constantemente da existência de uma crise fiscal que impede o pagamento dos salários de todos os trabalhadores em educação, que se encontram sem perspectiva de data de recebimento. Vale questionar aqui para onde está indo o dinheiro do Fundeb (Fundo de Investimento em Educação Básica – orçamento destinado exclusivamente à educação). Segundo consta de dados que recentemente chegaram até a categoria, teríamos cerca de 500 milhões de reais de reserva, o que garantiria a folha de pagamento.

O programa prevê outra função ao professor: nós seremos tutores dos alunos. Essa é outra medida do projeto, que recebeu o nome de Programa de Estudo Tutorado – PET. Com ele, a relação professor-aluno é mediada por um tutoramento, visto que as aulas serão televisionadas. Ou seja, tiraremos dúvidas e faremos plantões, além de mantermos os documentos estatais em dia (diário eletrônico, folha de ponto etc). Os conteúdos já estariam previamente estabelecidos pelo programa sem alteração.

Mais um ponto importante perpassa a responsabilidade dos diretores escolares, que, nessa nova modalidade, são chamados de Gestores Escolares. A eles compete executar tudo: acompanhamento dos professores, garantia de documentação de matrículas, organização de escala das Asbs e Atbs, impressão e distribuição dos materiais sem nenhum orçamento maior para execução do mesmo, etc.  Ou seja, no jargão juvenil, “a escola que lute”. E, durante todas as entrevistas, a secretária deixa claro que é de responsabilidade dos diretores tal papel.

Por fim, quero questionar o valor da atividade como um todo. A substituição do ensino presencial pelo ensino à distância não pode ser regra, muito menos colocado como única via possível. Todas as ferramentas tecnológicas precisam ser acompanhadas de estrutura e garantia de isonomia para todos os segmentos. Do ponto de vista dos professores, precisaríamos todos ter acesso a uma internet banda larga, a computadores com configurações específicas que garantem o acesso a tudo que seja necessário. Ademais, os alunos, em geral de baixa renda, possuem acesso à internet restrito a pacotes de dados limitados que as operadoras de telefonia apresentam e que podem ser extrapolados apenas pelo uso das redes sociais.

Também a garantia de saúde e segurança para as ASBs e ATBs não está no processo de escalonamento de horários. Isso é colocar cerca de quarentena mil pessoas a mais transitando pelas ruas das cidades, se deslocando de casa para o local de trabalho, no momento em que todos os especialistas, inclusive do governo, chamam atenção para a aproximação do pico de contágio por coronavírus. Sem contar a pressão e o assédio exercido pelo estado através da SEE/MG, que coloca diretores contra os outros trabalhadores. Isso tudo, lógico, sem nenhuma perspectiva de pagamento de salário, muito menos do décimo terceiro salário de 2019 ainda não pago a cerca de 20% da categoria.

Em resumo: a quem serve esse programa e qual o seu impacto no processo de ensino e de aprendizagem dos nossos alunos? Como faremos a construção do conhecimento sem o mínimo de autonomia didática e de conteúdo? Quais os limites da educação à distância?

O cerne do debate está no respeito aos trabalhadores que, para além de todos os questionamentos pedagógicos e estruturais, ainda estão sem salário. E também aos estudantes, que não terão acesso a um ensino de qualidade socialmente referendado. Os princípios básicos da educação estabelecidos na Constituição Cidadã de 1988 estão feridos. Não há sentido no programa e nos valores por ele apresentados. Vale ressaltar ainda que o ano letivo está comprometido, mesmo com a flexibilização da obrigatoriedade dos 200 dias letivos, proposta que implica, contudo, a manutenção das 800 horas/aulas estabelecidas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Quantidade x qualidade não pode se tornar premissa dentro das políticas públicas da educação.

Por último, mas não menos importante, cabe ressaltar que ainda estamos respaldados pela liminar concedida em decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que estabeleceu a suspensão dos trabalhos escolares. A controvérsia jurídica permanece e o caminho certo não passa por infringir determinações e criar outras vias, adequadas somente a um discurso de flexibilização do único meio cientificamente comprovado para diminuir os impactos causados pela pandemia, que é isolamento social.


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