Marxismo e economia, com Thiago Aguiar
Em entrevista publicada pelo Jornal Juntos!, diretor da Revista Movimento trata de aspectos do capitalismo contemporâneo.
Essa é a era da atualização tecnológica constante, do fluxo de informação, da globalização, mas também da busca, dos mais ricos, por novas maneiras de explorarem e ficarem ainda mais ricos. O capitalismo se mostra cada vez mais predatório. Ou o capitalismo acaba, ou ele acaba com a humanidade. O marxismo é uma ciência contestadora, mas fundamentalmente da mudança, por isso, o Jornal Juntos! preparou uma entrevista sobre o marxismo e a economia, nos nossos tempos, com o Thiago Aguiar, doutor em Sociologia e diretor da Revista Movimento.
Jornal Juntos: 202 anos após o nascimento de Karl Marx, como você acha que o marxismo contribui para o pensamento econômico na sociedade da globalização e das disputas entre grandes potências econômicas, como os EUA e a China?
Thiago Aguiar: Eu mencionaria três aspectos. Em primeiro lugar, o marxismo legou um conjunto de ferramentas para a interpretação crítica do capitalismo que seguem vigentes e fundamentam a nossa compreensão da crise atual. Em segundo lugar, a fórmula que Marx e Engels escolheram para encerrar o Manifesto Comunista de 1848: “Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos”. O que ela significa? Significa uma compreensão de que o capitalismo, pela lógica da acumulação de capital, tende a mundializar-se, a globalizar-se, como também as classes sociais. Esta é a marca da situação atual, com uma polarização de renda global entre uma ínfima minoria de bilionários e uma vasta maioria de bilhões de trabalhadores, que dependem de seu trabalho, diariamente, para sobreviver. Em terceiro lugar, eu diria que o marxismo oferece, para nós, uma compreensão muito útil, que nos permite ir além dos conflitos entre os Estados, que são muito importantes, mas que, eventualmente, são a aparência desse fenômeno. Na relação entre China e Estados Unidos, que vocês mencionam, há conflitos geoestratégicos, mas é preciso também considerar um aspecto fundamental: estas duas economias são profundamente interligadas e interdependentes. Na realidade, a produção espraiada globalmente serve aos interesses da classe burguesa, independentemente de sua origem nacional, e da lucratividade de corporações transnacionais que têm o mundo inteiro como seu espaço de acumulação, muito além das fronteiras nacionais.
Marx e os marxistas, no debate econômico, sempre expressaram as diversas contradições do sistema capitalista, seus ciclos críticos e seu inevitável colapso. Como se expressam essas contradições no século XXI, diante de uma economia financeirizada e na qual o desenvolvimento tecnológico acompanha uma busca desenfreada pelo lucro?
A crise atual é muito intensa, e as contradições se expressam de várias formas. Eu não diria que há um colapso inevitável do capitalismo, mas é possível dizer, acompanhando alguns autores, que se trata de uma “crise da humanidade”, ou seja, a própria reprodução da espécie humana está em risco. É possível mencionar alguns aspectos dessa crise. Em primeiro lugar, uma crise econômica, que se arrasta desde 2008, e tem relação com o fato de que nunca antes a produção foi tão socializada, tão espraiada pelo planeta, enquanto a apropriação da riqueza nunca esteve tão concentrada nas mãos de tão poucas pessoas: um punhado de bilionários que controla as alavancas da acumulação global, enquanto bilhões de trabalhadores e de despossuídos veem sua reprodução ameaçada. Essa crise não tem solução porque o capitalismo não encontrou formas de recuperar a lucratividade, nos patamares anteriores, como, por exemplo, por meio de uma inovação que ampliasse enormemente a produtividade do trabalho, ou com uma grande queima de capital, por exemplo, com uma guerra que permitisse, no período seguinte, uma recuperação da lucratividade. Obviamente, se isso acontecesse, os custos humanos seriam dramáticos. Em segundo lugar, uma crise ambiental, já que os limites do planeta para a expansão da ampliação de capital e para prover insumos e matérias-primas não só já foram alcançados, como superados. A atividade humana tem trazido modificações climáticas gravíssimas, com impactos sociais, como mostram as enchentes, a erosão, o deflorestamento ou o aumento da emissão de gases estufa. A crise social causada por atividades predatórias, como a mineração, como se viu em Minas Gerais nos últimos anos, é um exemplo eloquente dessa realidade. Em terceiro lugar, uma crise política, uma crise de legitimidade dos Estados nacionais e dos regimes políticos. As massas não reconhecem mais legitimidade nos Estados e nos regimes políticos porque estes estão, em geral, controlados por uma fração de classe burguesa, a fração transnacional da burguesia, que – em aliança e subordinando as frações nacionais e locais – controla as instituições políticas e as coloca a serviço dos seus interesses, da acumulação globalizada de capital. E eu poderia mencionar, em quarto lugar, uma crise subjetiva e ideológica da classe trabalhadora e das massas populares. Ou seja, a ausência de projetos alternativos, capazes de expressar os interesses dessa maioria de bilhões de trabalhadores explorados que, diante da crise capitalista e da crescente perda de legitimidade dos Estados nacionais, precisariam entrar em cena, oferecendo uma saída superadora e popular.
A “uberização” do trabalho vem se desenvolvendo de forma muito acelerada. Você acha que essa é uma característica do capitalismo, neste século, que pode contribuir para o seu colapso?
Há muitos novos e interessantes estudos sobre o que tem sido chamado de “uberização” do trabalho. Eu diria que este fenômeno tem relação com uma questão mais ampla: a busca, pelos capitalistas, da ampliação da exploração do trabalho, reduzindo os custos diretos e indiretos do trabalho, ou seja, tanto os salários como também a responsabilidade estatal pela reprodução social por meio, por exemplo, de serviços públicos de previdência, saúde, assistência e educação. A “uberização” também tem, obviamente, relação com a crescente digitalização da produção e dos serviços como forma de ampliar a produtividade do capital. Todas as novas formas de produzir, na realidade, visam a um objetivo, por parte dos capitalistas: fazer com que a classe trabalhadora produza mais e receba menos, ou seja, ampliar a exploração do trabalho num contexto de dificuldade da classe capitalista para manter os níveis de acumulação e a lucratividade em patamares ótimos, isto é, aqueles que permitem que a acumulação de capital siga, satisfatoriamente, para o capitalismo. É evidente que os custos, para a classe trabalhadora, são muito grandes: o ataque à previdência social, a diminuição dos salários, o aumento das jornadas de trabalho, a intensificação dos ritmos, o aumento do adoecimento, as dificuldades organizativas – porque o trabalho por plataformas individualiza a atividade laborativa e dificulta a organização coletiva. Portanto, esses fenômenos todos são muito graves, mas trazem o desafio de que os trabalhadores busquem formas de auto-organização a partir desta transformação profunda na produção de mercadorias ocorrida nos últimos anos.
Desde 2008, o capitalismo vive uma crise mundial que extrapolou, inclusive, o próprio campo da economia. Você acha que a construção de um programa alternativo a este sistema tem novos desafios? Quais?
Sem dúvida, a crise atual requer um programa alternativo e isto, entre outras coisas, tem relação com um aspecto mencionado anteriormente a respeito da falta de legitimidade dos Estados nacionais e dos regimes políticos, que têm sido capturados por frações transnacionais e nacionais da burguesia utilizando tais instituições a serviço dos seus interesses e da acumulação de capital. O que se tem visto em todo o mundo é uma agenda de ataques aos salários dos trabalhadores, aos direitos previdenciários e aos direitos sociais que precisa ser revertida. Diante dessa crise de legitimidade, temos assistido a uma resposta distorcida, uma tentativa de canalizar a indignação popular e a revolta para respostas de extrema-direta, até mesmo neofascistas, no Brasil e em vários países do mundo. Isto não significa que não tenha havido resistência. Nos últimos 10 ou 15 anos, houve uma jornada de rebeliões e insurreições contra a classe capitalista, os governos e contra o empobrecimento das massas trabalhadoras em todo mundo. A questão é que há uma dificuldade para organizar um polo, uma resposta subjetiva, que ofereça uma saída popular para a crise. Na minha opinião, essa resposta deve passar, em primeiro lugar, por uma compreensão profundamente internacionalista do problema. Não só para compreender a escala das transformações ocorridas nas últimas décadas, da disseminação global da produção, mas também para ampliar as respostas transnacionais para os problemas comuns aos trabalhadores de todo o mundo. Em segundo lugar, tal resposta programática precisa arrancar da mão da classe capitalista uma série de aspectos da vida social que vem sendo mercadorizados, privatizados, por exemplo, os serviços de educação, saúde, transporte e saneamento. Estas atividades não podem ser privadas, não podem estar a serviço da produção de lucros, mas devem estar a serviço da garantia da reprodução da vida humana. Em terceiro lugar, esse programa precisa ter um aspecto democrático radical intenso, que garanta às maiorias o poder de se autodeterminar, retirando das mãos desses setores burgueses, que operam nos bastidores e publicamente, sabotando a soberania popular, para transformar as instituições políticas numa mera engrenagem da acumulação de capital. É um desafio grande, mas certamente é o que cabe a nossa geração.
A pandemia de coronavírus colocou, também, a economia em alerta. Existem vários economistas e sociólogos, inclusive os ligados aos grandes capitalistas, que apresentam uma perspectiva de aprofundamento da crise econômica mundial. Como você enxerga o futuro da crise?
A pandemia de Covid-19 tem relação intensa com as tendências que nós estamos discutindo nessa entrevista. A disseminação rápida e global do vírus só foi possível porque a circulação de mercadorias e de pessoas cresceu dramaticamente nas últimas décadas. A revelação destes graves riscos sanitários decorrentes da globalização mostra mais um limite à acumulação capitalista global. Fica claro que essa forma de produzir mercadorias e de organizar as relações sociais não é sustentável do ponto de vista social, econômico, ecológico, como também do ponto de vista sanitário. Isso faz com que a crise tenha características mais dramáticas do que crises anteriores. Muitos, na imprensa e nos círculos burgueses, têm especulado sobre o possível “fim do neoliberalismo” por conta da pandemia de Covid-19 e de seus efeitos, ou seja, pela necessidade, de algum modo, de ampliar a intervenção do Estado para garantir serviços sanitários ou mesmo para recuperar as economias que colapsaram, já que a pandemia do novo coronavírus impede os trabalhadores de produzirem – e, portanto, há uma crise na oferta –, mas também derruba dramaticamente a demanda, uma vez que os orçamentos públicos estão sob estresse, a renda dos trabalhadores está em risco e a própria circulação de mercadorias e consumidores fica impossibilitada.
Esta me parece uma esperança ingênua. O esforço, coordenado pela classe capitalista transnacional e pelas burguesias nacionais a ela vinculadas, tem sido o de mitigar a crise econômica, utilizando o Estado para garantir a solvência das empresas – basta ver a quantidade de recursos disponibilizados no Brasil e no mundo aos bancos e às grandes empresas – e mitigar seus efeitos sanitários, isto é, de algum modo reduzir a escala da infecção e diminuir o número de mortes, porque estes impedem a manutenção da produção capitalista. No momento seguinte, no entanto, está claro que se pretende aprofundar as tendências vistas anteriormente. Se nós acompanharmos as posições de Paulo Guedes, dos grandes burgueses e dos economistas a eles vinculados – e isso não é uma exceção brasileira –, a agenda da burguesia pós-crise ou, melhor dizendo, a agenda da burguesia na crise é, depois deste primeiro momento de garantia da solvência da atividade econômica, ampliar as privatizações e o ajuste estrutural do Estado, ou seja, diminuir impostos para empresas, desmontar serviços públicos e dilapidar direitos dos trabalhadores. Portanto, a reprodução dos trabalhadores e das massas populares em todo o mundo está em risco. A agenda da classe capitalista, em escala global, não é de liquidar o neoliberalismo e, quase como um esforço de “racionalidade”, reconstruir Estados de bem-estar social. Na realidade, seu objetivo é justamente o oposto: recuperar e ampliar a lucratividade por meio da mercadorização de aspectos fundamentais da vida humana, como os serviços de saúde, educação e transporte, privatizar empresas estatais e dilapidar os orçamentos públicos, seja por meio de desonerações fiscais para os burgueses ou de ampliação do endividamento, além de intensificar a exploração da classe trabalhadora e a instrumentalização do trabalho de reprodução social não remunerado, exercido quase integralmente pelas mulheres. Tudo isto mostra a gravidade da crise e a responsabilidade que nós temos nesse momento histórico.