As “novas rotas da seda”. O horizonte chinês do século XXI
Atrelando-se a sua história milenar, Pequim se lança em um vasto programa terrestre e marítimo visado confortar seu papel de segunda potência econômica mundial e assegurar a perenidade de seu sistema político.
Como um imperador, Xi Jinping acolheu com pompa em meados de maio durante dois dias cerca de trinta chefes de estado para o primeiro encontro das “Rotas da Seda”. Um exercício de diplomacia pública espetacular a serviço daquele que é o seu projeto vitrine desde sua chegada ao poder em 2012. Sob Xi, secretário general do Partido Comunista Chinês (PCC) e presidente da República popular, a China vem praticando uma politica de expansão planetária sob o nome de OBOR (One Belt, One Road), acrônimo em inglês de Yidai yilu (um cinturão, uma rota): de um lado, um “cinturão econômico” composto por vias terrestres que atravessam a Rússia, a Ásia Central e o Paquistão até o leste Europeu; do outro, uma “rota da seda marítima” ligando pelos oceanos os países emergentes do sul e sudeste asiático até a África e a América do Sul. Durante o seu discurso de abertura, ele invocou reiteradas vezes a milenar história chinesa e o “espírito da Rota da seda”, inspirada pela “paz” e pela “cooperação.”Para o historiador chinês Zhao Susheng, da Universidade de Denver, essa visão do número um chinês se apoia no mito de uma China imperial que garante a harmonia e a estabilidade regional em oposição ao uso da força como fizeram as potências europeias ao estabelecer suas colônias. Uma “reconstrução histórica” que serve à política mencionada, sublinha ele em um texto publicado em junho. Já que “a guerra foi uma constante na história imperial chinesa” e “ela, assim como as outras potências, não foi nem unicamente benevolente, nem unicamente malevolente”.
Essas “novas rotas da seda” se apoiam primeiramente na potência econômica da China, a segunda do mundo atrás apenas dos Estados Unidos: ao menos 65 países, em todos os continentes, estão prontos para participar dela, e a lista não é exaustiva. Eles têm o potencial de mudar vastas regiões do mundo, como pôde fazer a empresa colonial europeia ou a globalização depois da segunda guerra mundial. Para convencer, Pequim pode contar seu papel de primeiro parceiro comercial de uma série de países. A superpotência asiática dispõe também de reservas financeiras, de uma mão-de-obra considerável e da força de ataque de seus gigantes públicos no setor de infraestrutura. “A China dispõe com seus bancos de um rolo compressor financeiro na Ásia, vemos por toda parte acumularem pequenos tesouros de guerra que esperaram apenas as ocasiões para serem usados. As taxas são agressivas, eles são pouquíssimos exigentes em relação às garantias”, constata um dirigente de um banco australiano. Os empréstimos institucionais chineses são firmados sem nenhuma condição política, contrariamente ao que acontece com os países ocidentais.
Contudo, essas lógicas econômicas servem também ambições geopolíticas e ideológicas evidentes. Na Ásia, a China é obcecada pela rede de alianças americanas que a cerca e por uma supremacia militar dos Estados Unidos que ela ainda não pode esperar igualar “Se pode ler nas rotas da seda a vontade da China se colocar em paridade estratégica com os Estados Unidos”, explica o geografo Sébastien Colin, pesquisador do Centro de Estudos Franceses sobre a China contemporânea (CEFC) em Hong Kong
Um novo bloco euroasiático
Na parte marítima, o OBOR permite à China perseguir sua estratégia de aquisição de terminais portuários no mundo e desenvolver sua marina mercante. Da Ilha Margarita (Panamá) ao Piraeus (Grécia) passando por Gwadar (Paquistão) ou ainda pela Tanzânia, existem dezenas de terminais portuários sob controle chinês em atividade ou em construção pelo mundo. Segundo uma pesquisa do Financial Times, publicada em janeiro, as cinco primeiras companhias marítimas chinesas controlam 18% de todo o tráfico de contêineres transportados pelas vinte principais companhias mundiais do setor. E, em 2015, perto de dois terços dos 50 maiores portos mundiais contavam com algum tipo de participação chinesa.
Essa conquista comercial é indissociável da escalada militar e, sobretudo, naval chinesa: a China, que acaba de lançar um segundo porta-aviões e abrir sua primeira base naval em Djibouti, tem a ambição de se tornar uma grande potência marítima. “São tantos pontos de apoio potenciais que certos analisas vêm agora uma verdadeira encarnação do “colar de pérolas”, eles se referem aos pretendidos portos sob controle chinês e convertíveis em bases militares, denunciados pelos indianos há dez anos atrás”. Analisa Sébastien Cloin. “uma atualização” das ideias de Alfred Mahan – um estrategista naval americano do final do século XIX (1840-194) – que teorizou sobre o controle dos mares pelo comércio e pela força naval. Mas isso não acaba aí. A China também leu outro “clássico”: “A parte terrestre das rotas da seda, com a sua preocupação em reforçar a conectividade euro-asiática, abre margem para supormos o retorno da heartland – teorizada pelo geografio britâncio John Mackinder (1861-1947), um dos pais da geopolítica moderna – sob a forma de um novo bloco euroasiático em oposição à periferia americana”, completa o pesquisador.
Na África, o ano de 2017 terá visto o início de exploração de duas linhas férreas de trens de alta velocidade construídas pelos chineses de valor eminentemente simbólico: Mombasa – Nairóbi (Quênia) e Djibuti – Addis – Abeba (Etiópia). Todas as duas substituíram os caminhos de ferro que datavam da colonização inglesa e francesa. “Os europeus fizeram a mesma coisa na África, eles tinham armazéns, depois eles fizeram as rotas de penetração”, sublinha o sinólogo Jean-Pierre Cabestan, da Universidade Batista de Hong Kong, que assinou com Jean-Raphaël Chaponnière, do Centro Ásia, uma obra sobre a evolução das relações entre a China e o seu ex-aluno socialista africano, a Tanzânia. Para além das infraestruturas, a dominação crescente da China se converte voluntariamente em alavanca política. A chantagem ao boicote, aos investimentos e aos turistas, sobre os quais regulam-se os fluxos de entrada, foi muitas vezes implementado contra países da Ásia (o Japão privado de terras raras, a Coreia do Sul punida pela adoção da bateria antimísseis americana) ou mesmo da Europa (a Noruega privada da exportação de salmão depois da atribuição do prêmio Nobel a Liu Xiaobo em 2010). A pequena Mongólia, em estado de quase-falência, viu ser impostas tarifas aduaneiras por ter recebido o dalai-lama em novembro de 2016. E a Grécia escolheu em junho bloquear uma declaração europeia no Conselho dos direitos do homem das Nações Unidas condenando a China. Essas ações fizeram ressurgir a imagem de uma China arrogante e podem suscitar rancor e desconfiança. Nesse contexto, as rotas da seda são “um projeto de diplomacia pública, que tem o objetivo de suavizar a imagem da China e tornar a sua escalada aceitável”, explica John Seaman, do Instituto Frances de Relações Internacionais (IFRI).
Por outro lado, a China obtém um sucesso garantido com o seu modelo autoritário no sudeste asiático. É um “terreno de predileção” para Pequim, sublinham os pesquisadores Sophie Boisseau du Rocher e Emmanuel Dubois de Prisque em um estudo para o Instituto Tomas More publicado em junho. “A capacidade de sedução e treinamento do modelo chinês é inegável nos países do sudeste asiático que escutam com cada vez mais impaciência as lições de democracia que ainda ousam fazer algumas ONGs e parceiros ocidentais”.
Com o projeto das “novas rodas da seda”, a China propõe aos seus vizinhos de se realinharem ao sistema vencedor: o de um dirigismo econômico e político promissor mas de uma glaciação societária” escrevem os autores.
A China soube, através de suas redes constituídas pelos diplomatas, pelos meios de negócio da diáspora, e pelas suas sociedades de Estado, obter a adesão de elites abertas ao “melhor pagador”, particularmente em relação a três grandes aliados tradicionais dos Estados Unidos, a Tailândia, a Malásia e as Filipinas. “Com a Tailândia, isso começou de maneira inofensiva pelo domínio econômico, que reforçou os canais de influência chinesa. Depois chegamos às convergências que mudam a situação: vemos então a junta militar comprar submarinos chineses e o primeiro-ministro se atribuir plenos poderes para aprovar o projeto de trens de alta velocidade propostos por Pequim”, explica Sophie Boisseau du Rocher.
Esse desejo de promoção do “modelo chinês” também serve como uma exigência superior da China de Xi Jinping, aquela de defender a qualquer custo o “sistema socialista de características chinesas”, quer dizer, a manutenção do partido único no poder. Dois pilares asseguram a legitimidade do Partido Comunista Chinês: o nacionalismo, com uma China inflexível em relação à sua superioridade, e um crescimento econômico robusto. A expansão em todas as direções da China para fora de suas fronteiras é no fim das contas a melhor maneira de reforçá-los.
Os interesses chineses em primeiro lugar
Contudo, na China, o discurso oficial faz de tudo para desconectar essa iniciativa dos outros aspectos de sua escalada como potência: não é um “plano Marshal” pois não existe “discriminação ideológica”, escrevem os expertos chineses mandatados pelo poder, em referência ao plano de ajuda americana à Europa ocidental do pós-guerra, no início da Guerra Fria. Não se trata de neocolonialismo, adicionam, já que Pequim não interfere nos assuntos interiores e respeitaria a integridade territorial dos Estados. “O seu objetivo é o desenvolvimento comum dos países ao longo da rota da seda, independentemente de sua etnia, sua religião e sua cultura, sejam eles capitalistas ou socialistas”, explicou em maio o Global Times, jornal oficial que denuncia as “visões mentirosas da imprensa ocidental”. Esse discurso visa a “projetar a imagem de uma governança benevolente”, julga a pesquisadora Linda Li, da City University de Hong Kong, que trabalha sobre as implicações do OBOR para a cidade-Estado.
Para os chineses, o projeto é complementar às zonas de livre-comércio existentes. Ele se inscreve numa lógica própria à China, a das grandes estratégias estatais que modificaram completamente sua estrutura econômica, a partir da política de abertura aos investimentos estrangeiros e às trocas posta em prática no início dos anos 1980, depois a política de expansão ao exterior de seus grupos públicos nos anos 90, e enfim o reequilíbrio em direção ao interior do país com a ajuda de investimentos colossais em infraestrutura no decênio seguinte. Visto como um prolongamento, o modelo do OBOR é bom para “colocar os interesses chineses em primeiro lugar”, escreve a economista Françoise Nicolas em um relatório coletivo publicado em fevereiro pelo IFRI. A China procura manter seu crescimento e vender suas supercapacidades exportando-as.
Mas a iniciativa chinesa já coloca todos os tipos de desafios, que apareceram no dia do grande encontro de maio. Como prova, o sentimento da delegação europeia de se fazer “extorquir”, segundo as palavras de um diplomata europeu, especificações bem além das normas internacionais em matéria de reciprocidade, de ajuda, de viabilidade dos empréstimos firmados e de abertura dos chamados de oferta. A declaração comum proposta pelo ministro chinês do comércio aos seus parceiros não foi assinada.
Para a União Europeia, os esforços chineses de “reglobalização” – o termo empregado pelos pesquisadores chineses – devem ser vistos à luz das violações chinesas em matéria de abertura de seus próprios mercados aos produtos e aos investimento estrangeiros. Os bancos estrangeiros detém menos de 1% do mercado chinês, as companhias de seguro menos de 6%, e todas as formas de barreiras limitam a entrada de profissionais estrangeiros nas empresas chinesas, lembrou o embaixador alemão em Pequim, Michael Clauss, em maio. “Eu chamaria OBOR uma globalização com características chinesas, já que nós a preferimos baseada em regras”, completou. Clauss vê nela um “projeto puramente chinês, que coloca a China no centro” e que é “subestimado pelo mundo ocidental”. Resta a Pequim ter os meios políticos e econômicos para suas ambições, num mundo onde o terrorismo, as redes sociais e o sobre-endividamento podem derrubar um país de uma hora para outra.
(Artigo publicado em 5 de agosto pelo jornal Le Monde. Tradução de Pedro Micussi.)