Vereadora trans, Natasha Ferreira expõe a urgência de representatividade no Legislativo
Bruna Porciúncula escreve sobre a luta de Natasha Ferreira (Vereadora de Porto Alegre pelo PSOL) por mais representatividade LGBT+ no parlamento.
Enquanto Natasha Ferreira dava início ao seu primeiro discurso na tribuna da Câmara Municipal de Porto Alegre, onde foi empossada vereadora pelo PSOL na quarta-feira (23), a vice-líder do governo, Comandante Nádia (DEM), dirigia-se ao ex-vereador Professor Alex Fraga (PSOL), que prestigiava a cerimônia, para cumprimentá-lo e indagar: ela é o que, hein?
Nádia deixava evidente seu desconhecimento sobre gênero. Alex, com a didática dos professores, explicou que Natasha é uma travesti, uma mulher trans. O histrionismo habitual da vereadora do Democratas desnudou sua ignorância sobre o tema, mas bem provável não fosse ela a única naquele plenário a carregar uma bagagem vazia de informação sobre a população LGBTQI+.
Natasha estava ali por um esforço coletivo do PSOL para que o parlamento porto-alegrense tivesse, ao menos às vésperas do Dia Internacional do Orgulho LGBT, celebrado nesta segunda-feira (28), uma representante LGBTQI+ que impulsionasse demandas de interesse dessas pessoas. Ela assumiu a cadeira do vereador Roberto Robaina, que se licenciou do cargo por uma semana, e se tornou a segunda vereadora trans da Capital Gaúcha. A primeira trans a integrar o Legislativo da cidade foi a advogada Luisa Stern (PT), também na condição de suplente e por apenas três dias, em março de 2018, numa iniciativa do partido de marcar o Dia Internacional da Mulher. Essas experiências, ainda que breves, não ocorrem sem os sobressaltos impostos por uma sociedade preconceituosa e LGBTfóbica. Natasha acordou nesta segunda-feira com uma “visita” à Delegacia de Polícia de Combate à Intolerância na agenda. Foi registrar um boletim de ocorrência contra comentários transfóbicos que circulam nas redes sociais desde que tomou posse na Câmara e a notícia ganhou repercussão.
– Em um deles, falam que as pessoas trans têm transtornos mentais. Outro me chamou de vereador e escreveu que eu não poderia ser chamada de vereadora. Não vou tolerar isso – conta.
Natasha também foi muito atacada por conta do projeto que apresentou um dia após assumir o cargo. A iniciativa pretende criar cotas para pessoas trans em empresas que tenham recebido algum incentivo público. Seria uma reserva de 5% das vagas de emprego que poderia ser preenchida por outros gêneros caso não fosse absorvida por travestis e trans. A intenção é incluir mais essa população no mercado de trabalho e tentar driblar o preconceito que reduz brutalmente as chances de esses trabalhadores e essas trabalhadoras serem reconhecidos, valorizados e respeitados.
– Neste caso, a transfobia disfarçada de opinião correu solta nos comentários – diz a vereadora.
Os dias de vereança têm reforçado convicções que Natasha vem construindo desde que iniciou sua transição de gênero, por volta dos 16 anos, época em que também já se envolvia no movimento estudantil de Novo Hamburgo, cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre onde viveu parte da adolescência e da juventude. Uma delas é tirar da invisibilidade as pessoas trans e encorajá-las a ocupar espaços na política para que possam pautar ações dos governos com mais efetividade. E urgências não faltam. Vão desde a proteção da população LGBTQI+ contra a violência – o Brasil é campeão mundial em assassinatos de pessoas trans (175 só em 2020) – até a promoção de iniciativas que incluam essas pessoas no mercado de trabalho. Mas antes de tudo é preciso o básico: incluí-las nos debates. A política brasileira, como regra, faz vistas grossas para o tema. Nas eleições majoritárias nacionais, a primeira candidata à Presidência da República a expor o tema abertamente em um debate foi Luciana Genro, em 2014. Atualmente deputada estadual no Rio Grande do Sul, Luciana lembra que ela mesma, à época, foi se apropriando das demandas LBTQI+ à medida que se aproximou de militantes da causa.
– Em uma conversa durante a campanha, falei sobre homofobia e uma mulher chamou minha atenção que era preciso falar também em transfobia, até porque o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Eu não costumava falar esse termo, falava sempre homofobia. A partir daí, aproximei meu trabalho nessa luta, que depois se ampliou para uma luta contra a LGBTfobia – explica Luciana.
Naquela eleição, Natasha votaria em Luciana mesmo sendo filiada ao PT. Era o início de uma aproximação ideológica com o PSOL, cuja defesa explícita da pauta LGBTQI+ impulsionaria sua filiação ao partido em fevereiro de 2019. Antes disso, a vereadora fez uma passagem rápida pelo PCdoB, no que considerou um movimento precipitado frente ao descontentamento que sentia no PT. Chegou a concorrer como a deputada estadual pela sigla. Ainda na legenda comunista, Natasha foi convidada por Luciana para ministrar uma palestra sobre o tema LGBT no Emancipa Mulher. A identificação de ambas na luta selou as mudanças políticas de Natasha, que, no gabinete de Luciana, foi a primeira pessoa transgênero a ocupar um cargo na Assembleia Legislativa do RS.
– Em uma parada LGBT em São Leopoldo, a Luciana era a única que estava lá, distribuindo um material de “Somos Resistência”. Era a única. Caminhei e distribuí adesivo ao lado dela. Não gostaram do que eu fiz e rolou até um debate para me punir no partido. Às vezes, uma crise ajuda a gente a mudar – relembra Natasha.
Estereótipos, preconceitos e o baque da travesti
Natasha foi batizada Anderson Narciso Ferreira. Foi registrada em Dois Irmãos, mas há um documento que atesta seu nascimento em 26 de abril de 1988 no Hospital da Misericórdia, em Buenos Aires. O pai biológico era argentino, mas não chegou a registrar a criança. A mãe de Natasha morreu quando ela tinha apenas 11 meses, então, a história sobre os dois registros ficou nebulosa. Criada por uma tia e por um tio, a que considera pais, Natasha cresceu em uma família de classe média, estruturada e afetuosa. Aos nove anos, foi estudar no Seminário Maria Auxiliadora, em Dois Irmãos. Queria ser padre. A vocação não se sustentou e, seis meses depois, pediu ao pai para deixar a instituição. Nessa época, Natasha já percebia que o gênero com o qual se identificava não se alinhava ao sexo do nascimento. Na transição, que incluiu encarar os pais e navegar num mar de tabus e falta de orientação, ela tomou hormônios por conta própria, ficou frente a frente com médicos que pouco ou nada sabiam sobre corpos e saúde de pessoas transgênero e descobriu o quanto essa população é marginalizada.
Por ser branca, classe média e com o que se chama de passabilidade – termo usado para marcar o quanto a aparência de uma pessoa trans permite que ela “passe” por uma pessoa cisgênero – Natasha não foi vítima de violência, como a maioria das pessoas transgêneros. Participava dos bailinhos alemães de Dois Irmãos sem esconder quem era e não teve o dissabor de ser hostilizada, mesmo reconhecendo que a violência é regra no dia a dia da maioria dos transexuais e transgêneros.
– Travesti sempre dá um baque maior e tem muito estereótipo. Muita gente tem até medo, pensa que a gente anda armada de canivete, que vai brigar como homem porque tem a força de um homem. Não é assim, mas as pessoas pensam isso. Há muita falta de conhecimento do que somos – diz.
É contra essa escuridão de informação e contra preconceitos que Natasha moldou sua campanha a vereadora. Porto Alegre teve apenas sete candidaturas de pessoas trans em 2020, duas delas do PSOL. É verdade que eleição após eleição, esse número vem crescendo no país. Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o número de candidaturas de pessoas transgênero nas eleições de 2020 aumentou quase 200% em relação às eleições municipais de 2016. Falta agora que tenham estímulo real dentro dos partidos para que sejam vitoriosas. Natasha contou com a militância, o apoio e o incentivo financeiro do PSOL em sua campanha. Obteve mais de 2 mil votos dos porto-alegrenses, o que lhe assegurou a suplência. É um caminho a ser desbravado com muita luta. A experiência dentro do plenário consolidou outra urgência, a de que sem representantes LGBTQI+, governos e legisladores seguirão perguntando o que essas pessoas são.