‘A pressão social precisa se manter forte’
Entrevista com Sâmia Bomfim, deputada federal reeleita por São Paulo
Aos 33 anos, Sâmia Bomfim é um dos nomes mais conhecidos (e reconhecidos) do PSOL no país. Nascida em Presidente Prudente (SP), formada em Letras Universidade de São Paulo (USP) e servidora da mesma instituição, iniciou sua militância durante a faculdade, quadndo também passou a atuar no movimento feminista.
Em 2016, ajudou a organizar as manifestações pela cassação e prisão do ex-deputado Eduardo Cunha (MDB-RJ), então presidente da Câmara dos Deputados, além de protestos contra a Cultura do estupro. No mesmo ano, foi eleita para a Câmara de Vereadores de São Paulo, sendo a mais jovem parlamentar da Casa. Foi lá que sua postura combativa na defesa dos Direitos Humanos e da Mulher, na luta pelos direitos dos servidores públicos, dos negros, LGBTQIA+ e dos mais pobres começou a ganhar destaque junto ao grande público.
O reconhecimento foi alavancado por sua atuação na Câmara dos Deputados. Eleita em 2018, tornou-se líder da bancada do seu partido, destacando-se pela luta por vacinas e auxílio emergencial durante a pandemia. Em 2020, foi considerada a parlamentar mais atuante pela causa feminina pela revista AzMina, e a melhor deputada federal do Brasil pelo prêmio Congresso em Foco.
O mandato da parlamentar foi renovado no último 2 de outubro, com impressionantes 226 mil votos – um certificado de aprovação para a parlamentar, que a partir do ano que vem terá a tenacidade testada por um Congresso ainda mais conservador e bolsonarista.
Em entrevista à Revista Movimento, a deputada fala sobre a nova composição da Câmara e do Senado, governabilidade e estratégias para derrotar as violências da extrema direita. Confira, a seguir, trechos dessa conversa.
Revista Movimento – A senhora teve uma votação orgânica muito expressiva, enquanto outros parlamentares de esquerda não mantiveram os votos. A que a senhora atribui esse resultado?
Sâmia Bomfim – Legal essa definição de votação orgânica, porque em 2018 eu também fui eleita com uma quantidade muito expressiva de votos, foram 248 mil e, este ano, foram 226 mil. Só que em 2018, estava muito circunscrito ao fenômeno do Ele Não. Eu tinha acabado de ser vereadora, tinha acontecido uma greve muito forte dos servidores. Então, ali eu fui eleita como uma aposta, como uma possibilidade de representação. Agora é diferente. Foram quatro anos de gestão Bolsonaro, com a nossa atuação, inclusive como líder do PSOL. Então foi também uma espécie de plebiscito de aprovação ou não ao mandato, num contexto onde havia muitas candidaturas fenomênicas que cumpriram o papel que em 2018 eu cumpri, de ser a novidade, a aposta, a possibilidade do momento. Então, era um cenário muito difícil eleitoralmente. Mas ainda assim deu quase para manter a votação, perdemos poucos votos, e atribuímos isso à disposição de construção que o mandato fez. Uma escolha consciente de articular com setores, de organizar categorias de trabalhadores, regionais e diretórios do PSOL que fizeram a nossa campanha, movimento de mulheres, de servidores, de professores, destaco como setores mais orgânicos que organizaram nossa campanha. Acho que isso é muito importante porque ondas vêm e vão, fenômenos vêm e vão. Temas, centralidade, a atenção do movimento social, do movimento de massas, mudam, mas o mais importante é você ter uma referência e uma construção que seja orgânica e permanente. Isso porque, tanto do ponto de vista eleitoral, mas especialmente das lutas que se desenvolvem, você acaba tendo mais efetividade e uma atuação mais certeira, porque há uma relação direta com a classe. Não é só uma aposta, uma possibilidade momentânea.
Revista Movimento – Como a senhora avalia o crescimento da direita conservadora no Congresso? A senhora acredita que será mais difícil lidar com esse novo parlamento?
Sâmia Bomfim – A direita tradicional já vinha perdendo espaço, perdeu muito mais nessas eleições, e foi substituída por uma direita bolsonarista. Se não bolsonarista, ao menos desse Centrão mais desavergonhado, fisiológico, sem projeto, e que portanto acaba sendo sobreposto pela direita bolsonarista. E a novidade também está no Senado. Na atual legislatura, por mais estranho que pareça, a Câmara é mais dominada pelo conservadorismo e bolsonarismo que o Senado. Na próxima, vai ter uma tropa, um pelotão, que eles conseguiram organizar dentro do Senado. Talvez tenha nos surpreendido um pouco o poder, a pressão e a capacidade eleitoral que o bolsonarismo ainda tem. Foram votados, muito bem votados e ampliaram sua presença nas Casas de poder. Isso vai ser muito desafiador não só do ponto de vista dos temas que eles vão trazer – que eu acho que não vai ter muita novidade em relação aos últimos quatro anos – mas porque estarão na oposição de direita, se tudo der certo e daqui a poucos dias consolidarmos a vitória do Lula. Eles estarão ainda mais dispostos a acionar sua base de mobilização diante de qualquer elemento da conjuntura que os desagrade, vão se utilizar ainda mais de expedientes como fake news e ataques. Então, tudo o que nós tentamos desenvolver, aprender e aprimorar nos últimos quatro anos precisará ser aprofundado. Porque ainda que não estejam mais na presidência, os bolsonaristas vão tentar seguir pautando o debate político, obstruindo qualquer discussão saudável, ideológica, política para a sociedade, e o Senado vai estar com uma composição pior que na atual legislatura. Porque geralmente lá, eles barram projetos que passam na Câmara, seguram pautas, a gente consegue aprovar requerimentos de convocação dos ministérios se não conseguimos na Câmara. Agora, o peso do conservadorismo se divide entre as duas casas, e isso exigirá uma nova capacidade de articulação que a gente vai ter que ter no Congresso.
Revista Movimento – Será bem mais difícil aprovar pautas sociais e relacionadas a minorias?
Sâmia Bomfim – Nesses anos de gestão Bolsonaro já foi difícil ter avanço concreto nas pautas dos direitos das mulheres, dos LGBTQIA+, das negras e dos negros, dos temas relativos aos Direitos Humanos de maneira geral. Ainda assim, foi possível, porque apesar deles, havia muita pressão e necessidade social. Bolsonaro gosta de dizer que foi o presidente que mais sancionou leis voltadas para os direitos das mulheres, quando, na verdade, nenhuma tenha sido proposta por ele. Ao contrário, ele vetou a maioria quando pode, como foi com a Lei dos Absorventes. Mas foi possível ter esse número alto de aprovações no Congresso porque havia uma bancada feminina forte, uma demanda da sociedade com o aumento do número de feminicídios, por exemplo, uma pressão, um fortalecimento do movimento feminista. Acho que esses elementos vão seguir. Por mais que tenha o peso e os obstáculos dos bolsonaristas no Congresso, a pressão social precisa se manter forte para que apesar deles seja possível seguir aprovando. Agora, que vão querer distorcer, dificultar, fazer chacrinha, chacota, vão. Eles estão lá para isso um pouco, para distorcer nossas pautas e dificultar o avanço dos direitos humanos e dos direitos sociais.
Revista Movimento – Como ficaria a governabilidade de Lula com essa composição no Congresso Nacional?
Sâmia Bomfim – Antes de mais nada, será preciso acabar com o orçamento secreto, porque enquanto ele estiver vigente, o que vai acontecer é o chantagismo e o fisiologismo dominando a política. Vai ter de passar pela compra de parlamentares qualquer projeto positivo para o Brasil que se queira aprovar. Então, nós, do PSOL, já entramos com uma ação no Supremo para que isso seja paralisado, desfeito. Mas, para além disso, há todo um caldo social de mobilização que está sendo construído para imprimir a derrota do Bolsonaro em primeiro e, agora, no segundo turno, que vai precisar seguir na reivindicação das lutas e dos avanços para a sociedade. Algumas medidas podem ser feitas com uma canetada, com um decreto. Especialmente no que diz respeito ao “Revogaço”, com o qual Lula já se comprometeu, para revogação de algumas políticas ambientais e de armamento, por exemplo. Boa parte pode ser encaminhada por meio de portarias e decretos, e o próprio presidente da República faz a revisão. Mas mudanças mais estruturais – como Lula sinalizou que vai rever pontos da reforma trabalhista, ou mexer em aspectos previdenciários, por exemplo -, muitas vezes exigem alterações constitucionais, e isso significa [o apoio de] dois terços do Congresso. Ou seja, será necessária uma capacidade de articulação e de pressão social muito grandes para que aconteça. Mas acho que não tem segredo: é saber acumular esse caldo eleitoral para um caldo político permanente. Aliás, nas nossas campanhas do MES no Brasil inteiro fomos bastante honestos com os eleitores. Vamos derrotar o Bolsonaro, mas o bolsonarismo vai seguir como movimento, precisaremos seguir mobilizados para derrotá-los ao longo do processo, para ter condição e força social de obter algum avanço no governo Lula. A pressão e os obstáculos para impedir que aconteçam vão ser muito grandes.
Revista Movimento – Por falar em campanha de segundo turno: a esquerda vem recebendo críticas por adotar, nas redes sociais, as mesmas táticas de guerrilha que o bolsonarismo imprime para conquistar votos. Qual sua opinião sobre essa estratégia? Acha que vale a pena?
Sâmia Bomfim – Na guerra contra o Bolsonaro, em especial esse seguro turno, é um momento de democracia contra a barbárie, de vida ou morte. É a eleição de nossas vidas. É nossa possibilidade de seguir vivos, organizados e mobilizados para lutar por nossos direitos. Acho que todas as ferramentas que servem para desgastar o bolsonarismo nesse contexto são válidas e são necessárias para que a gente possa passar por esse obstáculo. O que a gente tem como desafio é manter os 6 milhões de votos de diferença que Lula teve em relação a Bolsonaro no primeiro turno, e ampliar, com os votos do Ciro e da Tebet, e mais os que se abstiveram, brancos e nulos. O Bolsonaro está com uma tática de tentar reverter as abstenções. Inclusive isso envolve compra de votos, paralisação de dinheiro das universidades, de farmácia popular, para esses caras do Centrão que foram eleitos para conseguirem fortalecer a campanha de Bolsonaro em suas bases eleitorais. Então, nada do que possa ser feito do nosso lado se compara com baixaria, a roubalheira e a desonestidade dos bolsonaristas. Se serve para desgastá-los, vamos em frente, cada um com sua tática. O importante é não ficar parado. A gente tem uma eleição que não está ganha. Estamos na dianteira, a bola está no nosso campo, mas pode ser tomada a todo tempo. A nossa tática é diferente, nós vamos para a porta dos metrôs, de locais de trabalho, vamos nos bares fazer agitação, vamos nas redes sociais. Nosso método de guerrilha é a disputa das ideias. Mas todo mundo que está se somando na campanha pela eleição de Lula tem as ferramentas ao seu dispor para tentar desgastar e reverter os votos dos bolsonaristas.
Revista Movimento – Outra característica perniciosa do bolsonarismo é a violência política de gênero? A senhora acha que isso pode ser fator que impeça mais mulheres de entrar na política ou que faça as que já entraram desistir?
Sâmia Bomfim – Eles fazem essas ameaças, essas violências com esse objetivo. Para afastar as mulheres, fazê-las desistir. De maneira geral, o bolsonarismo atua plantando o medo para tentar colher a ideia de que eles são os salvadores. Eles fazem isso com os adversários políticos. Plantam o medo para as pessoas se sentirem salvas e seguras fora da política, sendo desconvidadas a estar naquele espaço. Mas com raras exceções, eu não vejo isso surtindo efeito. Claro, a gente tem de andar com segurança, algumas têm de andar com escolta, repensar os lugares onde vai, tomar 10 vezes mais cuidado porque esses caras não estão para brincadeira – já assassinaram uma vereadora do PSOL, a Marielle, alguns anos atrás. Por outro lado, vejo que há mais mulheres nesse mesmo perfil ousando ocupar a política, sendo eleitas, muito bem votadas, mobilizando pessoas. Então, às vezes o tiro pode sair pela culatra quando a tática é assustar, amedrontar. Há aquelas que de fato se recolhem e têm todo o direito. Cada uma sente o impacto e toma as definições conforme se apresenta o problema. Mas no geral, vejo efeito contrário, que é a mulherada se fortalecendo, sendo candidata, apoiando umas as outras. Se não for candidata, para assumir postos dentro dos partidos, nos diretórios, nos movimentos sociais. Isso é imparável, no meu ponto de vista. Não há ameaça que nos faça retroceder.
Revista Movimento – Como a senhora avalia seu primeiro mandato e quais as expectativas para o próximo?
Sâmia Bomfim – Acho que foi um mandato muito combativo e atuante, estive em diversas frentes possíveis, em especial no contexto da pandemia, para lutar por vacinas, por auxílio emergencial. Tive também muita atuação nos direitos dos servidores e das mulheres brasileiras, cheguei a aprovar leis sobre enfrentamento da violência contra a mulher. E para o próximo mandato, quero fortalecer essas lutas e seguir enfrentando o bolsonarismo. Quem sabe conseguir avançar numa agenda econo que tb favoreçam os mais pobres. É necessário avançar com a discussão das taxações das grandes fortunas, por exemplo – e a gente já pediu a urgência da tramitação do plenário -, é necessária a revogação da reforma trabalhista. Como o Lula já sinalizou disposição para revisar alguns pontos, a gente vai atuar para que isso vá adiante, porque debate necessário no Brasil da hiperinformalidade, e tentar responder a problemas sensíveis do mundo do trabalho com relação aos direitos humanos. Essa é nossa perspectiva, mas sabendo que o cenário não vai ser fácil. Lula vai ser eleito, mas 1º de janeiro não vai ser de céu azul para todos nós. Ainda vai ter muita luta e enfrentamento. Felizmente estaremos lá para contribuir.