Queixas de Lula ajudam a repolitizar política econômica brasileira 
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Queixas de Lula ajudam a repolitizar política econômica brasileira 

Ao criticar atuação do Banco Central, presidente chama a atenção para a necessidade de o governo definir taxa de juros e meta de inflação

Tatiana Py Dutra 16 fev 2023, 10:11

Imagine o Brasil com um Ministério da Saúde independente no qual o ministro fosse o Marcelo Queiroga. Ou, pior, Eduardo Pazuello. Lula seria presidente do país, mas quem responderia pelas questões sanitárias e pelo Sistema Único de Saúde (SUS) seria um ex-ministro de Jair Bolsonaro (PL), porque ele tem ali uma comunidade de profissionais da saúde ou lobistas que fizeram passar a lei da autonomia da pasta. Uma aberração, certo? Despropósito semelhante ocorre no Banco Central (BC) e, consequentemente, com a economia brasileira.

O debate sobre a autonomia do BC foi retomado recentemente, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fez uma série de críticas à atuação da instituição, que é responsável por executar a política monetária brasileira, e a seu presidente, o economista Roberto Campos Neto. Lula discorda da política monetária. Ele reclama tanto do volume da taxa básica de juros (Selic), hoje em 13,75% ao ano – a taxa de juros reais mais alta do mundo -, quanto da meta de inflação estipulada pelo BC. 

Para a autoridade monetária, a meta de inflação da economia brasileira deve ser de 3% ao ano (hoje é 3,25%), medida considerada irrealista por vários especialistas do mercado – uma vez que a média, de 1999 para cá, foi de 6%. Para Lula, a meta deveria ser 4%. O presidente do BC defende a meta atual.

“Não é possível que a gente queira que este país volte a crescer com taxa de 13,75%. Nós não temos inflação de demanda. É só isso. É por isso que eu acho que esse cidadão [Campos Neto], indicado pelo Senado, tem a possibilidade de matutar, de pensar e de saber como vai cuidar deste país. Ele tem muita responsabilidade”, afirmou Lula.

Campos Neto rebateu:

“A principal razão no caso da autonomia do Banco Central é desconectar o ciclo da política monetária do ciclo político porque eles têm planos e interesses diferentes. E quanto mais independente você for, mais eficaz você é e menos o país pagará em termos de custo de ineficiência na política monetária”.

Só é bom para rentistas

A queda de braço demonstra o quão fundamental é a definição da Selic para a política monetária nacional. Pedro Micussi, mestre em Sociologia e membro do grupo de pesquisa Macroeconomia Estruturalista do Desenvolvimento, explica que trata-se de uma variável chave apontada por qualquer manual de macroeconomia, como uma das formas que os governos têm para aquecer e desaquecer a demanda agregada. A aprovação de uma lei que dá autonomia ao Banco Central acabou por tirar das mãos do governo a capacidade de tratar da taxa de juros e do nível de atividade econômica como um todo.  

“E a justificativa vem de um argumento tecnicista e absolutamente equivocado de que a taxa de juros se resume a uma questão absolutamente técnica, quase científica, e que portanto não existe uma disputa e uma dimensão política ao redor dela. A política econômica reflete, na verdade, disputas de economia política sobre o que deve ou não deve ser o rumo da economia. No limite, o que parece, do modo que a lei foi feita, é que essa autonomia venha a despolitizar uma das questões fundamentais da política macroeconômica do país”, diz Micussi.

Isso fica muito claro agora, quando Campos Neto e parte do mercado financeiro julgam natural a manutenção da Selic em 13,25% num momento em que a economia brasileira está bastante comprimida. É uma decisão que vai manter a demanda agregada baixa, o desemprego alto e um PIB diminuto, mas que serve para remunerar com fartura os rentistas que detém não só os títulos de astronômica dívida pública do governo, como boa parte dos ativos da economia.

“Então, se a gente entende a taxa de juros como um instrumento de política econômica que, por sua vez, reflete disputas políticas sobre a interpretação dessa política, pode-se interpretar as falas do Lula como uma tentativa de repolitizar a questão. E acho que, nesse sentido, ele está muito correto. A política monetária é um elemento de política econômica e é um equívoco entender que a definição disso se dá por uma questão técnica e isenta da política”, argumenta.

O mito da isenção

Tanto não é isento que semanas atrás, jornalistas descobriram que Campos Neto faz parte de um grupo de Whatsapp formado por ex-ministros do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que o indicou para presidir a autoridade monetária.

“O que significa ter no responsável pela política monetária do Brasil um homem que, até dois meses atrás, se reportava a um presidente golpista, que é bolsonarista e tem seus interesses na definição da política monetária? Se a gente pensar sob esse ponto de vista, não é preciso ser nenhum especialista para perceber que pode haver conflito de interesses, vontade de remar contra e fazer com que a política brasileira não deslanche, por exemplo. Isso sem contar as próprias diferenças políticas e teóricas sobre o que é melhor para a economia. Basta lembrar que a equipe de Campos Neto, Paulo Guedes e Bolsonaro deixou o país com níveis calamitosos de fome e insegurança alimentar”, lembra Micussi.

Em 7 de fevereiro, a bancada do PSOL na Câmara dos Deputados protocolou projeto de lei para revogar a autonomia do BC e os mandatos do presidente e seus diretores. A proposta também veta que profissionais que tenham atuado no mercado financeiro nos quatro anos anteriores ocupem esses cargos.

 “A autonomia retira a autoridade do governo eleito sobre um instrumento central de definição da política econômica, inclusive interferindo na coordenação dos instrumentos disponíveis para implantação dessa política e reduzindo sua eficácia, ao diluir a responsabilidade sobre os seus resultados”, afirma a justificativa do projeto.

Nesse sentido, Micussi acha importante a tentativa de Lula em repolitizar a macroeconomia nacional, mesmo que liberais insistam em tratar o tema como se fosse uma espécie de “física” regida por certas leis fundamentais sobre as quais não há divergência ou disputa política. 

“Eles defendem a existência de uma ‘taxa de juros neutra’, que não faria nem aumentar a inflação nem comprimir a economia. Essa ideia, aliás, está baseada também na noção de haver algo como uma ‘taxa natural de desemprego’. Ficam claras nesse discurso as tentativas de naturalizar absurdos sociais historicamente construídos. Assim como se existe uma taxa de desemprego natural, não há nada que se possa fazer contra ela. Se existe uma taxa de juros neutra, isso requer um Banco Central independente que seja capaz de defini-la. É um equívoco completo”, afirma Micussi. 

Jogo para a torcida?

Mas Pedro Micussi acha importante lembrar que nos primeiros oito anos de Lula na presidência a taxa Selic operou a níveis altíssimos, declinando de 25,36% para 10,9% ao longo do mandato (2003-2011). O BC não era formalmente independente, mas como o próprio Lula gosta de dizer, “o era na prática”. O até então banqueiro Henrique Meirelles fez uma política monetária muito parecida com a de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o que trouxe uma série de consequências graves para a economia, entre elas a desindustrialização. 

“A gente precisa ficar atento. Se formos levar em consideração os primeiros oito anos de Lula, ele não foi radical em relação à redução da taxa básica de juros. É preciso fazer pressão para que ele vá até as últimas consequências por uma política monetária mais adequada às demandas do povo brasileiro”, alerta.

Até pelo acordo burguês que afiançou a vitória de Lula, surgem dúvidas se a insatisfação do presidente com a taxa de juros seja “ jogo para a torcida”. A pendenga seria uma sinalização à esquerda para camuflar uma negociação à direita. Saberemos em abril, quando o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), deve apresentar a proposta de um novo arcabouço fiscal para o Brasil. O plano deve dizer qual será a estratégia para debelar a inflação ao mesmo tempo em que dirá como cumprir promessas de campanha, como o aumento do salário mínimo, por exemplo. A conferir.


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