Por que sou marxista?
Texto do dirigente trotskista Ernst Mandel republicado atualmente em homenagem do centenário de seu nascimento.
Foto: Viento Sur
Via Viento Sur
A versão original deste texto de Ernest Mandel apareceu em alemão, em uma coleção de contribuições de marxistas de várias origens, aos quais foi pedido que dessem uma resposta pessoal ao título do livro, editado por Fritz J. Raddatz: Warum ich Marxist bin (Why I am a Marxist). O livro foi publicado inicialmente por Kindler Verlag, Munique, 1978 (Mandel, pp. 57-94), e depois em uma edição de bolso por Fischer Taschenbuch Verlag, Frankfurt, 1980 (Mandel, pp. 52-86). A contribuição de Mandel foi intitulada, no alemão original, com uma citação do jovem Marx: “Der Mensch ist das höchste Wesen fur den Menschen” (Para o ser humano, o ser supremo é o ser humano). Esta contribuição é publicada aqui, pela primeira vez, em francês. Traduzimos sistematicamente o “Mensch” alemão como “humano”, “ser humano” ou “humanidade”, singular ou plural, dependendo do contexto, e não como “homem”. (Gilbert Achcar, editor de Le Marxisme d’Ernest Mandel, Actuel Marx/Confrontations, PUF, Paris 1999).
I
A grande atração intelectual do marxismo reside no fato de que ele permite uma integração racional, completa e coerente de todas as ciências humanas sem equivalente até agora. Rompe com a absurda suposição de que o humano como estrutura anatômica não tem praticamente nenhuma relação com o humano como “zoon politikon”; o humano como produtor de bens materiais seria algo completamente diferente do humano como artista, poeta, pensador ou fundador de uma religião. No entanto, esta continua sendo a premissa subjacente de todas as ciências acadêmicas que estudam o humano.
Enquanto na antropologia física é natural enfatizar a estreita correlação entre a evolução da constituição física humana e o desenvolvimento das capacidades psíquicas (entre outras, a capacidade de comunicação elaborada e conceitualização), e enquanto no estudo da pré-história e etnologia, as culturas primitivas da humanidade são catalogadas rigorosamente (às vezes de forma mecanicista demais!) de acordo com os instrumentos de trabalho utilizados e a atividade econômica predominante, a historiografia acadêmica se recusa a reconhecer em sucessivos modos de produção a chave para a compreensão do desenvolvimento das civilizações e da história política; e a economia política dominante sustenta a lenda de um “desejo de propriedade” supostamente enraizado “na natureza humana”, que – independentemente do estado de desenvolvimento das forças produtivas e de uma forma historicamente datada de organização econômica – elevaria a propriedade privada, a produção de mercadorias e a competição ao status de instituições eternas de vida econômica.
O marxismo torna possível superar estas contradições óbvias. Partindo do fato estabelecido pela antropologia que o ser humano, sendo incompleto, só pode sobreviver como um ser social [1], o marxismo vê nesta limitação anatômica de nossa espécie a base de suas infinitas possibilidades de adaptação, ou seja, o fato de que a sociedade se tornou a “segunda natureza” do ser humano e que a adaptação a diferentes formas de organização social pode dar origem a infinitas variações de comportamento.
O marxismo permite explicar o caráter histórico das leis e formas sociais – e isto, naturalmente, não pelas qualidades físicas e psicológicas permanentes da espécie, que podem ter mudado muito pouco nos últimos dez mil anos – mas pelas mudanças ditadas pela forma que o trabalho assume como condição absolutamente necessária para a sobrevivência da humanidade.
Os seres humanos produzem sua vida material com a ajuda de meios de produção e, no âmbito desta produção, estabelecem certas relações entre si, que são chamadas de relações de produção. Estas relações de produção determinam em última instância a estrutura de qualquer ordem social como um modo específico de produção. A dialética do desenvolvimento das forças de produção (que compreende os meios de produção e o trabalho humano, ao qual devem ser acrescentadas as capacidades técnicas, científicas e intelectuais dos produtores), bem como o desenvolvimento das relações de produção (nas quais sua relativa rigidez, ou seja, seu caráter estrutural, desempenha um papel importante), determinam, em última instância, o curso da história humana, seus avanços e retrocessos, suas catástrofes e revoluções.
Mas, para o marxismo, as atividades sociais não econômicas dos seres humanos não são de forma alguma secundárias, muito menos acessórias. Justamente porque os seres humanos não podem sobreviver sem produção social, a comunicação social é antropologicamente constitutiva, no mesmo grau que o trabalho social. Os dois estão ligados e são inseparáveis. Um não pode existir sem o outro. Mas isto significa que o ser humano faz tudo o que empreende com sua cabeça, ou seja, ele reflete sobre esta sua praxe [2]. A produção de bens materiais anda de mãos dadas com a produção de conceitos (para os quais a produção de linguagem – fonemas – apenas fornece a matéria-prima). O marxismo tenta explicar como a produção imaterial (incluindo a produção de sistemas conceituais, ou seja, ideologia, religião, filosofia e ciência) se entrelaça com a produção da vida material, separa-se dela, reage sobre ela e o que determina este movimento histórico.
Nesta explicação, as seguintes descobertas têm um caráter decisivo, que, como as anteriores, são parte da essência do marxismo. No nível mais geral e abstrato de observação, em cada forma particular de sociedade (modo de produção), a totalidade da produção material pode ser dividida em duas categorias principais: por um lado, o produto necessário, que reproduz a força de trabalho dos produtores, bem como o dado estoque de meios de produção, permitindo a manutenção do nível de civilização material e a expansão demográfica da sociedade; por outro lado, o excedente, produto social que permanece após o produto necessário ter sido subtraído da produção social global. Se o produto social excedente for insignificante, instável e meramente incidental, haverá muito pouco crescimento econômico devido à falta de possibilidades de acumulação, e não poderá haver divisão significativa do trabalho. Somente quando o produto social excedente atingir um certo limite mínimo, em quantidade e duração, parte da produção atual poderá ser usada para alimentar mais pessoas e criar meios adicionais de produção, ou seja, uma verdadeira dinâmica de crescimento econômico poderá ser iniciada.
Ao mesmo tempo, a divisão econômica do trabalho pode se desenvolver: uma parte da sociedade pode ser liberada da coação da produção para sua própria manutenção, e o artesanato, a arte e o comércio, a escrita, a produção ideológica e científica, a atividade administrativa e bélica, podem gradualmente se tornarem ocupações autônomas ao serem separadas da produção estritamente para a manutenção dos produtores. Isto facilita a acumulação e transmissão da experiência acumulada, do conhecimento e dos recursos econômicos, o que, por sua vez, leva a um aumento ainda maior do poder produtivo do trabalho humano e a uma maior expansão do produto social excedente.
Acima de um certo nível de desenvolvimento, esta divisão econômica do trabalho também leva a uma divisão social, ou seja, as duas são combinadas. Uma parte da sociedade utiliza a divisão funcional do trabalho (por exemplo, funções de gestão de suprimentos, comando do exército, autoridade sobre prisioneiros de guerra, etc.) para assumir o controle do produto social excedente e forçar algumas ou todas as pessoas que produzem a ceder este produto excedente a ele em uma base permanente. Assim, a sociedade é dividida em classes sociais antagônicas, entre as quais uma luta de classes permanente (às vezes oculta, às vezes aberta, às vezes pacífica, às vezes violenta) é travada para a distribuição da produção material e – periodicamente, pelo menos – para a preservação ou superação da ordem social existente.
Com base nas relações dominantes de produção, desenvolve-se uma superestrutura complexa de modos de pensar, de comportamento, de normas legais e instituições coercitivas, sistemas ideológicos, etc., que têm a função de preservar a ordem social existente. A mais importante dessas instituições é o Estado, ou seja, um aparelho específico, separado do resto da sociedade e mantido com o produto excedente social, que obtém o monopólio do exercício de certas funções sociais. Como a classe dominante controla o produto excedente social, ela controla o Estado. Da mesma forma, a ideologia dominante (mas não só!) de cada sociedade é também a ideologia da classe dominante.
Este instrumento conceitual relativamente simples permite ao marxismo compreender e explicar de forma abrangente, e ao integrar cada vez mais dados empíricos, não apenas o desenvolvimento econômico e social, mas também a história dos estados, culturas, ciência, religião, filosofia, literatura, arte e moralidade, em suas peculiaridades e em suas transformações [3]. Este é seu maior patrimônio. O marxismo é a ciência do desenvolvimento da sociedade humana, ou seja, em última análise, a ciência do ser humano.
II
A concepção marxista da história e da sociedade se baseia no princípio de que cada modo de produção tem suas próprias leis de desenvolvimento, que determinam sua origem, crescimento, pleno desenvolvimento, declínio e desaparecimento. A maior contribuição teórica de Karl Marx está na descoberta das leis específicas do desenvolvimento do modo de produção capitalista. Este é, de fato, o conteúdo de sua obra principal. O capital existia antes do modo de produção capitalista. Ele se desenvolveu primeiramente no contexto da produção de mercadorias em pequena escala, através da autonomização do comércio monetário. Suas formas primitivas são o capital usurário e o capital comercial. Somente com a penetração do capital na esfera da produção nasce o capitalismo moderno. Somente quando o capital começa a dominar a esfera de produção, podemos realmente falar de um modo de produção capitalista definitivamente estabelecido.
O capital é um valor que gera mais-valia, é dinheiro em busca de mais dinheiro, a busca do enriquecimento torna-se o motivo dominante da atividade econômica. Uma das maiores descobertas de Karl Marx foi estabelecer que o capital, por si só, não é uma coisa. A criação de gado, uma quantidade de meios de trabalho acumulados ou até mesmo um arsenal de ouro e prata não são automaticamente capital. Essas coisas só se tornam capital sob certas condições sociais, que permitem a seu proprietário apropriar-se do excedente do produto social, em parte ou em quase-totalidade, de acordo com o peso desse capital na sociedade. Por trás da aparência das relações entre seres humanos e coisas, Marx descobriu a substância da relação capitalista como uma relação social de produção, como uma relação entre classes sociais.
A essência do modo de produção capitalista se encontra na relação entre trabalho assalariado e o capital, na separação dos produtores diretos de seus meios de trabalho e subsistência, por um lado, e no controle fragmentado – devido à propriedade privada dos meios de produção – da classe capitalista sobre os meios de produção, por outro [4]. As instituições econômicas estruturais surgem desta dupla divisão da sociedade. Os produtores diretos são economicamente obrigados a vender sua força de trabalho como seu único meio de subsistência. A totalidade das mercadorias produzidas é confiscada por aqueles que possuem os meios de produção que se apropriam delas. Surge então uma sociedade de produção generalizada de mercadorias, pois não somente todas as mercadorias produzidas estão disponíveis no mercado, mas também todos os meios de produção (incluindo a terra e o subsolo), bem como a própria força de trabalho.
Para os marxistas, são estas características estruturais que definem o caráter capitalista da economia e da sociedade, não os baixos salários, os produtores pobres, uma população assalariada sem poder político ou a não-intervenção do Estado na economia. Longe de meramente “descrever a evolução econômica do século XIX”, e sendo “superado pela evolução econômica do século XX”, O Capital de Marx é na verdade uma brilhante antecipação das tendências evolutivas que só se materializaram plenamente muito tempo após a morte do autor. Em todos os países capitalistas da época de Marx, com exceção da Grã-Bretanha, a maioria da população trabalhadora ainda consistia de pequenos produtores e comerciantes independentes, auxiliados [no trabalho] por suas famílias. Somente muito mais tarde essa população se decompôs em uma grande maioria de assalariados (já mais de 90% na Grã-Bretanha e nos EUA, mais de 80% na maioria dos outros países capitalistas industriais) e uma classe de grandes, médios e pequenos capitalistas, enquanto os pequenos produtores independentes, trabalhando sem assalariados externos, se tornaram uma minoria em extinção.
Para provar que já não vivemos mais em um modo de produção capitalista no sentido que Marx entendeu, o que serviria para apoiar o conto de uma economia mista, teria que ser demonstrado que os assalariados não são mais obrigados a vender sua força de trabalho continuamente (por exemplo, porque o Estado poderia garantir uma renda mínima de existência para todos os cidadãos), ou porque os meios de produção seriam tão baratos que seria possível a cada trabalhador poupar o suficiente de seu salário médio para se estabelecer de forma independente) e que o desenvolvimento da economia não seria mais dominado pela obrigação, impulsionada pela concorrência, de maximizar o lucro e o crescimento de cada empresa.
Se analisarmos o desenvolvimento econômico dos últimos cem, cinquenta e vinte e cinco anos, vemos que nenhuma dessas mudanças estruturais ocorreu. O capitalismo, como definido por Marx, segue tendo hoje, mais do que nunca, a característica da ordem econômica do mundo ocidental.
Não se trata de uma questão de definição, ou seja, de uma disputa semântica. A definição cientificamente exata da essência do modo de produção capitalista nos permite descobrir suas leis de funcionamento a longo prazo, bem como suas contradições internas. Aqui novamente encontramos uma notável superioridade da análise econômica marxista sobre as escolas neoclássicas de economia, que não têm nada equivalente para oferecer [5].
Como o capitalismo se baseia na propriedade privada dos meios de produção – ou seja, no poder, compartilhado por diferentes empresas e capitalistas, de dispor dos meios de trabalho e da força de trabalho, assim como na capacidade de decidir sobre investimentos – a produção capitalista está sob o signo da concorrência implacável e da anarquia de produção que dela resulta. Cada capitalista, cada empresa, procura maximizar o lucro e o crescimento, sem se preocupar com os efeitos desta tendência sobre a economia como um todo.
A fim de manter ou expandir a posição de mercado de cada competidor, a concorrência força a redução dos custos de produção. A redução dos custos de produção exige uma constante expansão da escala de produção, ou seja, a produção de séries cada vez maiores, que por sua vez exigem máquinas cada vez mais eficientes. No capitalismo, portanto, há uma tendência para um enorme desenvolvimento do progresso técnico, para a utilização permanente das descobertas científicas na produção de materiais, para a extensão ilimitada da massa de mercadorias e do parque industrial até a semi-automação prevista por Marx.
Mas cada vez mais máquinas requerem mais e mais capital. Para não ser derrotado pela concorrência, todo capitalista (a empresa capitalista) deve tentar continuamente expandir seu capital. A acumulação de capital é o objetivo essencial e o principal motor da vida econômica e do crescimento sob o capitalismo. Se a acumulação de capital desacelera, a atividade econômica diminui e a escassez e a miséria se espalham, apesar da disponibilidade de enormes reservas de bens e forças produtivas. Forçada a acumular capital, a classe capitalista não tem escolha a não ser tender a um maior grau de exploração da força de trabalho. Pois o capital não é mais que mais-valia capitalizada, e a mais-valia não é mais que trabalho não remunerado: é a diferença entre o novo valor total produzido pelo trabalho e os custos de reprodução da força de trabalho, ou seja, a forma monetária do produto social excedente. Dado que, com o aumento da produtividade do trabalho, uma determinada cesta básica de consumo (e mesmo uma cesta com um número crescente de bens de consumo) pode ser produzida em um tempo de trabalho cada vez menor (ou seja, em uma fração decrescente do dia normal de trabalho), isso é bem possível, no âmbito de determinadas relações de poder sócio-econômico – especialmente se o exército de reserva industrial (desemprego) for reduzido e diminuir a longo prazo – que os salários reais dos trabalhadores aumentem, ao mesmo tempo em que o grau de exploração aumenta e eles recebem uma parcela menor do novo valor que produziram.
Como apenas a força de trabalho viva produz novo valor e mais-valia, e a participação do capital gasto na compra de meios mortos de produção (edifícios, máquinas, matérias-primas, energia) aumenta, há uma tendência a médio e longo prazo para que a taxa média de lucro, ou seja, a relação entre o valor total do excedente social e o capital social total, caia.
As mudanças na taxa de lucro governam o desenvolvimento econômico sob o capitalismo. Uma diminuição na taxa de lucro determina uma diminuição na acumulação de capital, assim como uma diminuição no investimento, emprego, produção, renda real e uma situação econômica ruim. Um aumento da taxa de lucro determina uma tendência ao crescimento do acúmulo de capital, um aumento do investimento e da produção, e também determina, a longo prazo, um crescimento do emprego e da renda real, ou seja, uma boa situação econômica, embora em períodos bons e maus, todas estas tendências não se desenvolvam simultaneamente ou em paralelo. Também a longo prazo, no capitalismo há ondas de rápido crescimento econômico (1848-73, 1893-1913, 1948-1966) e ondas de crescimento mais lento (1823-1847, 1874-93, 1914-39, 1967-…). Essas ondas são condicionadas pela taxa média de curvas de lucro e pela possibilidade (ou dificuldade) de alcançar revoluções tecnológicas fundamentais.
Este movimento em forma de ondas da taxa de lucro determina a marcha cíclica da produção capitalista inerente ao sistema, ou seja, a sucessão regular de fases de superprodução periódica (recessão) e recuperação (até fases periódicas de expansão). A marcha cíclica da produção capitalista existirá enquanto existir produção capitalista, e nenhum “conjunto sofisticado de medidas contra-cíclicas de política estatal” pode impedir de forma sustentável o retorno a crises periódicas de superprodução. Crises de superprodução são explicadas pela competição, ou seja, por um lado, pela anarquia capitalista de produção, que necessariamente leva a um movimento ondulatório de excesso de investimento, e, por outro lado, por uma tendência, também inerente ao sistema, de desenvolver a produção (e a capacidade de produção) além dos limites aos quais o consumo solvente da grande maioria da população permanece confinado pelas relações de distribuição capitalista.
Certamente, cada uma das vinte crises econômicas gerais [6] que ocorreram até agora na história do mercado capitalista mundial tem suas próprias características que estão ligadas a aspectos específicos do desenvolvimento do mercado mundial (por exemplo, o papel do boom dos preços das commodities e do petróleo no desencadeamento da recessão de 1974-75). Mas é pouco científico e pouco sério explicar um evento que ocorreu 20 vezes em 150 anos exclusivamente ou principalmente com base em fatores que podem, no máximo, explicar apenas esta ou aquela crise em particular, e recusar explicar as causas gerais das crises econômicas capitalistas inerentes ao sistema.
É igualmente injustificado ver no constante retorno do crescimento econômico depois da crise uma prova dos erros da análise marxista. Marx nunca previu um colapso automático da economia capitalista no curso da grande crise econômica. Em sua análise, a crise tem precisamente a função objetiva de reativar a valorização e a acumulação de capital, através da desvalorização maciça do capital e do aumento maciço do grau de exploração da força de trabalho (tornado possível pelo desemprego em massa). Sua conclusão foi que um sistema que só pode alcançar crescimento econômico à custa da destruição violenta periódica das forças produtivas e da produção periódica de miséria generalizada, é um sistema irracional e desumano que deve ser substituído por um sistema melhor.
Uma acumulação de capital continuamente crescente leva, através da competição imposta pelo sistema, a uma crescente concentração e centralização do capital. Os peixes grandes comem os peixes pequenos. Em cada vez mais setores industriais, um punhado de trustes concentra dois terços ou mais da produção. A concentração e a centralização do capital conduzem à dominação do mercado para um grande número de produtos.
O capitalismo monopolista substitui o capitalismo liberal, onde os preços estavam sujeitos à livre concorrência. Nem os monopólios nem a crescente intervenção estatal na economia podem, a longo prazo, neutralizar os efeitos da lei do valor, controlar e garantir preços, mercados, produção e crescimento econômico. A supressão da concorrência e da anarquia em um nível os reproduz mais vigorosamente em um nível superior. De todas essas leis gerais de funcionamento do modo capitalista de produção derivam uma série de contradições fundamentais e crescentes do sistema.
O crescimento econômico capitalista é sempre desigual, impulsionado pela busca de lucros excedentes. O desenvolvimento e o subdesenvolvimento se condicionam mutuamente e levam a uma extrema polarização do poder econômico, tanto nacional quanto internacionalmente. Nos principais países capitalistas industrializados, os 1-2% mais ricos da população possuem mais de 50% da riqueza privada e freqüentemente mais de 75% do valor das ações de todas as corporações [7]. Menos de 800 empresas multinacionais já controlam entre um quarto e um terço da produção industrial capitalista mundial. Uma dúzia de grandes empresas especializadas no comércio de soja, trigo e milho, e algumas centenas de empresas agroalimentares controlam a maior parte do comércio mundial de alimentos. Setenta por cento da população mundial (os países subdesenvolvidos mais a China) recebem apenas 15% da renda mundial e respondem por menos de 10% do consumo mundial de energia.
O modo capitalista de produção gera cada vez mais a alienação do trabalho e a auto-alienação de todos os seres humanos. Se o trabalho é visto apenas como um meio de ganhar dinheiro, ele perde muito de sua dimensão criativa e de formação da personalidade. A tensão física, a monotonia ou o estresse permanente causados pela obrigação de realizar e o medo do fracasso transformam o trabalho em um fardo e uma calamidade. O ser humano não é mais o objetivo, mas o meio do sistema econômico; se degrada ao ponto de ser uma pequena engrenagem na máquina, por assim dizer.
A extrema racionalidade e o planejamento sofisticado dos cálculos de custos e investimentos, da organização da pesquisa e produção dentro da empresa, estão ligados à crescente irracionalidade do sistema como um todo. Esta irracionalidade se expressa não apenas nas crises recorrentes de superprodução, mas também nas enormes perdas devido ao fato de que, por um lado, as capacidades de produção não são plena e permanentemente utilizadas e, por outro lado, há um enorme desperdício de forças produtivas na produção irracional e prejudicial que põe em perigo a saúde, a natureza e a própria vida.
As crescentes contradições do sistema são periodicamente descarregadas numa sucessão explosiva de crises econômicas, sociais e político-militares extremamente destrutivas.
Todas essas contradições podem ser reduzidas a uma contradição central: a contradição entre a crescente socialização objetiva da produção e sua apropriação privada. O trabalho como atividade privada para o consumo imediato de produtores individuais ou pequenas comunidades há muito tempo se tornou marginal. Agora, uma dependência cada vez mais estreita une centenas de milhões de produtores em trabalhos que objetivamente não podem prescindir da cooperação. Mas a organização, direção e propósito deste enorme mecanismo não estão em suas mãos. Ela está nas mãos do grande capital. O lucro privado (o lucro de cada empresa individual) continua sendo o alfa e o ômega da organização econômica capitalista. A tendência desenfreada ao enriquecimento impede que as enormes capacidades produtivas sejam colocadas a serviço da satisfação das necessidades humanas e da emancipação de seus produtores. Cada vez mais, o valor de troca, que se tornou autônomo, transforma essas forças produtivas em forças destrutivas, que levam a terríveis catástrofes. As crescentes contradições do sistema são periodicamente descartadas numa sucessão explosiva de crises econômicas, sociais e político-militares extremamente destrutivas. A aniquilação da cultura material e da civilização humana básica, o retorno à barbárie, tornou-se uma possibilidade real e tangível.
III
A dimensão ativa e consciente do marxismo é uma parte constitutiva de sua concepção de história. É também um desafio diário para qualquer um que se defina como marxista. Se a sociedade burguesa aparece, superficialmente, como o campo de uma luta universal de uma pessoa contra outra, o marxismo vê estes confrontos estruturados como uma luta de classes. A luta de classes entre o trabalho assalariado e o capital domina o desenvolvimento social neste modo de produção. Em última análise, apenas o conflito social expressa as leis do movimento econômico e as contradições internas deste modo de produção.
Todos os assalariados e proprietários estão objetivamente envolvidos nesta luta de classes, gostem ou não. Os empresários capitalistas são forçados pela concorrência a maximizar seus lucros, ou seja, a maximizar a exploração de seus assalariados, que, por sua vez, não têm outra escolha senão lutar por salários mais altos e horários de trabalho mais curtos se quiserem manter ou melhorar sua posição na sociedade burguesa.
A experiência prática mostra como no confronto individual entre o assalariado e o empresário capitalista, o assalariado é sistematicamente derrotado por causa de sua impotência financeira e econômica. Ele deve vender continuamente sua força de trabalho, enquanto o capitalista tem reservas suficientes para poder esperar por um preço que lhe convém. Assim, a pressão material pressiona os assalariados a se reagruparem, a se organizarem coletivamente, a criarem fundos de greve, sindicatos, cooperativas e finalmente partidos políticos de trabalhadores.
Mas esta restrição objetiva não é experimentada mecanicamente da mesma forma por todos os trabalhadores. Nem eles reagem imediata e continuamente da mesma forma a esta obrigação. Algumas pessoas são mais rápidas do que outras a perceber a necessidade de uma coalizão e as condições sob as quais ela pode ser bem sucedida. Alguns tirarão consistentemente conclusões práticas desta realização, outros menos ou não o farão. Pessoas de outras classes sociais também podem se juntar à luta de classes proletárias, seja por convicção científica, seja por identificação moral com os explorados, ou por ambas as razões (para algumas pessoas, isto pode até ser explicado pela aspiração de uma carreira individual nas organizações de massa).
O fato de que a luta de classes proletária só pode ser entendida como resultado de uma dialética de fatores históricos objetivos e subjetivos não implica de forma alguma que o marxismo reintroduza o puro acaso e a indeterminação pela janela, por assim dizer, em sua concepção de história, depois de tê-los jogado pela primeira vez pela porta em nome das leis do processo histórico reveladas pelo materialismo histórico [8]. Isto só significa que o processo histórico não segue uma linha perfeitamente reta e unilateral, que cada crise histórica não tende a um único resultado possível, mas pode levar ou ao progresso histórico (uma revolução social bem sucedida) ou à regressão histórica (um declínio no nível material e cultural alcançado pela civilização).
Entretanto, a estrutura destas possíveis variações permanece pré-determinada pelas condições materiais e sociais. O fim de uma ordem social é inevitável após um certo grau de acentuação de suas contradições internas. Nada poderia salvar a decadente sociedade escrava do século III a.C. em diante, nem a decadente sociedade feudal tardia do século XVII em diante. A única coisa que não foi determinada foi a forma concreta de sua superação; isto é, dependia do desenvolvimento das relações de forças entre as classes sociais que lutam pelo poder (relações de forças que incluem a iniciativa política assim como os elementos ideológicos da luta de classes).
Da mesma forma, a possibilidade de encontrar uma saída para uma crise social é materialmente predeterminada. Dado o nível de desenvolvimento das forças produtivas nas diferentes épocas, a crise da antiguidade, como a do feudalismo, não poderia levar a uma sociedade comunista, apesar de toda a convicção e determinação dos essênios e dos primeiros cristãos, dos hussitas e dos anabatistas. No atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas, qualquer tentativa de retornar à simples produção de mercadorias e à produção privada em pequena escala seria pura utopia.
Como a concepção marxista da história dá peso decisivo à luta de classes na determinação do curso concreto dos acontecimentos, o marxismo tende a restabelecer a unidade da teoria e da prática, há tanto tempo destruída pela divisão social do trabalho e pela divisão de classes da sociedade. Ele se esforça para alcançar isto em três níveis: primeiro, no nível epistemológico geral, reconhecendo a verificação pela prática como a forma final de confirmação de qualquer hipótese científica – incluindo sua própria [9]-; segundo, definindo a possibilidade de uma transformação socialista da sociedade, de um resultado positivo da luta de classes proletária, ou seja, da solução do dilema de como os seres humanos, cuja motivação individual é amplamente condicionada por uma sociedade de classes alienante, poderiam construir uma sociedade sem classes. O marxismo responde a esta vulgar objeção materialista dizendo que, se os seres humanos são de fato o produto das condições em que vivem, estas condições são também o produto da ação humana [10].
A transformação revolucionária das condições de existência e a auto-educação revolucionária dos seres humanos para uma transformação consciente de seu ser social são, portanto, dois processos inseparavelmente interligados, cuja base material é produzida pelas contradições internas do modo de produção capitalista, pelo alto grau de desenvolvimento das forças produtivas e pela lógica interna da extensão da luta de classes proletária. No proletariado educado no marxismo, a teoria científica e a práxis da transformação social também estão cada vez mais unidas na prática.
Finalmente, o marxismo também tende ao restabelecimento da unidade da teoria científica e da práxis política revolucionária para cada marxista individual. Um marxismo de salão puramente contemplativo seria um pseudo-marxismo, castrado, alienado e coisificado, não apenas na prática, mas também na teoria, pois teria que tender para um determinismo econômico fatalista.
Esta ligação necessária entre a teoria marxista e a prática socialista-revolucionária implica para o teórico marxista uma tendência a perder o distanciamento científico e a objetividade, uma limitação dessa capacidade de explicar os fenômenos sociais em sua globalidade, que é precisamente a atração intelectual do marxismo? De modo algum. A negação da objetividade científica é o subjetivismo (preconceito e arbitrariedade no uso de dados empíricos), não a tomada de partido. O subjetivismo leva ou a ignorar as questões levantadas ou a negar dados que não estão de acordo com algum conceito dogmático. Nada é mais estranho ao marxismo – cujo fundador escolheu como lema: de omnibus dubitandum est – do que uma abordagem tão pouco científica para a análise dos fenômenos sociais.
A verificação rigorosa das fontes e dos fatos; a prontidão para rever todas as hipóteses de trabalho, quando tendências contraditórias comecem a aparecer ou realmente apareçam; um desdobramento ilimitado da mais ampla liberdade de crítica e, portanto, a necessidade do pluralismo científico e ideológico: estes não são apenas componentes do método marxista, eles são, por assim dizer, as condições prévias necessárias para que o próprio marxismo atinja seu pleno potencial. Sem estas condições, ele evolui para um Talmudismo sem sabor ou – pior ainda – para uma religião de Estado estéril.
Precisamente porque o marxismo não trata da ciência pela ciência, porque é partidário no sentido mais nobre da palavra, ou seja, visa não apenas interpretar o mundo, mas também transformá-lo na direção da emancipação das classes trabalhadoras, é por esta razão que não pode desviar-se de forma alguma da objetividade científica estrita na análise da sociedade. Somente uma teoria cientificamente fundamentada que reflita a realidade pode ser uma arma eficaz na luta pela transformação socialista da sociedade. A objetividade científica não pode ser violada por razões partidárias, porque isso seria como molhar a pólvora antes de atirar. E ainda não se ganhou nenhuma batalha com a pólvora molhada.
Uma ciência social imparcial, axiologicamente neutra, que se posiciona neutralmente na luta de classes, não pode existir em uma sociedade dividida em classes, quaisquer que sejam as aspirações subjetivas dos pesquisadores científicos, que muitas vezes tendem a ir nessa direção. Um exemplo notável é dado pela evolução da economia acadêmica e oficial nos últimos cinco anos. Quando se trata de avaliar a solvência dos Estados solicitantes de empréstimos, instituições como o Fundo Monetário Internacional impõem uma redução nos gastos sociais aos governos solicitantes; quando, no caso de um povo tão pobre como o egípcio, exigem sem o menor escrúpulo que os subsídios para alimentos básicos sejam radicalmente reduzidos ou mesmo abolidos (o que condena literalmente parte desta população à fome), isto é claramente uma tentativa em escala global de aumentar a taxa de lucro reduzindo o custo da “força de trabalho” da mercadoria.
Que isto pode ser justificado de um ponto de vista puramente técnico (com referência à inflação, ao déficit da balança de pagamentos, ao déficit orçamentário, etc.) só prova que a economia política oficial, ao aceitar tacitamente se colocar exclusivamente no âmbito da ordem econômica existente, também é tacitamente obrigada a se subordinar às leis da acumulação de capital, ou seja, às necessidades da luta de classes do capital.
IV
A luta de classes proletária, em sua forma elementar, ainda não é uma luta de classes socialista. É verdade que ela está evoluindo, pelo próprio fato de sua extensão, de uma luta estritamente econômica para uma luta objetivamente política, na medida em que não mais opõe apenas assalariados isolados dos capitalistas isolados, mas às amplas massas daqueles que recebem um salário ou um rendimento do conjunto dos detentores [11. Mas tal luta de classes objetiva e politicamente elementar, por seus efeitos subjetivos sobre a consciência de classe do proletariado, só pode acrescentar aos confrontos entre assalariados e capital a possibilidade periódica da luta pela conquista do poder político com o objetivo de uma derrubada radical da sociedade burguesa, ou seja, uma dimensão anticapitalista consciente.
Esses confrontos são tão inevitáveis e inscritos na natureza do sistema capitalista quanto a decadência e a decomposição desse sistema. Mas nem a vitória do socialismo nem o desenvolvimento da consciência de classe proletária ao seu mais alto nível são inevitáveis. Assim, encontramos aqui novamente o fator subjetivo da história – ou seja, a intervenção consciente e orientada a metas no processo histórico objetivo – como o componente decisivo do marxismo. Várias conclusões importantes podem ser tiradas a partir deste fato.
A estratificação sócio-econômica do proletariado, a apropriação desigual do conhecimento científico (ou, como um lado negativo do mesmo fenômeno, a influência desigual da ideologia burguesa e pequeno-burguesa), a disposição desigual para o envolvimento pessoal contínuo em um sindicato ou organização política, levam a uma inevitável diferenciação da consciência de classe proletária. Somente a organização da vanguarda socialmente consciente em um partido de vanguarda revolucionário pode assegurar a continuidade desta consciência, bem como seu constante reforço através das experiências de cada nova fase da luta de classes.
Mas somente um partido que consegue transmitir à maioria dos homens e mulheres trabalhadores o nível de consciência de classe necessário para a vitória da revolução socialista é verdadeira e objetivamente a vanguarda da classe. Esta transmissão só pode ocorrer através de uma intervenção efetiva na verdadeira luta de classes. A necessária unidade dialética de vanguarda e classe, de organização e espontaneidade, está inscrita tanto na natureza do proletariado quanto na natureza da revolução proletária e da ordem socialista dos conselhos [12].
A dialética de meios e fins obtém assim uma estrutura objetivamente definível. Justamente porque o objetivo socialista não pode ser alcançado sem aumentar a confiança dos trabalhadores em sua própria força, seu sentimento de pertencer a um todo e sua solidariedade de classe, somente esses meios, táticas e compromissos são úteis e aplicáveis – na medida em que levam ao objetivo socialista – que elevam a consciência de classe como um todo, ao invés de restringi-la ou degradá-la [13]. Qualquer tática que tenha o efeito oposto na consciência de classe dos trabalhadores, por mais eficaz que apareça imediatamente de um ponto de vista puramente prático, a longo prazo irá afastar-se do objetivo socialista, e não em direção a ele.
Assim, os componentes críticos e autocríticos do marxismo são especialmente enfatizados. O marxismo não é apenas aberto, e por isso distante do dogmatismo, porque se refere a um processo histórico em constante movimento, que constantemente aumenta e transforma a matéria-prima das ciências sociais (em relação ao presente, mas também em relação ao passado); ele não é aberto apenas porque sua referência à práxis significa que ele olha constantemente para o futuro, um futuro que nunca pode ser totalmente conhecido antecipadamente, uma vez que uma intervenção deliberada poderia mudar o resultado de um processo histórico. O marxismo também é aberto porque o fator decisivo na transição do capitalismo para o socialismo continua sendo o aumento da consciência de classe do proletariado, assim como o grau de independência, auto-organização e iniciativa na luta dos trabalhadores.
Na luta de classes, toda intervenção organizada, seja em uma greve, nas eleições ou na construção do socialismo, todo discurso em uma assembleia de trabalhadores e todo panfleto que os trabalhadores vão ler, deve ser considerada do seguinte ponto de vista: quais serão os efeitos desta intervenção sobre a consciência de classe? Entretanto, o julgamento sobre esses efeitos permanece necessariamente hipotético durante a própria ação. Somente a experiência prática posterior pode estabelecer se foi certo ou errado. Isto explica a grande importância que o marxismo atribui à história das lutas de classe proletária, pois é o único laboratório que nos permite avaliar táticas e métodos de luta com base na experiência passada.
Segue-se que sem uma reflexão objetiva e crítica, inclusive de si mesmo, nem uma luta de classes socialista consciente, nem um autêntico partido revolucionário, nem um autêntico marxismo genuíno são concebíveis. Um pseudo-marxismo que sacrifica uma autocrítica pública impiedosa, a expressão pública da verdade, por mais cruel que seja, a quem sabe o que exige na prática, é indigno não só da dimensão científica do marxismo, mas também de sua dimensão libertadora. É também, a longo prazo, totalmente ineficaz.
Mas uma luta de classe política deve preocupar-se com todos os fenômenos sociais, aqueles que dizem respeito a mais do que alguns indivíduos isolados. Portanto, ela vai necessariamente além da luta de classes elementar pela distribuição da renda nacional entre salários e lucros (mais-valia). Esta luta de classes elementar, por si só, é incapaz de colocar o problema da abolição da propriedade privada dos meios de produção, a questão da expropriação dos expropriadores.
A questão do Estado, a questão da liberdade política e da atividade autônoma dos trabalhadores, a questão da transição da democracia representativa para a democracia direta desempenham aqui um papel absolutamente decisivo. Uma compreensão clara de todas estas questões requer uma educação progressiva (auto-educação) do proletariado, interessando-se por todos os problemas políticos e sociais que dizem respeito a todas as classes da sociedade burguesa [14].
O fato de esta exigência estar inscrita na concepção marxista da história e da ação nada deve ao acaso, nem a considerações puramente táticas. Ela corresponde à própria essência da luta de classes proletária, que se concebe apenas como um meio para atingir o objetivo de uma sociedade sem classes, uma sociedade na qual, com o desaparecimento da exploração do homem pelo homem, todas as formas de opressão e violência exercidas pelo ser humano contra outros seres humanos devem desaparecer. A indiferença ou tolerância com tais formas de opressão, ou pior, seu ressurgimento, não pode levar ao objetivo socialista.
Isto, por sua vez, inclui a compreensão da necessidade de uma luta prática contra todas as formas de exploração e opressão – sejam elas dirigidas contra as mulheres ou contra as raças, nacionalidades, povos, grupos etários, etc. -.
Assim, há também um componente ético do marxismo que tem um fundamento materialista objetivo. Quando marxistas consistentes dizem que consideram tudo do ponto de vista da luta de classes proletária, eles implicam que este ponto de vista se baseia no seguinte teorema: somente o que eleva a consciência de classe proletária e, em particular, o que permite que homens e mulheres trabalhadores adquiram uma compreensão mais profunda das diferenças fundamentais entre a sociedade burguesa e a sociedade sem classes, promove a luta de classes proletária a longo prazo. Isto, por sua vez, inclui uma compreensão da necessidade de luta prática contra todas as formas de exploração e opressão – seja contra as mulheres ou contra as raças, nacionalidades, povos, grupos etários, etc. – como um componente necessário da luta mundial por uma sociedade socialista. O marxismo parte “do ensinamento de que para o ser humano, o ser supremo é o ser humano e, portanto, do imperativo categórico de derrubar todas as relações que tornam o ser humano humilhado, escravizado, abandonado, depreciado” [15].
Este entendimento, sem dúvida, decorre de uma necessidade psicológica individual de protestar e rebelar-se contra todas as formas de negação de direitos, injustiça e desigualdade. Mas ela também decorre de uma necessidade histórica objetiva.
Somente um controle geral consciente das forças produtivas materiais pela humanidade pode impedir que elas sejam progressivamente transformadas em forças destrutivas da natureza e da cultura. Mas o controle consciente pressupõe uma capacidade de julgamento, tanto individual quanto coletivo. A auto-educação do proletariado para a emancipação efetiva e o verdadeiro internacionalismo que o marxismo promove é, em última instância, uma auto-educação da capacidade individual de julgamento e tomada de decisão do proletariado dentro da estrutura coletiva. Sem isso, a autogestão socialista e a economia planejada socialista não passariam de uma fórmula oca, se não cínica.
A socialização da economia só pode dar o salto de um processo puramente objetivo para um processo sob controle subjetivo quando a coletivização das relações de propriedade e a gestão das forças produtivas são acompanhadas dialeticamente e combinadas com uma individualização progressiva da capacidade de tomada de decisão [16]. Estender a realização de todas as potencialidades da personalidade humana a todos os produtores e a todas as pessoas não é apenas o grande objetivo do socialismo, mas também, cada vez mais, um meio indispensável para atingir este objetivo.
V
A teoria marxista distingue entre as condições mais propícias para a derrubada do capitalismo e aquelas necessárias para a construção de uma sociedade socialista plenamente desenvolvida. A primeira se refere sobretudo ao equilíbrio sócio-político de forças. Não apenas à força relativa do proletariado e seu partido de vanguarda revolucionário, mas também à relativa fraqueza da burguesia e, por exemplo, à possibilidade de unir à revolução proletária a maioria de uma população trabalhadora ainda em grande parte não proletária – a camponesa – precisamente porque a burguesia nos países capitalistas subdesenvolvidos é incapaz, na era imperialista, de superar radicalmente as relações pré-capitalistas no campo. Estas últimas condições dependem de um alto nível de desenvolvimento das forças produtivas e de uma maturidade político-cultural do proletariado, permitindo um grau máximo de democracia direta dos conselhos, de autogestão, de crescimento econômico harmonioso, de um desmantelamento sistemático das relações de mercado e monetárias através da rápida generalização da saturação no consumo de bens e serviços indispensáveis (ou seja, uma transição progressiva para a distribuição de acordo com o critério de satisfação das necessidades).
É óbvio que o relativo subdesenvolvimento do capitalismo em alguns países da era imperialista facilita a conquista do poder político pelo proletariado, pelas mesmas razões que tornam a construção de uma sociedade sem classes nestes países consideravelmente mais difícil ou mesmo impossível enquanto a revolução permanecer isolada. A teoria da revolução permanente de Trotsky – que, juntamente com a teoria da organização de Lenin, é o desenvolvimento mais importante do marxismo depois de Marx e Engels – lhe permitiu, já em 1905-1906, prever corretamente estes dois aspectos contraditórios da revolução no século XX [17].
A conclusão que se tirou da percepção do caráter dialético da revolução socialista nos países relativamente subdesenvolvidos foi a de não repudiar estas revoluções como prematuras com o argumento de que elas condenariam o partido e a classe revolucionária à ruína [18]. Pelo contrário, era para compreender a inevitabilidade de tais revoluções prematuras na era imperialista – a única outra possibilidade era permanecer atolado em um subdesenvolvimento bárbaro! – e a necessidade de vê-las como pontos de partida para a revolução socialista mundial, que pode gradual e incrementalmente se estender às nações industriais mais importantes do mundo. A tragédia do socialismo desde 1917 não é que os marxistas tenham tentado contribuir para sua vitória nos países subdesenvolvidos. Esse é antes o seu mérito do ponto de vista da história mundial. Sua tragédia é que permaneceu isolado nesses países, ou seja, ainda não triunfou nos países industrializados do Ocidente, apesar de inúmeras ocasiões históricas favoráveis (Alemanha em 1918-19, 1920, 1923; França em 1936, 1944-47, 1968; Itália em 1919-20, 1945-48, 1969-70; Inglaterra em 1926, 1945-48; Espanha em 1936-37, etc.) [19].
Assim nasceu um novo fenômeno histórico, primeiro na União Soviética, depois na Europa de Leste, China, Cuba e Vietnã. Nestes países encontramos uma sociedade que já não é capitalista, na qual nenhuma das leis do capitalismo acima descritas funciona, mas que ao mesmo tempo está ainda longe de construir uma sociedade socialista no sentido em que Marx e Engels definiram a primeira fase da sociedade sem classes [20]. É uma sociedade que o atraso da revolução proletária mundial bloqueou e paralisou na fase de transição do capitalismo para o socialismo.
As condições historicamente particulares em que esta paralisia ocorreu levaram à degeneração burocrática destas sociedades de transição. Um estrato social – a burocracia do Estado, da economia, do partido e do exército – apropria-se de privilégios importantes na esfera do consumo. Uma vez que os seus privilégios se limitam a esta esfera e não desempenham um papel indispensável na esfera da produção, não são uma nova classe dominante. Sem parasitismo, a acumulação produtiva socialmente necessária não diminuiria mas, pelo contrário, aumentaria; o crescimento econômico não experimentaria um desenvolvimento negativo mas, pelo contrário, aceleraria. Mas precisamente por ser uma camada parasitária, a burocracia só pode estabelecer os seus privilégios com base no controle ilimitado do excedente social, ou seja, pelo controle absoluto do Estado, da economia e das armas, pela ausência de direitos políticos, pela atomização e passividade das amplas massas trabalhadoras [21]. Como demonstraram os acontecimentos na Hungria e Polónia em 1956, na Checoslováquia em 1968 (e parcialmente na China em 1966-67), qualquer novo impulso da actividade política de massas nestas sociedades conduz a uma tendência quase automática para uma ordem social verdadeiramente de conselhos [populares] e para o colapso quase automático da ditadura da burocracia.
Ao classificar esta ditadura como socialismo real ou realizado, os apologistas, tanto do Oriente como do Ocidente, tornaram a burguesia mundial o maior serviço ideológico e político imaginável, um serviço sem o qual o capitalismo provavelmente não existiria de todo, pelo menos na Europa Ocidental. A identificação do socialismo com as condições de opressão política e falta de liberdade individual no Leste é atualmente a principal razão pela qual os assalariados em vários grandes países ocidentais são relativamente acomodados à sociedade burguesa, mesmo que esta última esteja a tornar-se cada vez mais propensa a crises.
Esta identificação só pode ser definitivamente quebrada quando a revolução proletária triunfa em um ou mais países ocidentais altamente desenvolvidos e apresenta ao proletariado mundial um modelo de socialismo (ou, mais precisamente, o modelo de um socialismo em construção e ainda inacabado) realizado na prática e fundamentalmente diferente do da URSS. Não estamos em condições de dar uma descrição detalhada de como este modelo será na realidade. Mas as suas principais características podem ser aproximadamente deduzidas tanto dos elementos da nova sociedade que já surgiram na antiga, como da assimilação crítica de todas as experiências (tanto positivas como negativas) das anteriores revoluções proletárias do século XX.
A principal característica deste modelo de socialismo será, no plano político, a democracia dos conselhos, ou seja, o exercício direto do poder político pela classe trabalhadora e os seus representantes livremente eleitos. O partido revolucionário exercerá o seu papel de liderança no sistema de conselhos através da sua capacidade de convencer política e ideologicamente a maioria da população trabalhadora, não através da coerção e repressão dos seus opositores políticos. Isto pressupõe um sistema multipartidário, liberdade total para organizar reuniões, manifestações e imprensa, a independência dos sindicatos, o direito à greve e o pleno respeito pelo pluralismo ideológico, científico, artístico e filosófico. Em contraste com a democracia parlamentar burguesa, estes direitos democráticos fundamentais serão tanto mais extensivos quanto deixarão de ser puramente formais, mas poderão adquirir um conteúdo real, na medida em que as pessoas estejam asseguradas das condições materiais e do tempo indispensável para o seu exercício efectivo. Isto significa também uma mudança crescente para a democracia direta, para o exercício imediato do poder estatal pelos próprios trabalhadores, para a autogestão pelos cidadãos e comunidades num número significativo de setores da sociedade, ou seja, uma dinâmica que conduza ao declínio gradual do Estado.
Do ponto de vista econômico, este modelo será caracterizado por uma autogestão planejada e democraticamente centralizada da economia, na qual os próprios produtores associados decidirão sobre todas as prioridades que determinam o desenvolvimento econômico, e sempre no nível em que estas decisões podem realmente ser tomadas: nos congressos nacionais de todos os conselhos e nos congressos dos ramos industriais, para decisões importantes de investimento; a nível da empresa ou do setor industrial (ou das empresas federadas de acordo com o modo cooperativo), para a organização do trabalho; a nível comunitário e regional, para investimentos sociais; em conferências de produtores e consumidores com recurso à televisão, referendos escritos e pesquisas, para decidir sobre a variedade de produtos; em congressos internacionais de conselhos, para um número crescente de decisões relativas a grandes investimentos ou proteção ambiental, etc.
A autogestão dos trabalhadores realizada (e não apenas demagogicamente proclamada) exige uma redução radical das horas de trabalho, um aumento contínuo do nível técnico e cultural dos produtores diretos, uma redução radical das desigualdades salariais e uma eliminação gradual das regras de distribuição burguesas (relações monetárias e de mercado). O controle público radical e a mais ampla democracia política possível dos conselhos são as únicas garantias contra o parasitismo, a corrupção e o desperdício, ou seja, contra a regressão das relações de produção causada pela sobrevivência das relações monetárias e de mercado na distribuição de bens de consumo.
Este modelo, tanto político quanto econômico, está intimamente ligado a uma mudança gradual na motivação e na consciência do trabalho, que por sua vez estão ligados a uma mudança crescente na tecnologia, na organização do trabalho e no conteúdo do processo de trabalho (eliminação de todos os processos mecânicos e monótonos, que só são suportadas passivamente como um serviço à comunidade), bem como à superação da separação entre trabalho manual e intelectual, entre produção e administração, e a mudanças nos costumes e hábitos. Todas essas mudanças atuam umas sobre as outras e condicionam umas às outras na auto-educação dos produtores associados e no autodesenvolvimento da humanidade socialista. Elas exigem uma imediata progressão qualitativa da solidariedade internacional, ou seja, uma redistribuição significativa dos valores de uso produzidos em todo o mundo, já que um mundo socialista no qual abundância e muito tempo livre coexistissem no hemisfério norte com fome ou subdesenvolvimento no hemisfério sul seria uma monstruosidade que nada teria a ver com o verdadeiro socialismo.
Os ideólogos burgueses consideram o marxismo responsável por [ter produzido] Stalin e tudo o que deu errado, e continua dando errado, na URSS, na Europa Oriental e na China. Poderíamos também condenar a medicina e apelar para um retorno à charlatanice institucionalizada porque muitos doentes não foram curados por uma assistência médica ineficaz nos últimos sessenta anos. Podemos até mesmo inverter o argumento. Uma outra confirmação da superioridade do marxismo como ciência social reside no fato de que ele foi capaz de descobrir as causas, segredos e leis de funcionamento daquele imprevisto fenômeno histórico, a sociedade burocratizada de transição do capitalismo para o socialismo, e de desmascarar completamente a mistificação do pseudo-marxismo aplicado. Em comparação, as tentativas de análise teórica da sovietologia acadêmica são obra de amadores, enquanto as leis que ela afirma ter descoberto são reduzidas a lugares comuns, quando não são rapidamente substituídas por uma evolução objetiva.
VI
Quando o marxismo eleva a luta contra todas as formas de exploração e opressão ao nível de um imperativo categórico e submete sua suposta realização na União Soviética e em outros lugares às mais severas críticas [22], ele não cai de forma alguma em uma espécie de idealismo histórico que se oporia a um modelo ideal utópico para a superação real das condições existentes. Ele apenas eleva o entendimento materialista da história a um nível superior, no qual a unidade da teoria e da prática adquire novamente uma dimensão adicional.
De fato, ao longo da história humana, existem duas constantes paralelas, embora contraditórias. Por um lado, as guerras, as sucessivas formas de sociedades de classe e a luta de classes atestam, até o momento, a incapacidade dos seres humanos de estender os princípios da colaboração voluntária, cooperação e parceria solidária a toda a humanidade. A aplicação prática destes princípios durante um longo período de tempo permanece limitada a fragmentos mais ou menos grandes da raça humana: comunidades tribais ou de aldeia, certas formas de famílias estendidas, classes sociais que lutam por objetivos comuns. Já conhecemos as causas materiais desta tendência que constantemente empurra a sociedade para a ruptura, e sabemos como o nível agora alcançado pela ciência e pela tecnologia coloca cada vez mais em perigo a existência da civilização, e até mesmo a própria sobrevivência física da humanidade.
Por outro lado, a aspiração por uma sociedade de produtores livres, iguais e associados permanece tão profundamente enraizada na história humana quanto a própria divisão de classes, a desigualdade social, a injustiça e a violência exercida sobre os seres humanos por outros seres humanos que acompanham esta divisão. Apesar de toda a influência ideológica das classes dominantes, que constantemente tentam nos convencer de que sempre houve e sempre haverá ricos e pobres, poderosos e oprimidos, dominantes e dominados, e que, portanto, é inútil lutar por uma sociedade de igual para igual, a história é, no entanto, marcada por uma sucessão contínua de revoltas, rebeliões, revoltas e revoluções contra a exploração dos pobres e a opressão dos oprimidos. Estas tentativas de auto-emancipação da humanidade fracassam repetidamente. Mas elas são renovadas repetidamente e – historicamente consideradas, em cada sociedade materialmente mais avançada – com uma visão mais clara do futuro, objetivos mais ousados e maiores e maiores possibilidades de realmente alcançar o objetivo.
Nós, marxistas da era da luta de classes entre capital e trabalho assalariado, somos apenas os mais recentes representantes desta antiga corrente, cujos primórdios remontam à primeira greve no Egito faraônico [23], e que, passando por inúmeras revoltas de escravos na antiguidade e revoltas camponesas na China antiga e no Japão, leva à grande continuidade da tradição revolucionária dos tempos modernos e do presente.
Esta continuidade é o resultado da insaciável faísca de insubordinação diante da desigualdade, exploração, injustiça e opressão, que sempre surge de novo dentro da humanidade. Nisso reside a certeza de nossa vitória. Para nenhum César ou Pôncio Pilatos, nenhum imperador de direito divino ou da Inquisição, nenhum Hitler ou Stalin, nenhum terror ou sociedade de consumo conseguiu extinguir esta centelha de uma vez por todas. É demais, de acordo com nossas predisposições antropológicas – com o fato de que os seres humanos são seres sociais, que não podem sobreviver sem socialização crescente e sem andar de pé – para que não se manifestem incessantemente 24 horas por dia, às vezes neste país ou continente e às vezes em outro, às vezes nesta classe social e às vezes em outra, às vezes apenas entre poetas, filósofos e estudiosos, às vezes entre grandes massas de pessoas, de acordo segundo os acontecimentos da história, assim como os interesses materiais e as lutas de classe política e ideológica que os governam.
Alguns neurofisiólogos, psicólogos e cientistas comportamentais afirmam relacionar esta dualidade da história humana com a estruturação binária de nosso sistema nervoso central, que corresponderia à combinação de ações reflexivas e instintivas no indivíduo. A única coisa que esta tese pode demonstrar é a possibilidade da agressividade humana e da ação destrutiva, o fato de que as potencialidades destrutivas permanecem profundamente enraizadas no ser humano, cuja origem remonta a tempos anteriores à espécie humana ou ao próprio início da espécie humana. Mas quais são as razões pelas quais estas potencialidades são mais ou menos pronunciadas em uma determinada época; porque houve épocas, culturas e sociedades mais pacíficas ou agressivas que outras; porque não pode haver uma ordem social que radicalmente e definitivamente (ou pelo menos a muito longo prazo) contenha estas potenciais forças destrutivas, ou as canalize de forma inofensiva para os seres humanos… são questões para as quais estas teses não fornecem uma resposta. Esta é a questão principal e o principal objetivo do marxismo como ciência da humanidade em seu conjunto.
Entretanto, achamos mais apropriado lembrar o seguinte: a raça humana, com toda sua fraqueza, habitada há centenas de milhares de anos pelo medo de forças naturais esmagadoras, e tendo desenvolvido formas elementares de cooperação social em sua luta contra elas, só tem sido capaz de ganhar um domínio progressivo sobre essas forças à custa de uma crescente degradação da solidariedade social. Este domínio exigia um acúmulo cada vez maior de partes do produto social ao invés de seu consumo imediato, uma especialização cada vez maior de uma parte da sociedade em atividades administrativas e trabalho intelectual ao invés do exercício de tarefas administrativas, por sua vez, por todos os membros da sociedade. Enquanto o produto social foi muito pequeno, esta restrição impunha um conflito permanente: o acúmulo só podia aumentar através do trabalho forçado dos produtores diretos, e a grande massa de produtores diretos tinha que permanecer separada do trabalho intelectual.
À medida que o controle dos seres humanos sobre a natureza aumentava, eles perdiam a solidariedade social e o controle sobre sua existência social. Sua existência passou a estar sujeita a leis cegas e objetivas atuando nas costas deles. Esta contradição encontra sua expressão mais alta e mais afiada no capitalismo.
Entretanto, com o tremendo desenvolvimento das forças produtivas possibilitado pelo modo de produção capitalista, o preço que os seres humanos têm que pagar pelo domínio da natureza não só se tornou muito alto e diretamente mortal, mas cada vez mais absurdo. Pela primeira vez na história, a base material realista de uma sociedade mundial sem classes de produtores associados está sendo formada. Com o trabalho assalariado, o capitalismo tem ao mesmo tempo gerado uma força social que manifesta, pelo menos periodicamente, uma tendência instintiva a lutar na prática por tal sociedade; a classe mais capaz de organização coletiva e de ação em massa do que qualquer outra na história. Da Comuna de Paris à revolução russa, da Catalunha de 1936-37 à França de maio de 1968, a história das lutas revolucionárias de classe do proletariado é uma combinação de tais tentativas, cada vez mais corajosas e amplas, apesar de todas as derrotas dramáticas e trágicas vitórias parciais.
Não duvidamos por um momento que esta história está apenas em sua infância e que seu clímax está à nossa frente, não atrás de nós. Esta não é uma crença mística, mas uma certeza baseada em uma análise científica das leis do desenvolvimento da sociedade burguesa e das lutas de classe no século XX. Precisamente, o grande mérito histórico do marxismo é que ele dá um fundamento racional e científico e uma orientação a um sonho muito antigo da humanidade, que torna possível uma união superior do pensamento crítico, das aspirações morais e humanistas com a luta e a ação emancipatória.
Em suma, eu sou marxista porque só o marxismo nos permite manter a fé na humanidade e em seu futuro sem nos iludirmos, apesar de todas as terríveis experiências do século XX, apesar de Auschwitz e Hiroshima, apesar da fome no Terceiro Mundo e da ameaça de destruição nuclear. O marxismo nos ensina a aceitar a vida e os humanos, a amá-los, sem embelezamento, sem ilusões, plenamente conscientes das infinitas dificuldades e inevitáveis contratempos nos milhões de anos de progresso de nossa espécie, de quase um símio para explorador do universo e conquistador do céu. Para esta espécie, ganhar o controle consciente de sua própria existência social tornou-se agora uma questão de vida ou morte. Ela finalmente conseguirá realizar a mais nobre aspiração de todas: a construção de um socialismo mundial humano, sem classes e sem violência.
Notas
[1] Veja as obras clássicas de Adolf Portmann (Zoologie und das neue Bild des Menschen, Rowohit Veriag, Reinbek, 1956) e Arnold Gehien (Der Mensch. Seine Natur und seine Stellung in der Welt, 7ª ed., Athenàum Veriag, Frankfurt e Bonn, 1962), e Gerhard Heberer (Der Ursprung des Menschen. Unser gegenwàrtiger Wissensstand, Gustav Fischer Veriag, Stuttgart, 1969), Trân duc Thao (Recherches sur l’origine du langage et de la conscience. Social ed., Paris, 1973) e o livro editado por V. P. Yakimov (U istokov tshelowetshestva. Osnoviye problemi antropogenesa [The Origins of Humanity: Fundamental Problems of Anthropogenesis], Isdatelstvo Moskovskogo Universiteta, Moscou, 1964).
[2] “Uma aranha realiza operações que lembram as de um tecelão, e uma abelha envergonharia mais de um mestre pedreiro com a construção das células de seu favo de mel”. Mas que vantagem distingue o pior mestre pedreiro da melhor abelha é que o primeiro modelou a célula em sua cabeça antes de construí-la em cera. Quando o processo de trabalho é concluído, surge um resultado que já existia na imaginação do trabalhador, ou seja, /idealmente/ antes do início do processo de trabalho” (Karl Marx, Capital, T 1, V. 1. Madrid: Siglo XXI, p. 216).
[3] Exemplos convincentes do uso deste método marxista podem ser encontrados, por exemplo, em obras tão notáveis da história e da crítica literárias como Die Lessing-Legende (Dietz-Verlag, Berlim, 1963) de Franz Mehring, La Théorie du roman (Gonthier, Paris, 1963) e Le Roman historique (Payot, Paris, 1965) de Georg Lukacs, e Le Dieu caché (Gallimard, Paris, 1955) de Lucien Goldmann.
[4] “Por mais importantes que estas contribuições técnicas para o progresso da teoria econômica estejam na avaliação atual das contribuições marxistas, elas são eclipsadas por sua brilhante análise das tendências de longo prazo do sistema capitalista. O resultado é verdadeiramente impressionante […]” (Wassily Leontief, “The Significance of Marxian Economies for Present-Day Economics Theory”, em David Horowitz, ed, Marx and Modem Economies, MacGibbon & Kee, London, 1968, p. 94).
[5] Este entendimento nos permitiu, já no final dos anos sessenta e início dos setenta, prever com bastante precisão a recessão geral da economia capitalista internacional em 1974-75, mesmo em termos de seu ponto de partida no tempo.
[6] As crises econômicas que afetaram os países mais importantes do mercado mundial ocorreram aproximadamente nos anos de 1825, 1836, 1847, 1857, 1857, 1866, 1873, 1882, 1891, 1900, 1907, 1919, 1921, 1929, 1937, 1949, 1953, 1957, 1960, 1970 e 1974.
[7] Isto não leva em conta a poupança dos pequenos poupadores ou fundos de pensão, uma vez que estes claramente não são ativos, mas apenas renda diferida que mais tarde será totalmente consumida. Se, além disso, a habitação ocupada pelo proprietário (que é mais um bem de consumo durável do que um ativo) for subtraída da riqueza nacional, estas porcentagens seriam ainda mais elevadas.
[8] “Na história da sociedade, os agentes são todos homens dotados de consciência, agindo por reflexão ou paixão, em busca de certos fins; aqui, nada acontece sem uma intenção consciente, sem um fim desejado. Mas esta distinção, por mais importante que seja para a pesquisa histórica, especialmente a de períodos e eventos isolados, em nada altera o fato de que o curso da história é regido por leis gerais de natureza interna. Também aqui, apesar dos objetivos conscientemente desejados pelos indivíduos, há uma aparente aleatoriedade na superfície e no conjunto; o que é desejado raramente acontece, e na maioria dos casos os muitos objetivos perseguidos se entrelaçam e se contradizem, quando os meios disponíveis para alcançá-los não são em si irrealizáveis ou inadequados. (…) os acontecimentos históricos também parecem ser governados pelo acaso. Mas onde na superfície das coisas o acaso parece reinar, ele é sempre governado por leis internas ocultas, e é uma questão de descobrir essas leis”. Karl Marx e Friedrich Engels, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã , disponível em https://www.fundacionfedericoengels.net/images/engels_feuerbach_RL_crisis_socialdemocracia.pdf
[9] V. I. Lenin, Cadernos Filosóficos. Obras, vol. 42, ed. Progress, Moscou, 1971.
[10] Veja a terceira das Teses de Marx sobre Feuerbach. Estas teses são, em certo sentido, a certidão de nascimento do marxismo.
[11] Marx/Engels, Manifesto do Partido Comunista.
[12] Sobre este problema, ver meus estudos: Teoria Leninista de Organização e sobre Burocracia.
[13] Lênin, A Doença Infantil do Comunismo.
[14] Lênin, O que fazer?
[15] Marx, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, disponível em https://archivo.juventudes.org/textos/Karl%20Marx/Critica%20de%20la%20Filosofia%20del%20Derecho%20de%20Hegel.pdf
[16] “Além destes três aspectos – subjetividade individual, intersubjetividade e relação objetiva – o foco constitutivo primário do pensamento marxista na práxis é a primazia prática de sua síntese, determinada pelo foco na riqueza objetiva, atividade autônoma pessoal e multidimensional, e reciprocidade social universal, cooperação igualitária; […]” (Helmut Dahmer e Helmut Fleischer, “Karl Marx”, em Dirk Kasler, ed, Karl Marx, Klassiker des soziologischen Denkens, vol. 1, Veriag C. H. Beck, Munique, 1976, p. 151).
[17] Leon Trotsky, 1905 – Balanço e Perspectivas, disponível em: https://www.marxists.org/espanol/trotsky/ryp/index.htm
[18] Engels: “A pior coisa que pode acontecer ao líder de um partido extremo é ser forçado a assumir o governo num momento em que o movimento não amadureceu o suficiente para que a classe que ele representa possa assumir o comando e para que as medidas necessárias sejam aplicadas à dominação desta classe”, F. Engels A Guerra dos Camponeses na Alemanha, p. 112, disponível em: https://omegalfa.es/downloadfile.php?file=libros/la-guerra-de-los-campesinos-en-alemania.pdf.
[19] A explicação desta tragédia deve incluir uma análise concreta da estratégia e das táticas do movimento operário no século XX. Entre as contribuições mais importantes sobre este assunto estão “Reforma ou Revolução?” de Rosa Luxemburgo e seus escritos sobre o debate da greve de massa, “A doença Infantil do Comunismo”, de Lenin, e os escritos de Trotsky sobre a Alemanha, França e Espanha.
[20] “Numa sociedade coletivista, baseada na propriedade comum dos meios de produção, os produtores não trocam seus produtos; o trabalho investido nos produtos também não aparece aqui, pois o valor desses produtos como qualidade material, possuído por eles, pois aqui, ao contrário do que acontece na sociedade capitalista, o trabalho individual já não é parte integrante do trabalho comum por meio de um rodeio, mas diretamente. A expressão “fruto do trabalho”, já hoje censurável por sua ambiguidade, perde assim todo o sentido. O que está em questão aqui não é uma sociedade comunista que se desenvolveu a partir de suas próprias bases, mas uma sociedade que acaba de sair da sociedade capitalista e que, portanto, ainda carrega em todos os seus aspectos, econômica, moral e intelectualmente, o selo da velha sociedade de onde veio” (Marx/Engels, Crítica do Programa de Gotha, disponível em marxists.org; ver também F. Engels, Anti-Durhing, “A produção social imediata, assim como a produção social imediata da sociedade capitalista, são o fruto do trabalho, que é o fruto do trabalho”.
“A produção social imediata, assim como a distribuição direta, exclui toda troca de mercadorias e, portanto, também a transformação de produtos em mercadorias (pelo menos dentro da comuna) e, consequentemente, sua transformação em valores. Assim que a sociedade toma posse dos meios de produção e os emprega para uma produção imediatamente socializada, o trabalho de cada indivíduo, por diferente que seja seu caráter específico de utilidade, torna-se imediata e diretamente trabalho social. […] Não pode, portanto, ocorrer à [sociedade] continuar a expressar o quanta de trabalho que se deposita nos produtos e que conhece direta e absolutamente, num padrão que é apenas relativo, flutuante, inadequado e antes inevitável como expediente, num terceiro produto, ao invés de em seu padrão natural, adequado e absoluto, o tempo. […] Assim, sob as condições assumidas acima, a sociedade também não atribui valores aos produtos”, Anti-Dühring.
[21] Análises aprofundadas da sociedade burocratizada na transição do capitalismo para o socialismo podem ser encontradas em Leon Trotsky, The Revolution Trarayed; Isaac Deutscher, The Unfinished Revolution; Jurgen Arz e Otmar Sauer, Zur Entwicklung der sowjetischen Ubergangsgeselischaft 1917-29; Jakob Moneta, Aufstieg und Niedergang des Stalinismus.
[22] Karl Marx havia antecipado, já em 1852, esta tendência da revolução proletária para uma autocrítica implacável, em seu prefácio ao 18 Brumário de Luís Bonaparte.
[23] No final da 20ª Dinastia, sob o faraó Ramsés III, ou seja, há cerca de 3.500 anos, os trabalhadores da necrópole real organizaram a primeira greve – ou a primeira revolta operária – conhecida na história. Um papiro da época, preservado em Turim, dá um relato detalhado disso (ver François Daumas, La Civilisation de l’Egypte pharaonique, Arthaud, Paris, 1965).
[24] “E a ética, como experiência, não deve permanecer sem limites, nem ser um requisito puramente formal para o comportamento do indivíduo, mas deve tirar sua luz da luta de classes daqueles que estão dobrados sob dores e cargas, daqueles que estão rebaixados e humilhados. Somente desta forma os postulados éticos duradouros se tornarão inextinguíveis e indestrutíveis, apesar de sua transgressão na realidade. Isto significa que a verdadeira face da humanidade, por mais vagos que sejam seus contornos, e apesar da banalidade e verbosidade de suas determinações excessivamente generalizadas […] se encontra pelo menos em sua autoconsciência”. (Ernst Bloch, Experimentum Mundi. Frage, Kategorien des Herausbringens, Praxis, Suhrkamp Veriag, Frankfurt).
(Tradução: Bruno Magalhães)