Conversando com Eduardo Lucita
Entrevista com o economista argentino Eduardo Lucita, militante da IV Internacional durante décadas e membro do coletivo EDI (Economista de Esquerda).
Tradução: Julio Pontes
Israel Dutra: Estimado Eduardo, conte-nos um pouco: como começou sua militância?
Eduardo Lucita: Bom, há dois momentos que decidiram minha participação política e minha aproximação ao marxismo. Ao final dos anos 50 do século passado, creio em 1958, eu tinha 17 anos e estava terminando a educação básica em uma escola noturna quando se desenvolve uma grande luta devido à intenção do governo da época de autorizar universidades privadas a também conceder diplomas, uma aspiração há muito desejada pela Igreja Católica, razão pela qual é conhecida como a luta por uma educação laica ou livre. Esta luta estava protagonizada por estudantes e professores universitários, mas pouco a pouco foi ganhando adesão e protagonismo dos estudantes secundaristas. Uma dessas noites estava na esquina do colégio observando uma assembleia e um ataque policial levou vários presos, entre eles eu sem que tivesse participação alguma, o confinamento durou poucas horas mas a partir desse momento comecei a me interessar pelas discussões políticas no colégio.
O outro momento decisivo para minha evolução política foi em meados de 64 quando a CGT lança um Plano de Luta que incluía a greve geral e a tomada de fábricas. O boletim da CGT desse momento calcula em mais de 3 milhões de trabalhadores que participaram das ocupações de uns 11 mil estabelecimentos em todo país. A umas 20 quadras da minha, eu vivia na Província de Buenos Aires a 40km da capital, havia uma grande fábrica e se comentava no bairro o que estava acontecendo e me aproximei por curiosidade. Aí vi ao vivo e diretamente a potência e a organização da classe trabalhadora desde então. Eu tinha a formação política necessária para compreender o significado de uma luta de conjunto que desdobra os objetivos imediatos, mas essas imagens ficaram gravadas para sempre. Não poucas vezes em minha já extensa vida política militante me acusaram de obreirista e creio que tem a ver com a impressão que causou ter observado aquela experiência formidável da classe. Pouco tempos depois comecei a trabalhar na empresa Ferrocarriles Argentinos, uma empresa com 100 mil trabalhadores em todos o país e em pouco tempo passei a formar parte de um agrupamento anti-burocrático e logo depois na CGT dos Argentinos, uma ruptura combativa da CGT oficial que estava dominada por tendências colaboracionistas e participacionistas com a ditadura militar de então. Em síntese, eu não tive uma militância estudantil, passei diretamente ao sindical e político. Saltei essa etapa.
Uma breve explicação necessária. O início desta entrevista me apresenta como um dos “grandes economistas argentinos”. Na verdade é um exagero produto da tua generosidade, mas o que não sabes é que não sou um economista diplomado, nunca estudei formalmente economia e não sou graduado universitário nesse campo. A verdade é que me pus a ler estudar economia por necessidades da militância e é certo que tenho aprendido muito também com os economistas de verdade com os quais compartilho o EDI.
Qual foi o impacto das lutas como o Maio de 68 e do Cordobazo (1968) na sua geração militante?
Bom, no marco dos ares dos tempos daquele momento de luta contra a ditadura militar, com o surgimento do movimento operário combativo e forte mobilização estudantil, o Maio Francês (é preciso agregar o Outono Quente italiano, a Primavera de Praga, os movimento estudantis no Japão e México, em Berkeley e Columbia nos EUA, e o nosso Cordobazo, caíram como um raio de um céu nada sereno. Desde sempre nosso país teve uma classe média esclarecida, muito culta e politizada, portanto as consignas do Maio de 68, como “seja realista, exija o impossível” tiveram uma grande recepção aqui e estimularam a politização e o debate dentro dos partidos daquele momento, como antes havia provocado a Revolução Cubana. O Cordobazo foi produto de uma aliança entre trabalhadores e estudantes que se prolongaria no tempo, “trabalhadores e estudantes, unidos e em frente” era o que se entoava em todas as manifestações. Para nós, o Cordobazo abriu um ciclo histórico, o mais alto da lutas de classes no país, que teve seu momento culminante em 1975 com a primeira greve geral perante um governo peronista e a aparição das Coordinadoras de Gremios en Lucha, organismos democráticos de debate e deliberação que em seu desenvolvimento poderiam chegar a configurar organismos embrionários de duplo poder e funcionavam em estreita relação com as organizações revolucionárias de então. Esse processo se encerrou com o golpe de Estado militar empresarial eclesiástico de 1976. O tripé Revolução Cubana, Maio Francês e Cordobazo foram determinantes para várias gerações de militantes.
Como se organizava o trotskismo dos anos 60 e 70? Como foram as controvérsias dentro do PRT e depois PRT-ERP?
Obviamente pelo que comentei do meu início na política e marxismo, não tenho muitas lembranças pessoais do trotskismo nos anos 60, mas pelo que li e conversei com os atores daquele tempo, era uma paleta de vários grupos pequenos que reproduzia os debates do trotskismo a nível internacional. Como escrevia Daniel Bensaid, Trotsky deixou um legado sem manual de instruções. As discussões sobre o estalinismo, sobre o caráter da URSS, sobre o movimento neocolonial… cruzaram todo o movimento em debate onde a paixão muitas vezes primava sobre a razão. Isso se expressou também entre nós em termos locais. Mas a Revolução Cubana complementada por um processo de mudanças e transformações radicais na cultura, nas artes, nas letras e também na vida cotidiana dos anos 60 foram criando um ambiente para que surgissem alas críticas que se diferenciavam do reformismo dos partidos tradicionais (PC e PS) e que deram lugar ao desenvolvimento de outras expressões da esquerda: o trotskismo, o maoísmo e o castro-guevarismo.
Nesse contexto é que, em 1965, nasce o PRT (Partido Revolucionário dos Trabalhadores) produto da fusão entre a tendência morenista Palavra Obrera e a Frente Indoamericano, cuja principal referência era Mario Santucho. Em toda a esquerda latinoamericana dessa época a discussão girava em torno da violência revolucionária e da luta armada, isso se expressou com força no interior do PRT até que se produziu uma cisão entre o PRT El Combatiente, (franção Santucho) e o PRT La Verdad (fração Moreno), e finalmente em 1970 se cria o ERP (Exército Revolucionário do Povo), braço armado do PRT, e a ruptura fica cristalizada. Nós nos incorporamos ao PRT-ERP nesse tempo e continuamos até a queda da ditadura. Nesta época se abriu o processo eleitoral e por uns momentos se sustentou a possibilidade de uma candidatura presidencial operária encabeçada por duas das principais figuras sindicais da esquerda. Esse processo não pôde ser levado adiante e o partido decide pelo voto em branco ao mesmo tempo que se evidenciava uma tendência ao militarismo que logo se confirmaria, razão pela qual nós decidimos sair e pouco depois nos incorporamos ao GOR (Grupo Operário Revolucionário) uma cisão precoce do PRT encabeçada pelo hoje lendário Daniel Pereyra, que recentemente morreu em Madrid aos 93 anos e que foi militante dos Anticapitalistas (seção espanhola da IV) até seus últimos dias.
Na CGT dos Argentinos conheci um velho militante trotskista que me fez ter contato com os trabalhos e posições políticas desse movimento e já no PRT o primeiro passo foi integrar uma equipe dirigida por Raymond Molinier, um dos primeiros secretários de Trotsky. A partir daí aderi aos postulados do trotskismo e me incorporei à IV-SU.
Conte-nos um pouco sobre o processo de reorganização do movimento operário e das forças da esquerda radical após a queda da ditadura militar, nos anos 80?
A crise mundial do capital que se desenvolveu a partir dos anos 70 pôs um fim aos 30 anos dourados do capitalismo, 1945-1975, o que Mandel definiu “como um processo único e irrepetível”, a resposta do capital a esta crise foi a reestruturação dos seus espaços industriais e produtivos precedida de uma forte ofensiva sobre o trabalho. Ofensiva que foi generalizada porque visava o conjunto das conquistas trabalhistas que haviam sido atingidas em várias gerações e sustentadas porque foram duráveis ao longo do tempo. Essa reestruturação do capital redundou em uma desestruturação dos trabalhadores com forte presença dos trabalhadores precarizados e desempregados. Argentina não escapou desta tendência, foi um processo muito lento com idas e vindas e ainda inacabado. É necessário ter em conta que nestes 40 anos posteriores à ditadura houveram dois governos – Menem e Macri – que foram uma certa continuidade da ditadura nos planos econômicos, com as privatizações, o endividamento externo, o protagonismo financeiro, etc. enquanto que os governos intermediários (Alfonsín e Kirchner) com orientações muito diferentes aos anteriores não conseguiram reverter as privatizações, nem reduzir substancialmente a pobreza e as desigualdades sociais. No entanto é preciso dizer que o sindicalismo argentino segue mantendo um dos índices de filiação mais altos do mundo.
A reorganização das forças da esquerda radical, muito débeis naquele momento, seguiu o passo não-linear dessa reorganização do movimento operário ao que logicamente é necessário agregar a oscilante situação mundial depois da implosão da URSS e da queda do Muro de Berlin, e as fortes disputas entre elas, onde prima o que chamamos de “patriotismo de partido” sobre as necessidades gerais da classe. A crise de 2001 foi um verdadeiro divisor de águas e deixou exposta uma séria crise de representação dos partidos tradicionais , vendo emergir um forte movimento dos trabalhadores desempregados, os “piqueteiros”, que ocuparam o centro da cena política. No entanto, 20 anos depois, as grandes organizações desse movimento foram cooptavas pelo governo atual ou bem se incorporaram ao regime de dominação, a esquerda anticapitalista, pelo contrário, conseguiu aproveitar certas brechas da legislação eleitoral e armar uma frente, a FIT-U (Frente da Esquerda e dos Trabalhadores – Unidade) que a permitiu obter uma representação parlamentar e institucional como nunca antes e ser reconhecida como parte do cenário politico nacional. Claro que é uma frente puramente eleitoral, não não chega a ser política. O que é um grande déficit porque por fora da FIT-U existe um variado conjunto de organizações e movimentos anticapitalistas que deveriam ser considerados para ampliar a frente, inclusive para oferecer uma política aos setores não anticapitalistas, mas que estão em crise com a orientação atual do país.
Como analisar o surgimento do “movimento de piquetes” nos anos de Menem?
Tudo foi produto das privatizações, especialmente da YPF, a petroleira estatal, que deixou um rastro de trabalhadores sem trabalho e sem perspectivas em todo país. Essa foi a origem, mas depois o aprofundamento da crise alentou esse setor expulso da produção e do consumo. A crise de 2001 foi muito profunda e prolongada ao longo do tempo e deu lugar a ampliação do movimento piqueteiro, as assembleias de bairro e a ocupação de empresas sob gestão direta dos trabalhadores.
O movimento piqueteiro reivindica sistematicamente por trabalho, enquanto que diferentes correntes agitam em seu interior o trabalho auto-gestionado e as cooperativas de produção e serviços sociais. A esquerda tem uma forte implantação nesse movimento, e muitas vezes convoca mobilizações de massas.
O Argentinazo foi uma rebelião de massas no inicio do século XXI que rompeu a coluna vertebral do projeto neoliberal. Qual sua opinião sobre este evento?
Efetivamente a crise de 2011, conhecida como El Argentinazo, pela sua extensão e profundidade, inéditas no país, quebrou a tendência neoliberal e a fez retroceder, mas não a erradicou totalmente. As massas mobilizadas rechaçaram tudo que existia, impugnaram o que não lhes agradava e causava cansaço e saturação, sabiam o que não queriam mas não conseguiram formular algo novo. A consigna “que venha o que nunca houve” mostrava como “nunca houve” nunca foi definido. Como sabemos, a política não suporte o vazio e o regime terminou por ordenar a situação e garantir a governabilidade. Situação que segue até o presente.
O que se pode aprender dos chamados “Ciclos Progressistas”, seus limites e avanços, na Argentina e América Latina?
A América Latina tem sido a região onde maiores resistência se opuseram ao neoliberalismo e onde surgiram alternativas políticas e sociais que em vários países deram origem aos governos progressistas. Claro está que esta dominação é genérica porque há diferenças entre esses governos. De uma maneira ou de outra todos se inscreveram no neodesenvolvimentismo, mas alguns com um carimbo muito mais social-liberal (Brasil e Uruguai) e outros com uma maior presença estatal (Venezuela, Equador e Argentina), enquanto ainda outros para conseguir suas reformas avançaram em rupturas parciais com o imperialismo e com um discurso e certas práticas orientadas ao anticapitalismo (Bolívia e Venezuela).
Na chamada década longa a maioria desses governos se beneficiaram amplamente dos novos termos de troca, favoráveis aos países produtores de matérias primas. Contaram portanto com recursos para expandir a ação do Estado e fazer políticas sociais ativas com avanços importantes no social e no manejo das principais variáveis econômicas, assim como buscaram posicionamentos autônomos no plano internacional (UNASUR, CELAC). Conseguiram reduzir os índices de pobreza embora a região siga sendo a mais desigual do planeta. Em geral o ascenso das condições mais elementares de vida não foi acompanhado por um rápido acesso aos serviços essenciais – saúde, educação, comunicação, moradia – o que gerou tensões de novo tipo.
De conjunto se pode dizer que modificaram a relação de forças sociais mas não conseguiram modificar o padrão de acumulação e a inserção subordinada ao mercado mundial, nem distribuir a riqueza. Assim em vários países o extrativismo e a primarização cresceram, enquanto diminuía a manufatura. O aprendizado geral deste ciclo progressista é que chega um ponto em que se devem acelerar as transformações para avançar ou se começa a retroceder. Na atualidade da revanche neoliberal novos governo de corte progressista ganham as eleições, há que ver seu desenvolvimento, embora como disse García Linera se trata de progressismos de baixa intensidade…
Qual é a sua opinião sobre a situação política atual na Argentina? Que saídas existem à esquerda?
A Argentina atravessa uma situação econômica muito comprometida, com uma inflação que está em 100%, uma dívida interna em pesos que é várias vezes bilionária e uma dívida externa que condiciona, através do acordo firmado com o FMI, toda política econômica. A contrapartida é uma situação social totalmente frágil. Uma pobreza que está em 42% e alcança 19 milhões de pessoas, com a renda popular muito baixa.
O futuro imediato sinalizaria para a estagnação econômica com alta inflação. Porém não sabemos quanto e como a crise financeira global pode afetar nossa economia que está agora em pleno desenvolvimento, mas é inquestionável que as condições sociais vão se agravar.
Na minha opinião, a esquerda tem que propor um programa de emergência que abra as possibilidades de transformações em uma perspectiva anticapitalista. Começando por suspender o pagamento da dívida, investigá-la e anular o acordo com o FMI. Romper com a inercia inflacionária com um programa de preços máximos por 6 meses e equipes de análises da estrutura dos custos dos formadores de preços, particularmente de alimentos e produtos de necessidades básicas, acompanhado de um aumento geral de salário e rendas populares. Complementado por uma maior intervenção do Estado no controle dos movimentos de capitais, do comércio exterior e da bolsa. E estar politicamente decidido a aplicar a Lei de Abastecimento, que permite sancionar os não cumpridores com multas, fechamento de empresas e até prisão. Seria um programa de reformas não reformistas, que para se sustentar no tempo necessitariam de novas reformas.
Buenos Aires, 11.04.2023