Turquia: uma eleição definidora
As eleições turcas deste domingo podem derrotar a direita nacionalista e mudar o cenário no país
Foto: Yoav Lerman
No domingo, dia 14 de maio, os turcos vão às urnas, escolher presidente e membros do legislativo. O primeiro turno eleitoral escolhe, além do presidente, os 600 assentos do parlamento turco. O país, com mais de 85 milhões de habitantes, sendo cerca de 50 milhões de eleitores, vive há 20 anos sob a chefia inconteste do conservador Recep Tayyp Erdogan.
A eleição acontece num momento de incertezas. Marcado por conflitos e atentados, o processo eleitoral despertou a atenção do mundo, preocupados com abusos e fraudes, num regime bastante autoritário, que joga toda força para se proteger.
Podemos afirmar que a eleição é a mais importante da história recente da Turquia; não seria exagero dizer também que é uma das primeiras eleições dessa etapa que se abre, no âmbito internacional de uma luta mais aberta contra a extrema-direita e seus métodos.
A boa notícia, é que segundo as pequisas, há chances da vitória da oposição, o que mudaria em qualidade a situação da Turquia, abrindo um novo cenário democrático, onde a esquerda e o movimento de massas teriam melhores condições para intervir, em comparação com o regime de Erdogan, que tem se assemelhado cada vez mais à uma ditadura.
As contradições imediatas da disputa eleitoral
Erdogan e seu partido, o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) chegam ao poder no bojo da crise do começo dos anos 2000. A Turquia vivia uma crise econômica, e fatores como o descontentamento geral e mesmo um terremoto- de alcance menor do que o ocorrido há alguns meses- na região de Izmit- levaram a fissuras no governo de então, abrindo caminho para o “carismático” Erdogan.
A “era Erdogan” foi marcada por uma crescente escalada de autoritarismo, combinando a repressão à nacionalidade curda no país, com uma visão anti-direitos e perseguição a setores da oposição. Após a rebelião da praça Taksin em 2013, Erdogan fechou o regime, evitando que a juventude pudesse questionar sua política anti-democrática, reforçando o orçamento militar, com uma maior narrativa fundamentalista islâmica. Para impor sua leitura religiosa, criminalizando o teólogo e líder islâmico, Fethullah Gülen, com o argumento de que estaria por trás de uma tentativa de golpe em 2016.
Alçado à galeria de líderes da extrema direita mundial, ao lado de Trump, Orban, Meloni, Modi e Bolsonaro, Erdogan encarna o projeto autoritário e faz disso o centro do seus embates políticos. A disputa engendra algumas das mais importantes contradições do tempo presente, a saber:
- A disputa entre um projeto laico e um projeto autoritário e fundamentalista – a questão entre a referência tradicional e a modernidade; isso se expressa, para além dos direitos civis individuais, na disputa sobre o conhecimento laico, dentro das universidades, o ataque aos direitos das mulheres, com sua política patriarcal e islâmica; reforçou nas últimas semanas, seu já conhecido desprezo pela comunidade LGBTQI, acusando a oposição de ser “LGBtista”, algo inaceitável para a “grande nação turca”.
- A disputa entre frações da burguesia- o candidato da oposição, Kemal Kilicdaroglu, do CHP, partido do nacionalismo burguês, herdeiros de Ataturk, expressa um setor opositor que une uma ampla franja de interesses, setores políticos e classes. Todo um setor da burguesia aposta num modelo de desenvolvimento diferente do exposto por Erdogan e soma na candidatura de Kilicdaroglu.
- As contradições implicadas na questão geopolítica- Erdogan é um ator central na geopolítica, pela localização estratégica da Turquia, influenciando diretamente na Europa, Oriente e Ásia, tendo lugar especial na disputa sobre o Caucaso e o Mar Negro. Apesar de alguns litígios com Putin- a exemplo do conflito entre Armênia e Azerbaijão- Erdogan se perfila com independência dos Estados Unidos, com relações com Irã; ainda assim, condicinou a entrada da Suécia na OTAN à entrega de ativistas curdos exilados; O Kremlin, por sua vez, estaria organizando uma rede via deepweb para espalhar fakenews sobre o Kilicdaroglu, fazendo ilações sobre terrorismo e relação com o PKK(Partido dos Trabalhadores do Curdistão); Kilicdaroglu manteve importantes reuniões com o embaixador dos Estados Unidos na Turquia, Jeff Flake, compromentendo-se com “ mudanças democráticas” na política exterior.
O significado estratégico da derrota de Erdogan
A grande novidade do processo eleitoral, como já dito, é a chance de Erdogan perder. Isso pode ocorrer, já na noite de domingo, caso Kilicdrogu faça mais de 50% dos votos válidos. Caso contrário, a eleição será decidida num segundo turno, em 28 de maio. Não se pode descartar hipótese de uma recuperação eleitoral de Erdogan, em função do medo incutido e das fraudes. Com a saída repentina do candidato que estava em quarto lugar nas pesquisas, Muharrem Ince, que desistiu após ter visto vazar um vídeo seu com conteúdos pornográficos, a disputa fica mais próxima de ser decidida na primeira volta.
Como escreveu o economista marxista Michael Roberts, em sua mais recente coluna:
“A Turquia é a 19ª maior economia do mundo e membro do G20. Durante a primeira década da presidência de Erdogan, a economia da Turquia teve um certo grau de expansão, embora muito baseada em uma miríade de projetos de infraestrutura e financiada por empréstimos estrangeiros. Mas quando as pessoas protestaram contra muitos desenvolvimentos imprudentes, em particular, nos meses de protestos do parque Gezi em 2013 sobre um desenvolvimento urbano planejado no centro de Istambul, Erdoğan respondeu com uma repressão violenta.”
A mudança de qualidade veio após o terremoto, que deixou mais 50 mil mortos, em fevereiro desse ano, abrindo uma fissura diante da postura negligente que o governo assumiu. O outro aspecto é a inflação´galopante, ilustrada no fato de que a cebola – por conta de aumentar seu preço em mais de 5 vezes nos ultimos meses- virou o símbolo da campanha eleitoral. Pesquisas do instituto Gallup indicam que 73% dos turcos acham que a economia do país está piorando e 65% acha que o próprio padrão de vida está decrescendo.
A outra questão envolvida é a questão curda. Com cerca de 18% da população declarada da turquia, os curdos são o principal alvo e a principal resistência organizada ao projeto de Erdogan.
O atual regime proibiu o partido legal, multiétnico, que organizava a defesa da causa curda, o HDP, prendendo suas principais lideranças e cassando centenas de prefeitos e vereadores do partido.
Uma eventual derrota de Erdogan vai abrir caminho para a reorganização legal do movimento democrático curdo. Por conta das restrições, os curdos estão aliados à outros setores de esquerda na legenda Esquerda Verde e Liberdade(Ysael). A coalizão concorre ao parlamento, apesar das perseguições e não lançou candidatura presidencial para evitar a dispersão, numa espécie de voto crítico implícito à Kilicdaroglu.
A derrota de Erdogan será um vitória de todos os povos do mundo, um avanço para a luta dos curdos, da classe trabalhadora e de todo povo. Uma luta que terá ecos na Siria, no Irã, no Iraque, na Grécia, onde a direita também pode perder a próxima eleição, prevista para o final do mês.
A vitória de Kilicdaroglu será uma alívio enorme. Contudo, seu plano ecônomico e arco de alianças visa manter o neoliberalismo e o capitalismo predatório na Turquia.
A esperança verdadeira está na heróica resistência curda e na tradição de lutas da esquerda turca. É uma batalha de longa prazo e internacional contra a extrema-direita.