Pós-verdade, transparência e personalização na Internet

Que efeito podem ter sobre a “cultura da pós-verdade” as tecnologias do mundo digital e, em particular, as redes sociais?

José María Agüera Lorente 3 out 2017, 11:57

“A tecnologia continua a progredir em direção a um poder cada vez maior, seja para o bem ou para a destruição. Qual a fonte de todos esses problemas? A fonte é basicamente o pensamento.”
— David Bohm, Sobre o diálogo

“O que nos causa problemas não é o que não sabemos, mas o que temos certeza que sabemos e que, no final, não é verdade.”
— Mark Twain, citação tirada do filme A grande aposta

A pós-verdade é a versão renovada e adaptada do debilitamento pós-moderno da noção de verdade pelo qual, em definitivo — admita-se ou não –, se abraça o relativismo mais absoluto — vale o paradoxo — e de fato se renuncia ao conhecimento (leia-se meu artigo Post-verdad: nada nuevo bajo el sol). Isso quer dizer que nosso sistema de crenças — construção cognitiva pessoal a partir da qual, em grande medida, julgamos o que admitimos como verdadeiro e o que não — torna-se um forte inexpungável para todas as evidências contrárias ao mesmo. Que efeito podem ter sobre a “cultura da pós-verdade” as novas tecnologias do mundo digital e, particularmente, as redes sociais que floresceram em torno à Internet é o que pretendo apresentar aqui, aproveitando especialmente o livro do ativista e crítico das novas tecnologias, o norte-americano Eli Pariser, intitulado The Filter Bubble [O Filtro Bolha], publicado em castelhano em abril deste ano (por certo, não é a primeira vez que aludo às teses desse autor; a elas faço referência sucinta no meu artigo intitulado El secuestro de la mente y la paradoja de internet).

A pós-verdade implica necessariamente na construção de uma versão dos fatos ajustada a uma lógica discursiva monoliticamente congruente e invulnerável ao efeito corretivo daquele que possa colocar em questão o sistema de crenças que confere solidez à mente do indivíduo que a sustenta. Requer, por assim dizer, o isolamento cognitivo da pessoa, seu refúgio numa bolha que lhe proteja de entrar em contato com tudo o que ele não tem por verdadeiro, o que é facilitado ao criar-se um ambiente no qual os fatos são subestimados frente às emoções e crenças pessoais. Essa condição é a que o filósofo José Antonio Marina denominou “fracasso cognitivo” em seu livro intitulado precisamente La inteligencia fracasada [A inteligência fracassada]. Nele, reconhece quatro classes de fracassos dentro do comportamento não patológico do sujeito; a saber: preconceito, superstição, dogmatismo e o que considera o mais perigoso de todos, a condensação dos anteriores que não é outra coisa senão fanatismo. Todas elas são fracassos da inteligência porque bloqueiam o que seguramente é sua função vital, que é conhecer a realidade. Esse é um dos objetivos primordiais do uso racional da inteligência, que se torna impossível de alcançar quando a inteligência se encerra no seu mundo privado, para todos os efeitos um modo de funcionamento autônomo e completamente blindado frente às evidências contra as crenças que o conformam. Esses mundos — nada sutis, nem leves nem gentis, como diria o poeta — constituem a semente ideal para que germinem o preconceito, a superstição, o dogmatismo e o fanatismo. Todo recurso de comunicação humana que feche as janelas que permitem o intercâmbio entre as mentes e entre elas e a realidade, com tudo o que essa tem de contraditório com as nossas crenças, é um risco para o conjunto da humanidade. Ninguém como o matemático e filósofo de meados do século XIX William Kingdon Clifford para expressar o que queremos dizer. Ele escreveu em seu ensaio intitulado The ethics of belief [A ética da crença] o seguinte: “Se um homem, com uma crença que lhe ensinaram na infância ou que adquiriu mais tarde, é fiel a ela e afasta quaisquer dúvidas que possam surgir sobre ela na sua mente, evita propositalmente a leitura de livros e a companhia de pessoas que a questionem ou discutam, e considera ímpias as questões que não podem ser feitas sem perturbá-la; então a vida desse homem é um pecado contínuo contra a humanidade”. Amém.

Eis aqui uma questão em que a fé no progresso é testada e o que se pergunta Eli Pariser é se a web tem sido um avanço no caminho ético apontado por Clifford ou, pelo contrário, caminha, sobretudo no âmbito das redes sociais, para a implantação de procedimentos algorítmicos que, sem que nos demos conta, nos conduzem a nos encarcerarmos nesses mundos privados nos quais nossas crenças se retroalimentam num loop ensimesmado de informação filtrada segundo o perfil de preferências confeccionado com o rastreamento permanente de nossos interesses inferidos a partir do nosso contínuo vagar na Internet. Sem nosso controle, a rede é feita com a imagem da personalidade de cada um de nós, que é opaca e determina o que chega a nosso conhecimento e o que não. Como disse contundentemente o ativista norteamericano: “Por definição, um mundo construído sobre a base do que nos resulta familiar é um mundo no qual não há nada a aprender. Se a personalização é muito específica, pode impedir que entremos em contato com experiências alucinantes e aniquiladoras de preconceitos, assim como com ideias que mudem nossa forma de pensar sobre o mundo e sobre nós mesmos.”

Como diz Pariser, o mundo digital está mudando radicalmente. Deixou de ser um meio anônimo no qual cada um podia ser quem quisesse para se converter em uma ferramenta para coletar e analisar nossos dados pessoais (não é outra coisa que os cookies representam). Para expressar na forma de slogan: o meio que permitiria o renascimento da utopia se transformou numa fonte de temores distópicos. Estes se condensam em dois: a pressão do aspecto econômico da personalização até um conceito estático de pessoa e a concentração prática do controle sobre o que vemos e que oportunidades temos nas mãos de poucos. Nossa dimensão de consumidores pode acabar fagocitando a de cidadãos. Isso é enormemente prejudicial para a saúde das democracias atuais nas quais a questão da identidade é um problema sério e a guerra ideológica global é um fato.

O filtro bolha (filter bubble em inglês) desfigura a ágora que deve ter seu lugar no mundo pessoal de cada cidadão das democracias contemporâneas. Esse é o lugar no qual, aplicando o critério da intersubjetividade, estamos em condições de acessar a realidade. A nova geração de filtros de informação da Internet, no entanto, observa os gostos das pessoas e as pessoas parecidas a cada um, e a partir dessa observação extrapola. Nas palavras de Pariser: “São máquinas de previsão cujo objetivo é criar e aperfeiçoar constantemente uma teoria sobre quem é você, o que você fará e o que vai querer depois.” Isso implica num determinismo informativo que significa uma redução de nossa liberdade ao fechar opções e, portanto, nossa capacidade de escolher como queremos viver. A personalização algorítmica que, na essência, é o filtro bolha, é a interface que se coloca entre cada um de nós e a realidade, pela que seu poder de viés sobre esta é considerável. E esse viés vai na linha de reforçar nossos gostos, nossas crenças e aquilo que agrada e reforça nossa visão egocêntrica das coisas excluindo tudo o que potencialmente poderia servir para nos contrastar e desmentir, mesmo que isso nos desagradasse. Mas o que é mais grave: pode levar-nos a incorrer na ilusão de que tudo o que a tela nos mostra é tudo o que há, roubando-nos um aspecto primordial da realidade quando se busca conhecê-la, a saber, o que não sabemos. Como aqueles prisioneiros da caverna platônica, crentes de que a realidade se reduzia às sombras que se projetavam em sua parede, o homo internauta seria também ignorante sobre sua ignorância. Esse é, em suma, o cenário perfeito para que se instale o reino da pós-verdade, pois — como sustenta o filósofo Byung-Chul Han em La sociedad de la transparencia [A sociedade da transparência] (das mesmas datas do texto de Parisier): “Transparência e verdade não são a mesma coisa. Essa última é uma negatividade enquanto se põe e impõe declarando as outras coisas como falsas. Mais informação ou uma acumulação de informação por si só não é nenhuma verdade”.

Se deixamos para trás a verdade — a embaixadora intersubjetiva da realidade — e socialmente abraçamos a pós-verdade retornaremos à etapa infantil na qual a criança vive no seu mundo de fantasia de costas para a realidade. Jean Piaget, nas suas pesquisas sobre o desenvolvimento da inteligência, constatou que o que faz com que a criança abandone seus confortáveis redutos íntimos e substitua a evidência privada pela intersubjetiva é a necessidade de se relacionar com os outros. O filtro bolha proporciona um ambiente de máximo conforto porque reduz o contato com os outros, os que não pensam como nós; ou limita as opções de nos expormos ao que nos contradiz e/ou contraria, nos colocando assim muito perto do solipsismo. Quem vai querer sair para a praça, se expôr à intempérie e aos pedidos de explicações dos vizinhos quando se está tão à vontade na sua própria casa onde não lhe falta nada?

O trabalho da verdade — que custa trabalho! — é uma tarefa coletiva, apresentada permanentemente no contraste com a realidade e no diálogo com os outros que não pensam como si. Assim foi construída a civilização na qual vivemos, baseada não em realizações materiais, mas no conhecimento. Se agora tudo acaba se reduzindo a expressar a si mesmo é provável que esqueçamos toda a infraestrutura pública que apoia essa classe de expressão; e que percamos de vista nossos problemas comuns, embora elas não desapareçam por conta disso. Recorro de novo a Byung-Chul Han, que vê isso muito claramente: “A mídia social e os motores de busca personalizados erguem na rede um espaço próximo absoluto no qual o que está fora é eliminado. Ali nós encontramos apenas a nós mesmos e a nossos semelhantes”. A consequência é a “privatização do mundo” pela desintegração da esfera pública ao se mostrar apenas o indivíduo — e no melhor dos casos — a seção que ele gosta do que compõe a realidade.

O livro de Eli Pariser nos lembra que uma cidadania vigorosa exige o contato permanente com (toda) a realidade para o qual é imperativo evitar que se confine num “loop infinito de auto-adulação” sobre os interesses particulares de cada um. A tecnologia da informação e comunicação — como toda prótese eficiente criada para potencializar nossas capacidades naturais — deveria servir para melhorar nossa capacidade de pensar, não para atrofiá-la formando “câmaras de eco” (echo chambers) — expressão do matemático Andrew Odlyzco –, nas quais cada grupo reforça suas visões enviesadas particulares, escolhendo o que aceita como verdade, amplificando os preconceitos de cada um e blindando cada um diante das perguntas incômodas. Isso dissolve a consciência pública e crítica ao impossibilitar o diálogo na democracia, meio essencial pelo qual um público disperso, móvel e diverso — especialmente nas nossas sociedades multiculturais atuais — pode ir mais além de seus interesses pessoais para se reconhecer numa comunidade; e impossibilita a fertilização do húmus social trocando-a pela germinação de facções e pela semeação de fanatismos. Ademais, deixa o caminho livre para que os que ostentam o poder o façam livres do controle necessário. Como disse mais uma vez Byung-Chul Han no texto mencionado: “A perda da esfera pública deixa um vazio no qual se derramam intimidades e coisas privadas. No lugar do público se introduz a publicação da pessoa. A esfera pública se converte com isso num lugar de exposição. Se move cada vez mais longe do espaço da ação comum”. A suplantação da verdade pela transparência, latente no discurso da pós-verdade, é um refúgio infantil, como acima aludimos, no qual um evita a responsabilidade de dar explicações publicamente sobre o que sustenta e de assumir o que disso se deriva. É complementar da asserção pseudodemocrática segundo a qual todas as opiniões devem ser respeitadas (ou “cada um tem direito a pensar o que quer”) e que na prática torna estéril o imprescindível e precioso diálogo.

(Artigo publicado originalmente no Rebelión e traduzido por Tiago Madeira)


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