As noites francesas ecoam pelo planeta
Morte de adolescente pela polícia faz explodir confrontos em Paris. Protestos recebem apoio social
Foto: Zakaria Abdelkafi/Getty Images
Interrompi temporariamente o artigo que estava escrevendo acerca dos balanços sobre 10 anos de Junho, justamente, para comentar um levante mais explosivo e controverso que ocorre na França por esses dias.
Para compreensão mais global dos acontecimentos, nos quais a violência cotidiana da polícia está sendo questionada por dezenas de milhares de jovens dos subúrbios franceses, sugiro ler esse artigo de Luc Mineto.
O que quero comentar é o impacto do que está ocorrendo na França para o mundo em geral e para o ativismo brasileiro em particular. Num dos grupos onde se discutiam as notícias chegadas das noites de “violência” das periferias das grandes cidades francesas (que quando esse texto é escrito, já somam quatro noites intensas de saques e combates de rua, com mais de um milhar de presos), alguns filmes foram sugeridos para entender a realidade da juventude periférica nesse país da Europa. “La Haine”, traduzido para terras brasileiras como “O ódio”, é um clássico de 1995, antecipando elementos que seriam agudos nos anos e décadas seguintes. Destaquei “Os Miseráveis”, de 2020, e sobretudo “Athena”, um filme de Romain Gravas, de 2022. Ambos tratam da explosão de violência em conflitos com a polícia francesa nos condomínios mais populares, onde a juventude negra e arabe é oprimida cotidianamente numa França cortada pelas contradições sociais e raciais do capitalismo europeu.
Diga-se de passagem, utilizamos “Athena” como material didático para a discussão sobre as contradições contemporâneas do capitalismo e do mundo do trabalho na Escola de Quadros do MES no ABC paulista.
A revolta presente nas ruas da França, contudo, é mais crua e realista. A morte por “gatilho fácil” do jovem Nahel M, de 17 anos, deixou Nanterre enraivecida. Sua mãe convocou uma marcha crítica que reuniu cerca de 10 mil pessoas dois dias após o assassinato. Uma cifra alta para a localidade. Espalhados por todo país, os protestos, queimando carros, enfrentando a polícia – inclusive com morteiros – e saqueando, sobretudo, lojas de luxo, deixaram Macron e o ministro do Interior, Darmanin, contra as cordas. Chegaram a cogitar a convocação do Estado de Emergência para restringir direitos de circulação e reunião, militarizando ainda mais as ruas. Macron mandou alguns blindados para reprimir os protestos sem, contudo, definir a militarização completa das cidades. O governo deslocou um efetivo de mais de 40 mil policiais para conter os protestos – que também ocorrem em Bruxelas e outras cidades belgas.
O toque de recolher foi decretado em três localidades da região parisiense (Clamart (Hauts-de-Seine), Neuilly-sur-Marne (Seine-Saint-Denis) e Savigny-le-Temple (Seine-et-Marne). O enfoque do governo visa deter os menores de idade, já que, segundo a imprensa, a linha de frente comporta jovens entre 13 e 16 anos, em sua maioria. Uma pessoa morreu na comuna de Petit-Quevilly, caindo de um telhado após a repressão.
O Estado de Emergência foi utilizado quatro vezes na história recente da França, sendo a última e mais traumática em 2005, quando foi aplacada a revolta dos subúrbios, iniciada em em Clichy Sous-Bois, no departamento de Seine Sant Denis, após a morte de dois jovens.
A atual situação evoca 2005, que por si só impactou a sociedade como um todo. Foram 19 noites consecutivas de distúrbios, com quatro mortos, 8,3 mil carros queimados e 2921 jovens presos.
O que marca, porém, são as diferenças com a revolta de 2005. Naquela altura, a raiva social se fez nítida, mas foi impenetrável para a esquerda social, sendo rapidamente contestada pela população e levando a ampla maioria das esquerdas e do meio sindical a repudiar as ações, deixando a via livre para criminalização e o caos.
Agora, há marcantes diferenças. A começar por duas: a sociedade francesa está fraturada por um recente conflito social, que opôs o governo ao movimento de trabalhadores, na questão da reforma previdenciária; existe ainda um apoio popular difuso, que levou a seleção francesa de futebol, com um dos maiores ídolos do esporte nos dias de hoje à frente, Mbappé, a condenar a violência policial.
A situação social está mais deteriorada que há cerca de 20 anos. A crise econômica é uma realidade no continente europeu, marcado pela incerteza e pela guerra. E diferente de duas décadas atrás, o enraizamento político, ideológico e cultural da extrema direita incide de forma mais estrutural e militante na opinião pública e na polarização quanto ao tema da imigração.
A ação do movimento BLM nos Estados Unidos, em meio a pandemia, em 2020, foi um dos responsáveis por derrotar politicamente Trump, o que ajudou a resultar na sua derrota eleitoral de meses depois. Foi um antes e depois. E, certamente, influencia na percepção do conjunto da sociedade sobre os acontecimentos franceses – num mundo que assistiu a diferença de tratamento entre os milionários que passeavam num submarino e as dezenas de paquistaneses que buscavam uma vida melhor na Europa morrendo como outros tantos num naufrágio no mar grego.
No Brasil, a violência policial contra a juventude negra e periférica é uma constante. Houve um manifestante morto nos protestos na vizinha Guiana Francesa, território pouco acessado ou discutido no Brasil, apesar de ser limítrofe com o estado do Amapá.
Ainda está em aberto o que vai se passar na França. Porém, existem pontos centrais que devem ser abordados porque são parte de uma luta universal e mundial, como a necessidade de barrar a ação da extrema direita, a luta contra medidas repressivas e autoritárias do Estado, uma ampla frente contra a violência policial e a solidariedade irrestrita com os imigrantes.