Atos racistas e a resposta da sociedade: como enfrentar a extrema direita
Como as grandes manifestações antirracistas na Inglaterra enfrentaram a extrema direita no país
Foto: : PICRYL/Reprodução
No primeiro final de semana de agosto, a Inglaterra e a Irlanda do Norte assistiram uma série de ações radicalizadas de caráter racista, orquestradas pela extrema direita a partir de uma rede de desinformação (fake news) e da polarização político social em que o país se encontra. Após os primeiros dias de tais manifestações, uma grande resposta social tomou conta do país, com atos massivos de solidariedade antirracista e uma resposta do novo governo de maioria trabalhista (Labour). Mais que isso, os acontecimentos aqui no Reino Unido, desencadeados pela versão britânica do 8 de Janeiro do Brasil (ou da invasão do Capitólio nos EUA) colocam em evidência, mais uma vez, a pergunta central para a esquerda nos dias atuais: como combater a extrema direita em cada país e no terreno internacional.
Progroms de agosto: a versão britânica do 8 de Janeiro (Brasil 2023) e do 6 de Janeiro (EUA 2021)
No dia 29 de julho, um crime bárbaro e brutal abalou a sociedade britânica. Um homem invadiu um centro comunitário na cidade de Southport, onde ocorria um evento para crianças, esfaqueando quem via pela frente. Várias pessoas ficaram feridas, algumas com gravidade – e três meninas entre seis e dez anos de idade morreram no ataque. O assassino foi preso no local e, por ser menor de idade, só teve sua identidade divulgada pela polícia três dias após o ataque. Axel Rudakubana é um jovem com problemas mentais, cidadão britânico nascido em Cardiff (País de Gales), filho de imigrantes africanos e sem nenhuma ligação, religiosa ou cultural, com qualquer tipo de fundamentalismo. O trágico ataque de Southport não teve motivação terrorista de qualquer espécie.
Porém, no intervalo entre o crime e a divulgação da identidade do assassino, setores da extrema direita colocaram em prática um operativo de propagação de fake news afirmando que se tratava de um ataque terrorista praticado por um refugiado fundamentalista islâmico. Uma vigília em Southport no dia seguinte ao crime foi atendida por militantes da ultra direita de várias partes do país, em particular da corrente fascista EDL (Liga de Defesa Inglesa), cujo principal expoente é Tommy Robinson. Já nessa vigília, os militantes fascistas atacaram a mesquita da cidade com pedras e coquetéis molotov, e entraram em confronto com a polícia.
Nos dias seguintes, novas manifestações ainda mais radicalizadas aconteceram em dezenas de cidades inglesas. Com exceção de uma em Londres, onde houve uma manifestação em frente à sede do governo, as mais significativas foram no norte e meio-norte do país. Houve uma também em Belfast, na Irlanda do Norte. Nesta, houve até uma unidade inusitada entre a extrema direita norte-irlandesa, unionista e a extrema direita republicana, que viajaram de Dublin para participar dos atos junto a seus inimigos tradicionais. Os atos ao longo do final de semana (3 e 4 de agosto) já apresentavam elementos de putsch fascistas e progroms. Nas cidades de Rotherham e Tamworth, hotéis que serviam de abrigo a refugiados foram atacados e incendiados (com as pessoas dentro, mas felizmente os incêndios e ataques foram controlados pelos bombeiros e a polícia). Em outras cidades, como Manchester e Middlesbrough, os fascistas paravam os carros e, caso o motorista fosse de origem asiática ou negro, os tiravam a força e incendiavam os veículos. Lojas foram invadidas e saqueadas, principalmente (mas não apenas) as identificadas com as comunidades atacadas pelos racistas. Na manifestação de Belfast, um vídeo que chamou atenção foi uma mãe com duas crianças brancas, que cantavam pela rua “Fora Pakis” (denominação pejorativa a pessoas de origem asiática, geralmente de referência cultural muçulmana).
Esse final de semana que marcou o ápice dos putsch racistas ocorreu menos de um mês após a posse do novo governo Trabalhista, encabeçado pelo Primeiro Ministro Keir Starmer. Já havia um operativo preparado, baseado em redes como o X (ex-Twitter) e Telegram, para ações radicalizadas da extrema direita neste início de governo – da mesma forma que ocorreu nos EUA após a derrota de Trump (janeiro de 2021) e no Brasil após a derrota de Bolsonaro (janeiro de 2023). A diferença é que no Reino Unido a direita perdeu por uma margem muito grande e, mesmo sem apresentar provas (como nos exemplos anteriores), não havia a menor condição de denunciar “fraudes” na eleição.
Os novos protagonistas na reorganização da extrema direita britânica
É interessante observar o comportamento de diferentes atores (e setores) nesse processo de reorganização na direita britânica após as eleições, e como atuaram nesse processo. Tommy Robinson, que criou a EDL e mais recentemente uma organização que organiza militantes de extrema direita nas torcidas de futebol, a FLA (Liga da Rapaziada do Futebol), vive fora do país e responde a inúmeros processos por atos de violência e racismo no passado recente. Há poucas semanas, Robinson foi preso no Canadá por problemas migratórios (o que chega a ser irônico), e há alguns dias parlamentares irlandeses (incluindo o socialista Paul Murphy) denunciaram que ele viaja com um passaporte irlandês irregular e adulterado.
Robinson vem ganhando espaço na extrema direita extra parlamentar britânica. No final de semana anterior aos incidentes, ele liderou um ato nacional “pelo patriotismo” com cerca de 20 mil presentes, na Trafalgar Square em Londres. Setores da imprensa, como o The Guardian, sustentam que ele é apoiado e financiado pela Rússia. Vale ressaltar também a nova ligação entre Tommy Robinson e o bilionário Elon Musk, que interage com o fascista nas redes sociais (aumentando exponencialmente sua visibilidade) e, durante o ápice dos protestos, declarou em sua rede social X (ex Twitter) que “uma guerra civil é inevitável” no país. Após o primeiro final de semana das manifestações racistas, Robinson saiu do país e desde então acompanha os desdobramentos em um resort de luxo no Chipre.
A extrema-direita parlamentar é representada principalmente pelo recém eleito deputado Nigel Farage (e seu partido Reform UK, que tem uma pequena bancada em Westminster). Farage participou da divulgação das fake news racistas que antecederam os progroms, mas depois disse condenar a violência e que adota uma postura defensiva sobre o tema.
A resposta da esquerda e dos movimentos sociais – virou o jogo
Foi de fato inquietante, não só para pessoas de esquerda mas para qualquer pessoa com consciência antirracista, o primeiro final de semana de agosto aqui no Reino Unido. A extrema direita parecia moralizada, algumas (poucas) pessoas botavam bandeiras da Inglaterra nas janelas e carros, o que só costumava aparecer em épocas de Copas de futebol. Marcaram mais atos para o longo da semana, em mais cidades, com concentrações previstas em frente a centros de refugiados ou mesquitas. A quarta-feira, dia 7 de agosto, estava prevista e sendo convocada como um dia de atos ainda maiores e mais radicalizados que os do final de semana, por todo o país.
Existe uma base subjetiva na qual a extrema-direita se apóia para estimular esse fenômeno. Há uma propaganda por décadas, difundida não apenas pela extrema direita mas também por amplos setores da mídia, dos partidos burgueses tradicionais e até por setores da centro-esquerda que demoniza, em maior ou menor grau, as populações imigrantes – colocando em sua conta os efeitos das políticas de austeridade que eles próprios implementam. Principalmente os de origem em países muçulmanos, africanos – e os mais pobres em geral. Mas esse sentimento não é majoritário na classe trabalhadora, na juventude ou na população britânica. O instituto de pesquisa YouGov publicou no dia 06 de agosto que a maioria da população se opunha aos protestos, e de forma ainda mais contundente rejeitava a violência empregada nos mesmos.
Os movimentos sociais e os sindicatos começaram a organizar contra-atos (ou atos antirracistas). Na segunda-feira (05 de agosto), houve um ato em Cornwall que foi parcialmente sufocado pelo movimento antirracista. E o que se viu na quarta-feira foi uma supremacia categórica dos atos antirracistas em todas as cidades – fazendo com que os atos da extrema direita fossem bastante esvaziados e minoritários ou, na maioria dos casos, sequer ocorressem.
No sábado seguinte, dia 10 de agosto, grandes atos antirracistas ocorreram não só por toda a Inglaterra e na Irlanda do Norte, mas também na Escócia e País de Gales. Todas essas manifestações foram significativamente maiores que as do final de semana anterior, inclusive nas mesmas cidades. Uma das maiores e mais significativas foi na mesma Belfast citada alguns parágrafos acima, além de uma grande manifestação antirracista em Walthamstow, zona nordeste de Londres. O clima não é mais de atonicidade e medo, especialmente por parte das comunidades atingidas pelos ataques. Pelo contrário, o sentimento é de moralização, de que foi dada uma resposta à altura. E que o momento é de ir atrás dos responsáveis pelas barbaridades cometidas.
A resposta do governo Starmer
O governo Starmer respondeu aos eventos. Ainda no final de semana dos distúrbios promovidos pela extrema-direita, o Primeiro Ministro foi aos meios de comunicação declarar que não se tratavam de manifestantes, mas “marginais de extrema direita” e que os envolvidos iriam “se arrepender amargamente” por suas ações. E de fato, o governo junto com os aparatos de segurança (Polícia e Justiça) realizou centenas de prisões nos locais dos eventos, e também de pessoas posteriormente identificadas por imagens e postagens nas redes sociais. Nos últimos dias, os noticiários mostram diversas condenações de pessoas envolvidas, em sua maioria nos atos da extrema direita. Até o momento que se fechava esse artigo, o número de prisões já passava de 1,000 e chegava a quase 600 condenações pela Justiça.
A extrema direita reagiu à resposta do governo dizendo que havia um “dois pesos e duas medidas”, alegando um suposto desequilíbrio entre a repressão a esses atos e eventos protagonizados pela esquerda – especialmente os protestos pró Palestina, as manifestações BLM de 2020 e a recente onda de greves no país. Tal argumento foi bastante difundido por (de novo ele, o bilionário-propaganda da extrema direita mundial) Elon Musk e repetido por jornalistas e políticos de direita, como deputados do Reform UK.
Isso, obviamente, não é verdade. Para começo de conversa, não são comparáveis ações de bloqueios de ruas e derrubada de estátuas com agressão a pessoas pela cor de sua pele, etnia ou religião – e muito menos incendiar centros de refugiados com pessoas (inclusive crianças) dentro. Além disso, as penas em geral têm sido menores às que receberam, semanas atrás, ambientalistas do Just Stop Oil por bloquearem uma das principais estradas do país, a M25. Em Leeds, manifestantes antirracistas da comunidade muçulmana foram presos por se defenderem fisicamente de ataques de militantes fascistas, e receberam penas do mesmo porte dos presos da extrema direita. Ricky Jones, um “vereador” do Labour foi preso em Londres e suspenso do Partido por ter dito em um protesto antirracista que “é preciso cortar a garganta dos fascistas”.
Starmer, que era o equivalente a “procurador-chefe” durante os distúrbios sociais de 2011, tem sido menos rigoroso que o necessário com os mentores dos distúrbios racistas de 2024 – principalmente os “peixes-grandes” como Robinson, Farage, grupos de mídia que vêm incentivando a xenofobia e Elon Musk. Além disso, se esforça em mostrar que “pune de ambos os lados”, deixando espaço a uma visão de equivalência entre os dois lados que é absolutamente falsa. E não faz isso por um “equívoco”, como gostam de dizer alguns setores de esquerda quando tentam se diferenciar da política de governos dessa natureza sem ter que se enfrentar com os mesmos – o faz por que esse é seu Projeto.
Sem dúvida, a resposta do governo e a repressão aos atos racistas também cumpriram um papel no esvaziamento dos mesmos, mas nem de longe foram o principal elemento para isso. A principal razão da virada na maré foi a entrada em cena dos movimentos sociais, tomando as ruas e respondendo com coragem e determinação às ameaças da extrema direita.
Por um novo partido de esquerda, ligado às lutas sociais, independente e socialista
Felizmente, não é apenas a Direita que passa por um processo de reorganização no Reino Unido. Há um processo ocorrendo também pela esquerda, desde antes das eleições e que agora ganha outro ritmo.
Embora as eleições tenham consagrado uma vitória inquestionável e histórica do Partido Trabalhista (Labour), com uma confortável maioria absoluta no número de assentos – isso não se refletiu em termos de votação absoluta e percentual. O Labour teve, em 2024, o equivalente a 34% dos votos (9.6 milhões). Em 2017, sob a liderança de Jeremy Corbyn e com um perfil bem mais à esquerda, obteve 40% dos votos (12.8 milhões) – perdendo em número de assentos para os Conservadores, que não obtiveram maioria absoluta. E, na derrota de Corbyn em 2019 quando os Conservadores conquistaram ampla maioria parlamentar com Boris Johnson, o Labour obteve 32% dos votos (10.2 milhões). Essa discrepância reflete o atrasado modelo eleitoral britânico, que é majoritário por “distritos”, e a diferença no universo de votantes pela baixa polarização eleitoral e o voto não obrigatório.
Como demonstrado no parágrafo anterior, Starmer obteve tal maioria não por uma avalanche de votos, mas por ter “distribuído” melhor a votação nas localidades. Em termos absolutos, obteve menos votos que Corbyn nas duas últimas eleições, e em percentuais também ficou abaixo, na média. Com um perfil bem mais à direita (pode ser considerado, no máximo, um governo de centro-esquerda), apoiado pelos grandes veículos neoliberais e imperialistas, Starmer não empolgou a juventude ou a classe trabalhadora – que votou nele sem entusiasmo para se livrar de 14 anos de desastrosos governos do Partido Conservador.
Antes das eleições, o país vinha de um ascenso de greves e lutas sociais (ambientais, juventude) que não tem, no momento, uma representação política que os unifique. Nas eleições, esse espaço se manifestou na reeleição de Jeremy Corbyn como parlamentar de Islington North (Londres), que concorreu como independente por ter sido expulso do Labour sob falsas acusações de antisemitismo (na verdade, por denunciar o genocídio contra o povo palestino – um motivo fabricado para empurrar a esquerda trabalhista para fora do partido). Além dele, alguns parlamentares eleitos pelo Labour, mas que vem se chocando abertamente (pela esquerda) contra a direção de Starmer. Com duas semanas de governo, 19 parlamentares do Labour assinaram uma moção (que não foi levada adiante) exigindo o retorno de um benefício social para crianças (cortado pelos Conservadores desde 2017), e sete deles foram suspensos (por seis meses) ao voltarem contra o governo, em favor do benefício social. Cinco independentes derrotaram candidatos do Labour com candidaturas explicitamente pró Palestina (Gaza). O Partido Verde, que se apresentou à esquerda do Labour e absorveu algumas camadas de militantes do Corbynismo, quase triplicou sua votação em todo o país, e passou de um para quatro representantes no Parlamento. O TUSC, que abriga algumas correntes de esquerda socialista (inclusive trotskistas), apresentou candidatura em 40 localidades, não chegando a resultados eleitoralmente expressivos (sua melhor colocação foi em Coventry East, onde Dave Nellist obteve 2.1% dos votos). Na Irlanda do Norte, o candidato do People Before Profit, Gerry Carroll, ficou na segunda colocação em Belfast West com 12.7% dos votos (pouco mais de 5 mil).
No dia 9 de agosto, Jeremy Corbyn anunciou que prepara a formação de um “bloco independente” de esquerda no Parlamento, inicialmente formado por ele e os independentes eleitos com uma agenda pró Palestina, à esquerda do Labour. Esse é um passo importante, mas que só pode ter efetividade se for a expressão de um processo de unificação não apenas no Parlamento, mas fundamentalmente nas estruturas das lutas sociais no país.
O principal debate que hoje atravessa a esquerda é o de como enfrentar a extrema direita. Alguns setores da esquerda repetem fórmulas do século passado, de apoiar governos de colaboração de classe e amplas frentes “contra o fascismo”. O problema dessa fórmula é que tais governos, ao aplicarem projetos de austeridade e receitas neoliberais, tendem a gerar desilusão e abrir o espaço para que a extrema direita, como Tommy Robinson, Bolsonaro, Chega, Elon Musk ou Trump se apresentem falsamente como alternativa “anti-sistema” ao status quo. Há até casos de setores que passam a dizer que a extrema direita “não se apresenta como anti-sistema”, como forma de justificar sua adaptação e apoio a tais governos de colaboração.
Na verdade, o caminho é o oposto. A esquerda para denunciar e extrema direita e impedi-la de ocupar tal espaço, precisa se apresentar de forma independente, com seu perfil, programa e radicalidade. É preciso unificar a vanguarda das greves que sacudiram o país nos últimos anos, as dezenas de milhares de ativistas que tomaram as ruas para derrotar os putsch racistas de agosto, as centenas de milhares ou milhões que protagonizaram os protestos contra o massacre do povo palestino (e fizeram o governo Starmer mudar a política britânica de venda de armas para Israel), os ativistas que protagonizaram o BLM e derrubaram estátuas de racistas em 2020, a juventude que impulsionou o Corbynismo, os ambientalistas que denunciam a catástrofe climática, enfim – que unifique os trabalhadores, os setores oprimidos e as lutas sociais. O espaço para isso está colocado, para a construção de um partido construído pela base, democrático, internacionalista e socialista.