A 30 anos da “Intifada das pedras”

Há 30 anos da primeira Intifada, a crescente tensão entre Israel e Palestina faz tornar imprescindível a contextualização histórica das disputas na região.

María Landi 9 dez 2017, 14:42

Este ano de aniversários significativos para a Palestina 1 se encerra comemorando os 30 anos da – mal chamada – “Primeira Intifada” 2: o maior levante massivo do povo palestino, que reinstalou sua causa na agenda internacional e despertou uma onda de simpatia popular ao redor mundo.

A explosão se iniciou em 9 de dezembro de 1987 em um checkpoint militar do campo de repudiados de Yabalyia, em Gaza, quando um jipe israelense atropelou um caminhão que levava trabalhadores palestinos, matando quatro pessoas; e no protesto popular que seguiu o incidente, um soldado alvejou um adolescente de 17 anos. Contudo, esses fatos violentos – e vários outros que os precederam- foram a gota que fez transbordar o vaso de uma população submetida durante 20 anos 3 a um brutal regime militar e colonial que, depois de arrebatar sua terra para entrega-la a colonos judeus avindos da Europa e de todo o mundo, negava a eles os mais elementares direitos humanos, assim como sua história e sua identidade como povo originário dessa terra, castigando com o cárcere e a deportação massiva qualquer tentativa de resistência. Nesses 20 anos, 200 mil palestinos passaram pelos cárceres israelenses, e quatro mil e quinhentos permaneciam neles em 1987.

A Intifada pegou de surpresa tanto o regime israelense como os dirigentes da Organização para a Libertação da Palestina (OLP, fundada em 1964) exilados na Tunísia, pois ela não foi organizada diretamente por partido algum. Uma geração inteira que havia nascido e crescido sob a ocupação se levantou como protagonista e marcou um divisor de águas na longa historia de resistência palestina: até esse momento, a iniciativa se limitava às áreas fora dos territórios ocupados, com os lideres da OLP que conduziam a luta armada desde a Jordânia, o Líbano e a Tunísia, sucessivamente.

Contudo, em dezembro de 1987 o povo sob ocupação disse “Basta!” e saiu às ruas massivamente para enfrentar, desarmado, um dos exércitos mais poderosos do mundo. A imagem icônica de meninos lançando pedras em tanques se converteu em um símbolo do levante palestino, invertendo o mito de Davi e Golias que Israel propagava eficazmente ao se apresentar como vítima ameaçada e agredida pelo poderoso mundo árabe.

Ainda que tenha havido ações armadas, o levante foi fundamentalmente uma insurreição civil 4. A resistência se organizava nas cidades, nos povos, aldeias e campos de refugiados através de comitês populares que garantiam a subsistência da população, assim como as tarefas educativas e de saúde durante os bloqueios e toques de recolher. A condução estava nas mãos de uma coalizão plural, clandestina e bem organizada: o Mando Nacional Unificado da Intifada, que dirigia as ações de protesto. Estavam representados ali o Fatah, como principal partido, e as marxistas Frente Popular pela Libertação da Palestina (FPLP, fundada em 1967), Frente Democrática pela Libertação da Palestina (FDLP, fundada em 1969) e o Partido do Povo Palestino e Comunista (PPP, fundado em 1982). Os partidos islamitas (Hamas e Yihad Islâmica) fizeram sua aparição pública pouco antes de se iniciar a Intifada, mas não se integrarão ao Mando Nacional Unificado da Intifada (MNUI), que se manteve como um movimento secular.

Ainda que a maioria da população palestina tenha menos de 30 anos, muitos se recordam com nostalgia da primeira Intifada. O tema aflora em conversas com qualquer pessoa que tenha ao menos 40 anos, e todos possuem anedotas para contar sobre essa resistência popular bem organizada, que se manteve durante quase cinco anos apesar da brutal resposta repressiva israelense e do alto custo que as famílias e as comunidades pagara. Sobram relatos sobre as diversas formas dessa resistência: desde a luta permanente nas ruas e as greves prolongadas até o não pagamento de impostos e o boicote a instituições e produtos israelenses – e tudo o que implicava isso em termos de organizar alternativas de subsistência. Uma eficaz rede subterrânea permitia coordenar as diversas tarefas de resistência; entre elas, cursos clandestinos para que crianças e jovens pudesse continuar estudando. Cada ação implicava, ademais, em se preparar para enfrentar a reação do inimigo e tratar de minimizar seus custos. Por exemplo, o não pagamento de impostos foi castigado com a invasão de lares e a “confiscação” (eufemismo sionista para se referir ao roubo de terras e propriedades palestinas) dos bens particulares das famílias.

A Intifada gerou um sentimento de empoderamento coletivo, assim como uma subversão das convenções sociais. Por exemplo, as mulheres saíram do espaço doméstico e assumiram novos papéis produtivos e políticos, organizando-se em comitês locais para assegurar a efetividade das tarefas de boicote e subsistência no nível comunitário, e também participaram ativamente da mobilização popular.

A reação sionista foi, como sempre, brutal e desproporcional: fechamento de escolas e universidades, toque de recolher, cerco a cidades, repressão feroz das manifestações, demolição de casas sem aviso prévio, destruição de plantações, desvio de fontes vitais d’água (provocando uma deliberada escassez nas comunidades), deportação de ativistas e demissões em massa de quem trabalhava em Israel. O então ministro da Defesa Isaac Rabin ordenou ao saldados “quebrar os ossos” das crianças que atirassem pedras. Entre 1987 e 1991 as forças israelenses assassinaram mais de mil e cem pessoas (muitas delas menores de idade), feriram a dezenas de milhares e detiveram mais de 120 mil pessoas. O Conselho de Segurança da ONU emitiu várias resoluções condenando Israel pelo alto número de mortes, deportações massivas e destruição de vivendas, o acusando de violar os Convênios de Genebra O levante teve como saldo mais de mil e quatrocentos mortes palestinas (incluindo 237 menores de 17 anos) e 185 israelenses.

Ainda que a condução da insurreição estivesse nas mãos do MNUI, os dirigentes da OLP tentaram dirigir o processo por “controle remoto” a partir da Tunísia. A unidade também se via ameaçada pelo sectarismo e pela luta de poder entre os dirigentes partidários que tinham uma margem de atividade e visibilidade pública que carecia aos lideres clandestinos do MNUI não tinham. Esses fatores, juntamente com o desgaste natural da sociedade civil de ter que fazer frente a uma repressão implacável e cada vez mais dura, levaram a um enfraquecimento do processo. Enquanto as pessoas resistiam nas ruas, nos bairros, aldeias e campos de refugiados, e pagava com seu próprio sangue o preço mais caro, o MNUI perdia independência e a cúpula da OLP buscava aproximações com o inimigo para negociar um acordo 5. Ao mesmo tempo, ao povo palestino ia ficando claro que não poderia contar com o apoio dos governos árabes – apesar da simpatia de seus povos. A explosão da Guerra do Golfo em 1991 terminou de inclinar a balança contra a rebelião palestina.

As manobras de Israel e dos Estados Unidos para neutralizar a Intifada cooptando Arafat e a direção da OLP (controlada pelo Fatah) tiveram efeito com a convocação da Conferência de Paz de Madri (1991). Ela colocou em marcha o falaz “processo de paz” que levaria a assinatura dos Acordos de Oslo I (1993) e Oslo II (1995). Esse giro significou o atestado de morte da Intifada popular, e o início de um processo que se converteu a luta de liberação nacional em uma imitação de “autonomia”, e os lideres dessa luta em um uma elite ocupada (em todos os sentidos da palavra) na “administração” de insignificantes parcelas do território controlado por Israel. À nova Autoridade Nacional Palestina (ANP, fundada em 1994) foi concedido muito menos poder do que tinham os fantoches dos bantustãs durante o apartheid sul-africano – ainda que sua funcionalidade política fosse muito parecida.

Oslo significou também a fragmentação territorial, a atomização social e política, um maior estrangulamento da econômica palestina e a introdução de políticas neoliberais para converter a população ocupada em consumidora e dependente de hipotecas e empréstimos financeiros ou de salários da ANP. Esse perverso sistema de controle foi implementado em paralelo com o avanço implacável da colonização israelense, que em 20 anos de “processo de paz “ triplicou o número de colonos vivendo no território ocupado.

A frustração das pessoas com a armadilha de Oslo, assim como às políticas repressivas e belicosas de Ariel Sharon, levaram em 2o00 à explosão da “Segunda Intifada”, que teve um caráter completamente diferente pela preeminência que os movimentos islamistas e suas sangrentas ações armadas, em detrimento da participação popular – de tal modo que muita gente na Palestina (e em particular algumas feministas) não a considerou uma verdadeira Intifada popular. Sua derrota significou o aprofundamento da dominação israelense a níveis até então desconhecidos, em particular com a construção do Muro e o sistema associado de permissões e checkpoints para garantir ainda mais a fragmentação do território, o controle da população ocupada e a supressão total de sua liberdade de movimento.

A corrupção e a degradação da ANP e de sua rede clientelista, sua imperdoável colaboração com Israel, sua renúncia em lutar por Jerusalém e pela população refugiada, levaram ao assenso do Hamas em 2006. Seu enfrentamento com o Fatah em 2007, e a capitalização que Israel soube fazer dessa endêmica luta fratricida, acentuaram o isolamento da bloqueada Faixa de Gaze do resto do território palestino, e a dificuldade para reconstruir um projeto de liberação nacional. Contudo, apesar do estancamento provocado pelo processo de Oslo e o sectarismo político, a melhor expressão da sociedade civil palestina parece ter começado a resgatar o espírito rebelde, plural e unitário daquela Intifada no vigoroso Movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções a Israel (BDS, de 2005) que não para de crescer dentro e fora da Palestina, apesar dos ingentes esforços de Israel em o criminalizar e destruir. Seu potencial é enorme, se considerarmos que os territórios ocupados são o terceiro mercado da economia israelense, e que é uma batalha que pode se livrar desde o interior de cada casa e de cada consciência, em uma variante de resistência clandestina mais difícil de suprimir.

Trinta anos depois da Intifada, as palestinas e os palestinos tem razões de sobra para lembrar com nostalgia daquela época em que lutaram porque não “tínhamos nada o que perder”, e porque tinham um programa de resistência comum e uma liderança unida para o conduzir. Mas o movimento BDS possui ambos, e uma crescente plataforma de apoio e legitimidade internacional. Os sionistas o sabem, e é por isso que o BDS os tira o sono.

Artigo publicado aqui. Tradução de Pedro Micussi para a Revista Movimento.


Notas da autora

1 100 anos da Declaração Balfour que deu luz verde à colonização sionista, 50 da ocupação da totalidade da Palestina, 10 anos do bloqueio da Faixa de Gaza, e o que relembra essa coluna

2 Intifada é uma palavra árabe que significa literalmente “agitada” e designa uma revolta popular. A verdade é que durante o século XX o povo palestino se levantou muitas vezes contra a dominação britânica e a colonização sionista (por exemplo em 1929, 1936-39, 1976, 1979-80).

3 Os 20 anos se contem desde a ocupação de Gaza, da Cisjordânia e Jerusalém. Esta em 1967, sem se esquecer que a maior limpeza étnica da Palestina se iniciou em 1948 no território que hoje ocupa o Estado de Israel.

4 Apesar da brutal repressão israelense, a direção da Intifada se mostrou contrária ao uso de armas nos protestos. Os números indicam que apenas cinco por cento das ações palestinas incluíram armas de fogo ou explosivos.

5 Em 1988 a OLP no exílio declarou a independência da Palestina, reconhecendo o Estado de Israel em troca da ilusão de criar um futuro mini Estado palestino com 22% de seu território histórico.


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