Neurodiversidade: desafiando a normalidade no ativismo
O ativismo assume muitas formas, mas muitas vezes significa navegar por ambientes desconfortáveis, adaptar-se a formatos de aprendizado desafiadores e assumir uma carga emocional adicional
Imagem: RM/Reprodução
Via Rupture
Este artigo explora o movimento da neurodiversidade e ideias já existentes, ao mesmo tempo em que propõe um modelo de organização para melhor representar pessoas neurodivergentes, mulheres, pessoas LGBTQ+, não binárias e outras comunidades oprimidas dentro dos movimentos socialistas e de esquerda.
Como ponto de partida, neurodivergente refere-se a indivíduos cujo funcionamento neurocognitivo difere do que os padrões sociais dominantes definem como “normal”. Isso inclui condições como autismo, TDAH, TOC, dispraxia e doença de Parkinson, entre outras.1
O ativismo assume muitas formas, influenciado pelas experiências e contextos de vida. Para mim, estar em atividade tem frequentemente significado lidar com ambientes sensoriais desconfortáveis ou dolorosos, aprender papéis ativistas e outras habilidades, adaptar-me a formas desafiadoras de aprendizagem e assumir encargos emocionais adicionais para lidar com interações sociais e hierarquias.
Embora o ativismo frequentemente reúna pessoas marginalizadas, ele também traz sacrifícios. Permanecer em silêncio sobre desafios pessoais, investir muito tempo e esforço emocional, e sobrecarregar-se para sustentar campanhas frequentemente recai sobre um pequeno grupo de ativistas dedicados. Em certos momentos, espaços ativistas são influenciados por formas tradicionais de organização, incluindo estruturas hierárquicas de comando e estilos de liderança autoritários enraizados em normas masculinas tradicionais de dominação, controle e, às vezes, oportunismo político.
Contudo, os aspectos pessoais, organizacionais e políticos do ativismo estão profundamente interligados, devem ser discutidos em conjunto e requerem esforços coletivos para transformar a maneira como nos organizamos.
“Você Não Parece Autista”: Desmascarando Estereótipos
Sou autista com um diagnóstico formal, que é a principal lente pela qual abordo este artigo, juntamente com minhas experiências como mulher vivendo sob o capitalismo. Reconheço meus privilégios e que minha perspectiva é moldada por uma visão ocidental. Embora eu não fale por todas as pessoas autistas ou neurodivergentes, nem por todas as mulheres, espero contribuir com este debate mais amplo.
É também importante reconhecer a validade das pessoas autistas sem diagnóstico. Muitas enfrentam barreiras como o preconceito dentro do sistema médico, limitações financeiras e acesso restrito a serviços. Esses desafios são ainda maiores para pessoas de origens marginalizadas. Pessoas autistas que buscam cuidados de afirmação de gênero enfrentam dificuldades adicionais ao ter um diagnóstico, e muitas mulheres, pessoas trans e não binárias são diagnosticadas apenas tardiamente na vida devido a critérios diagnósticos ultrapassados e estigmas culturais.
Historicamente, as diretrizes de diagnóstico do autismo foram influenciadas por estereótipos centrados nos homens, levando muitas pessoas a não serem diagnosticadas ou a receberem diagnósticos errados com base em gênero, raça ou classe. Pesquisas iniciais de Hans Asperger — cuja cumplicidade com o regime nazista foi exposta — descreveram a síndrome (hoje parte do espectro autista) como uma condição que afetava “meninos inteligentes, porém problemáticos”, de origens brancas e privilegiadas. Essa perspectiva estreita excluiu mulheres, pessoas não binárias e pessoas negras dos critérios diagnósticos iniciais, reforçando a teoria do “cérebro masculino”. Até recentemente, a proporção de diagnósticos entre homens e mulheres era de aproximadamente 4 para 1. No entanto, essa disparidade está mudando, e hoje sabemos que o autismo pode se manifestar de formas diversas entre as pessoas.2
Estereótipos, como a crença de que pessoas autistas são sem empatia, têm voz monótona e estão concentradas em áreas técnicas, são prejudiciais e contribuem para equívocos. Mesmo aqueles que demonstram traços tidos como “masculinos” podem ser ignorados durante o diagnóstico. O livro Unmasking Autism, de Devon Price, dá voz a uma variedade de experiências, discute o impacto de mascarar traços autistas e destaca o capacitismo enfrentado por quem se assume autista.
Pesquisas também indicam uma conexão entre autismo e identidade LGBTQ+. Ambos os grupos compartilham um histórico de práticas prejudiciais, incluindo terapias comportamentais como a ABA (Análise do Comportamento Aplicada) e a terapia de conversão gay, ambas desenvolvidas por Ole Ivar Lovaas, com efeitos psicológicos duradouros.3
Além disso, rótulos como “alta funcionalidade” e “baixa funcionalidade” simplificam demais as experiências das pessoas autistas. O “funcionamento”, frequentemente definido por padrões capitalistas de normalidade, geralmente significa parecer uma pessoa não autista, como manter um emprego, mesmo que se enfrente dificuldades com estímulos sensoriais, funções executivas ou saúde mental devido à necessidade de mascarar. O termo “baixa funcionalidade” pode perpetuar o estigma e o isolamento, fazendo com que as necessidades e capacidades de pessoas autistas sejam negligenciadas.
[Aviso de gatilho: a próxima seção discute suicídio]
Alienação e Saúde Mental
A teoria da alienação de Karl Marx descreve como as pessoas se tornam alienadas do seu trabalho, dos produtos que produzem, de outros trabalhadores e de si mesmas sob o capitalismo. Em um mercado competitivo, valoriza-se o lucro e o crescimento contínuo, em vez do bem-estar coletivo. Isso inclui a natureza, os ambientes sensoriais, exigências no trabalho e os sistemas de cuidado e apoio necessários.
O impacto dessas pressões é especialmente evidente nos desafios de saúde mental enfrentados por pessoas autistas. Pesquisas mostram que pessoas autistas têm risco significativamente maior de suicídio e automutilação. Um estudo apontou que isso pode ser resultado da necessidade de mascarar traços autistas, suporte inadequado e sentimentos internalizados de ser um fardo, entre outros fatores. Também há uma falta significativa de estudos sobre saúde mental nas interseções entre autismo, identidade não binária, LGBTQ+ e racial/étnica. No entanto, é bem documentado que pessoas autistas e LGBTQ+ enfrentam taxas desproporcionalmente altas de problemas de saúde mental e risco de suicídio.4
O sentimento de alienação também se estende ao mundo do trabalho. A sociedade prioriza o lucro em detrimento do bem-estar, valorizando as pessoas com base em sua produtividade. Aqueles que atendem aos padrões do “trabalhador produtivo” muitas vezes são explorados por seu trabalho excedente — o valor que geram além do que recebem. Por outro lado, pessoas que não conseguem atender a esses padrões devido à deficiência, doença, saúde mental ou outros motivos são rotuladas como fardos e relegadas à “população excedente”. O Estado cria instituições para decidir quem é “merecedor” ou “não merecedor”, e a mídia reforça a narrativa estatal de que essas pessoas estão tentando explorar o sistema.5
Atualmente, adultos autistas enfrentam taxas extremamente altas de desemprego. Na Irlanda, apenas 16% das pessoas autistas têm emprego em tempo integral, e 32% estão em algum tipo de trabalho remunerado.6 Janine Booth, ativista sindical autista, explora a experiência de trabalhadores autistas em seu livro Autism Equality in the Workplace.7 Booth destaca que o foco não deve ser em mudar pessoas autistas para se encaixar nos ambientes de trabalho, mas sim transformar os locais de trabalho e organizar para dar voz às pessoas autistas.
O objetivo não deve ser fazer com que pessoas autistas se adaptem melhor a sistemas feitos para explorá-las. Precisamos transformar os locais de trabalho e construir um ativismo sindical de base que dê voz às pessoas autistas e demais trabalhadores com deficiência. Junto a isso, precisamos de sistemas de cuidado e apoio que beneficiem a todas e todos, baseados na solidariedade e não no lucro, centrados no cuidado com as pessoas e o planeta, e não na exploração.
Movimento da Neurodiversidade
O paradigma da patologia afirma que existe uma única forma “normal” de funcionamento cerebral, em vez de reconhecer a neurodivergência como uma parte natural e saudável da diversidade humana.
O termo “neurodivergente” foi cunhado por Kassiane Asasumasu em 2000, enquanto o conceito de “neurodiversidade”, referindo-se à variação no funcionamento neurocognitivo, foi criado pelo grupo autista ‘InLv’ em 1996. A ideia mais ampla da diversidade neurológica já era discutida em muitos espaços autistas durante os anos 1990, sem um “dono” único.8 O movimento neurodivergente ganhou força com a internet, que permitiu que pessoas autistas se conectassem, compartilhassem experiências e desafiassem as narrativas patologizantes sobre o funcionamento neurológico.
Nick Walker publicou o ensaio Throw Away the Master’s Tools em 2012. Walker define o paradigma da patologia como a crença de que existe uma única maneira “normal” de estrutura e funcionamento do cérebro, e que qualquer desvio disso é errado. Em contraste, o paradigma da neurodiversidade vê a neurodivergência como parte natural e saudável da diversidade humana, assim como variações de etnia ou gênero. Walker argumenta que não há uma mente “normal” ou “correta”, e que as dinâmicas sociais em torno da neurodiversidade são similares a outras formas de desigualdade social. Essa mudança de paradigma precisa acontecer tanto na consciência individual quanto na cultura mais ampla.9
Mais recentemente, o livro Empire of Normality, de Robert Chapman, oferece uma análise marxista profunda do desenvolvimento do “Império da Normalidade” junto ao crescimento do capitalismo.
Chapman examina como os entendimentos predominantes sobre normalidade e neurodivergência na sociedade são moldados pelas relações materiais em constante mudança do capitalismo. Eles analisam as opressões interseccionais de gênero, raça e classe, colocando a neurodivergência no centro. Um de seus insights é que “já que o paradigma da patologia e a forma como ele naturaliza concepções cada vez mais restritas de normalidade cresceram justamente para refletir as necessidades da economia capitalista, essas condições materiais precisam ser mudadas, e não apenas nosso pensamento”. Isso exige uma mudança estrutural profunda na sociedade.10
Unidade no Cuidado Coletivo e na Ação
Há inspiração no movimento da neurodiversidade ao reconhecermos o valor de todas as pessoas, independentemente de seu funcionamento neurocognitivo. Como diz Chapman, “são necessários todos os tipos de mentes para que a sociedade funcione” — e eu estendo isso às organizações ativistas, especialmente socialistas e anticapitalistas. Também sou influenciada pelo artigo de Penny Duggan sobre organização feminista.11
A organização coletiva é frequentemente discutida em espaços não hierárquicos, menos em organizações com liderança centralizada. No entanto, há problemas na falta de estrutura, como destacado em The Tyranny of Structurelessness.12
Apresento uma definição de organização coletiva para fomentar o debate em espaços ativistas. Quem está marginalizado frequentemente questiona o funcionamento interno, enquanto quem está no poder pode considerar essas preocupações como distrações das lutas “reais” ou crises imediatas.
Definição
Organização coletiva envolve ativistas se reunindo sobre uma plataforma política comum para reconhecer e valorizar diferentes mentes, origens e experiências que influenciam estratégias e intervenções nas lutas. Em reuniões, somos todos iguais, e debater ideias não é apenas um processo político, mas ajuda a construir estratégias e fortalecer a organização a longo prazo.
Os espaços e organizações ativistas podem reproduzir ideologias e dinâmicas de poder da sociedade. É essencial refletir e confrontar isso nas atividades do dia a dia, incluindo questões como comunicação, acesso ao conhecimento, capital social, organização (planejamento, formato de reuniões, avisos prévios, procedimentos), acessibilidade e preconceitos inconscientes de gênero, deficiência ou outras opressões. Remover barreiras e empoderar vozes silenciadas deve ser incentivado e facilitado.
Tarefas devem ser distribuídas de forma justa, considerando capacidades diferentes devido a circunstâncias pessoais, cuidados ou deficiências. Diferentes necessidades de aprendizagem devem ser apoiadas como parte do processo coletivo.
Liderança não deve ser uma estrutura de comando de cima para baixo. Isso também se aplica ao trabalho comunitário mais amplo, onde há desigualdade de poder entre ativistas experientes e as comunidades. A liderança deve evitar monopólios de decisão e resistir ao tokenismo ou estereótipos sobre ativistas.
A liderança, individual ou coletiva, deve ser responsável, transparente e informada pelas experiências e percepções dos ativistas e das pessoas nas lutas. Fóruns estruturados de balanço, debate e reflexão devem ser parte de uma organização democrática e viva. O objetivo não é silenciar vozes minoritárias, mas construir liderança real nas organizações e comunidades.
O cuidado com ativistas não é uma responsabilidade individual, mas coletiva. Seja em relação à saúde mental, cuidados infantis em eventos, acessibilidade ou outras barreiras, devemos agir com solidariedade. Devemos reconhecer que o pessoal é sempre político e que limites devem ser respeitados.
A prática do cuidado coletivo deve substituir a linguagem e a tradição do sacrifício burocrático. Isso deve se refletir nas estruturas, na comunicação, no apoio a ativistas e na abertura para métodos criativos de organização.
Considerações Finais
Para mim, a libertação neurodivergente é inseparável da construção de organizações socialistas fortes e democráticas e de movimentos mais amplos — online, em sindicatos, lutas por moradia, resistência à extrema direita e outras campanhas. Trata-se de criar espaços onde ativistas — neurodivergentes, mulheres, LGBTQ+, pessoas não binárias etc. — possam se organizar coletivamente, desafiar o funcionamento interno dos espaços ativistas, construir organizações e contribuir com as lutas das quais fazem parte.
O movimento da neurodiversidade, incluindo as demandas mais amplas em torno da deficiência e do cuidado, não são questões secundárias; fazem parte de nossa consciência de classe sobre como nos organizamos, enfrentamos opressões, construímos solidariedade e movimentos.
A forma como nos organizamos não é uma questão abstrata separada do projeto político. Ela determina a tomada de decisões, quais vozes são ouvidas, como as estratégias são formadas e se estamos construindo movimentos e lideranças — ou queimando ativistas por ganhos de campanha de curto prazo.
O movimento da neurodiversidade, incluindo demandas em torno de deficiência e cuidado, não são questões secundárias; são parte da nossa consciência de classe e da forma como organizamos lutas e solidariedade.
Notas
- Nick Walker, ‘Neuroqueer Heresies: Notes on the Politics of Neurodiversity’ (Weird Books for Weird People, 2021). ↩︎
- Devon Price, ‘Unmasking Autism: The Power of Embracing Our Hidden Neurodiversity ’ (Monoray, 2022). ↩︎
- Jodie Hare, ‘Autism Is Not a Disease’ (Verso, 2024). ↩︎
- Anne V. Kirby et al‘ Are Autistic Females at Greater Risk of Suicide’, https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/aur.3120, Wiley Online Library, vol. 17, Issue 5 pp. 898-905. ↩︎
- DCU Study,9/05/2024,https://tinyurl.com/2s3zx289 ↩︎
- Robert Chapman, ‘Empire of Normality: Neurodiversity and Capitalism’, (Pluto Press 2023). ↩︎
- Janine Booth, ‘Autism Equality in the Workplace: Removing Barriers and Challenging Discrimination’, (Jessica Kingsley 2016). ↩︎
- Martijn “McDutchie” Dekker’s blog, ‘A correction on the original of the term neurodiversity ’, 13/07/2023,https://www.inlv.org/2023/07/13/neurodiversity-origin.html ↩︎
- Nick Walker, ‘Neuroqueer Heresies: Notes on the Politics of Neurodiversity’ (Weird Books for Weird People, 2021). ↩︎
- Robert Chapman, ‘Empire of Normality: Neurodiversity and Capitalism’, pg5, pg137 (Pluto Press 2023). ↩︎
- Penny Duggan, The feminist challenge to traditional political organisations, 21/11/2023, https://internationalviewpoint.org/spip.php?article3186 ↩︎
- Jo Freeman(first published in 1972), https://www.jofreeman.com/joreen/tyranny.htm
↩︎