POUM: memória de uma organização revolucionária
A história e o exemplo do partido socialista antiburocrático do Estado Espanhol na Guerra Civil Espanhola
Foto: Ato da militância do POUM nos anos 1930. (Reprodução)
Tivemos o prazer de receber recentemente no Brasil a visita de Carles Riera, dirigente nacional da CUP e do movimento independentista catalão.
Além da discussão geral, onde teremos a publicação de artigos e entrevistas, uma das marcas foi o compromisso em reavivar a gloriosa memória do POUM (Partido Operário de Unificação Marxista), protagonista dos anos duros da guerra civil espanhola.
Quando concluímos esse artigo, recebemos a notícia do falecimento, aos quase cem anos de idade, da mais antiga e lendária militante “poumista”, Maria Teresa Carbonel.
Tanto na recordação da trajetória de Maria Teresa, quanto nas batalhas presentes da esquerda catalã, a figura do POUM surge repleta de curiosidades, fascinando as novas gerações.
Cabe ao público brasileiro conhecer melhor essa experiência, que podemos julgar como um dos “tesouros perdidos” do marxismo revolucionário do século XX.
Republicano, comunista e contra Stalin
Nos tumultuosos anos 1930, dentro da polarização entre o fascismo e as forças do movimento operário, uma batalha decisiva se desenvolveu no Estado Espanhol. O que alguns historiadores consideram a antessala da II Guerra, o confronto entre monarquistas e republicanos, foi o ápice dos conflitos de classe que o Estado Espanhol viveu a partir do começo dos anos 30, quando a vitória eleitoral da aliança de esquerda (Frente Popular) abriu uma nova situação política. Em 1936, diante da polarização, a extrema direita opta por um golpe militar, liderado por Franco. Começaria aí a página mais sangrenta da história espanhola.
Com forte tradição democrática e operária, o solo de combate espanhol foi fértil para características como a defesa radical da socialização, a autodeterminação de classe e o internacionalismo. A guerra civil eclodiu, como resposta ao golpe franquista de 1936, mobilizando os principais agentes políticos, levando como é sabido à política às suas últimas consequências: o confronto militar aberto.
O POUM nasceu da unidade orgânica entre dois setores comunistas dissidentes: a Esquerda Comunista da Espanha, liderada por Andres Nin e o Bloco Operário e Camponês de Joaquim Maurin. Na esteira da crítica à política oficialista dos PCs, importantes setores do movimento operário, sobretudo na Europa, organizavam correntes dissidentes e críticas aos ditames da URSS e do stalinismo. Em setembro de 1935, nascia assim o POUM, às vésperas da eclosão da guerra civil, com presença considerável nos chamados “países catalães”.
Nin fora uma figura destacada, membro da direção da Internacional Comunista, onde chegará a ser um dos primeiros secretários sindicais, destacado para organizar a frente internacional dos sindicatos ligados aos PCs do mundo todo. Ele e Maurin eram dirigentes da linha de frente dos primeiros anos do PC Espanhol.
Tomou parte na guerra civil com bravura: organizou milicias e brigadas internacionais que contaram com milhares de participantes – foi o segundo maior contingente de “internacionais”, atrás apenas dos organizados pelo PCE.
Um dos capítulos marcantes foi a defesa da democracia operária nos anos da guerra, aliados à FAI e a CNT(expressões políticas e sindicais dos anarquistas, respectivamente), chegando a mítica confrontação militar contra os stalinistas para defender as posições em Barcelona, quando as milícias do PC queriam tomar o prédio da empresa telefônica.
O POUM foi um partido da classe trabalhadora, avançado no âmbito de elaborações como a defesa da auto-determinação nacional e questões de gênero, presente de forma real e implantada em uma série de pontos estratégicos, com imprensa regular (Jornal “A Batalha”), relações internacionais, presença parlamentar e vida interna ativa. Não faltou ao encontro dos combates contra os fascistas de Franco e seus congêneres, sendo heroico em inúmeras batalhas centrais da Guerra Civil.
Um brasileiro assassinado pelo stalinismo
A repressão stalinista não tardou, sem nenhum pudor, debilitando inclusive o front Republicano.
Os combates de maio de 1937 – que opuseram a aliança entre poumistas e anarquistas (incluindo o lendário grupo “Os amigos de Durruti” aos verdugos stalinistas – levaram a uma sistemática operação planificada por Moscou para liquidar opositores, aproveitando que parte dos dissidentes internacionais estavam pegando em armas na Espanha contra Franco.
Disso derivou a “Operação Nikolai”, antecipando em parte a própria operação que assassinou Trotsky e deu cabo à vida de Andres Nin. Seu assassinato foi encoberto pela inteligência soviética para perder-se em meio aos conflitos gerais da guerra civil. Mas vasta documentação comprova que Nin, um dos maiores líderes da história do movimento operário foi morto aos 45 anos de idade, por ordem de Stalin.
Um fato pouco conhecido é que houve um brasileiro morto em circunstâncias parecidas. Aberto Besouchet, quadro político que vinha rompendo com PCB, que tomara parte na intentona de 1935 em Recife, embarcou para a solidariedade internacionalista na Espanha já com vistas a tomar contato com o POUM, com Nin e a esquerda revolucionária.
Sua morte ainda tem elementos difusos e incompletos, mas graça ao trabalho da família, de historiadores como Danis Karepovs e Angela Mendes de Almeida, se buscaram documentos e fontes que comprovam que foi assassinado por ser um dissidente político, em meio aos eventos que se aceleram depois de Maio de 1937.
Foi o “Capítulo brasileiro dos processos de Moscou”, expressão cunhada de forma inteligente por Karepovs.
Beber da fonte
A melhor homenagem aos combatentes do POUM é resgatar a sua memória, apoiando-se para as lutas do presente. E por óbvio, para formar militantes capazes de carregar o bastão do marxismo revolucionário para defender outro futuro.
Apesar das diferenças com Trotsky e o trotskismo, onde um debate mais profundo poderia enxergar equívocos e exageros de ambas as partes, o POUM se inscreve na história do marxismo revolucionário como uma peça central, como justamente pode ser recuperado em obras como a de George Orwell, “Homenagem a Catalunha”, ou no filme de Ken Loach “Terra e Liberdade”.
A controversa decisão de tomar parte no governo de La Generalitat, junto aos anarquistas e tendo Nin como ministro da justiça, levou a um afastamento definitivo de Trotsky do POUM. Se por um lado o argumento poumista era de reforçar as milícias a partir de um posto institucional, por outro, a favor de Trotsky se pode dizer que ele estava longe e isolado, dificultando uma análise concreta. E não tirou seu mérito em seguir desenvolvendo o necessário fio de continuidade do programa com a fundação, alguns anos depois, da IV Internacional.
Eu, particularmente, penso que foi um erro tático de Nin e do POUM, sem que justificasse contudo por parte de Trotsky uma ruptura definitiva. De qualquer feita é todo um debate teórico que merece ser feito com lucidez e serenidade, não sendo o objeto deste pequeno artigo. Fato é que os próprios trotskistas do Estado Espanhol defendem a memória de Nin e muitos são parte da fundação responsável por preservar a história do POUM.
Após a guerra, as décadas de repressão dura de Franco custaram alto para as esquerdas no Estado Espanhol. O POUM, apesar de algumas tentativas de reorganização no exterior, nunca voltaria a ter o mesmo vigor de sua breve história nas trincheiras da Guerra Civil, se dispersando. Militantes poumistas, contudo, mantêm viva a memória do partido através da Fundação Andrés Nin, que funciona com sede em Barcelona e publica regularmente.
Vale registrar que personagens ilustres do século XX tiveram lugar na história do POUM, como a “Capitã” laureada pelos republicanos, Mika Etchebehere, que depois seria militante da LCR francesa no exílio, mantendo seus princípios internacionalistas. Mika foi uma das mais destacadas capitãs de todo processo de guerra, dentro do Batalhão Lenin, com a presença de militantes internacionalistas. Outro nome basilar é o de que Francesc Tosquelles, marxista e pioneiro da psiquiatria moderna, chegando a ser professor e amigo do jovem Franz Fannon em Paris.
É preciso beber da fonte, porque o POUM, ancestral dos que lutam pelo socialismo e liberdade em 2025, quase um século depois da guerra civil, nos fornece muitos recursos para entender porque sempre falamos que viemos de longe!
Referências
Operació Nikolai. Barcelona: TV3-Televisió de Catalunya.
https://www.youtube.com/watch?v=zLAfmtlCgTU
Terra e Liberdade (em inglês: Land and Freedom), 1995, Ken Loach.
Livros
A REVOLUÇÃO ESPANHOLA 1931-1939 – Broue, Pierre, Editora Perspectiva(edição esgotada)
Homenagem à Catalunha, George Orwell, Edição Companhia das Letras (2021)
Canções
A Las Barricadas, versão Punk – “Los muertos de Cristo”
Fundação Andreu Nin
Artigo em memória de Maria Teresa Carbonell