A última revoada – sobre o fim do PSDB
A declaração de fusão do partido com o Podemos representa o fim da legenda que marcou a política burguesa das últimas décadas no país
Foto: PSDB/Reprodução
A Executiva Nacional do PSDB decidiu oficialmente pela fusão com o partido Podemos. Aprovada para ser chancelada em convenção no próximo mês de junho, a decisão ainda carrega interrogantes sobre o nome definitivo, o número e a tática eleitoral para 2026. Por agora, Marconi Perillo e Renata Abreu, os nomes principais da união, insistem no caráter colegiado e paritário que as novas direções terão no novo partido após a fusão.
O efeito imediato é a confirmação da ida de seu até então “presidenciável” e hoje principal quadro nacional, o governador gaúcho Eduardo Leite, para o PSD de Kassab. A notícia, derradeira da crise, foi oficializada em 9 de maio.
Leite segue o caminho de Raquel Lyra, governadora de Pernambuco, que recentemente abandonou o PSDB para migrar para o PSD. O efeito de longo prazo, a depender das negociações de como será feita a fusão com o Podemos, legenda fisiológica hoje comandada pela deputada paulista Renata Abreu, deve dar fim aos agora estertores do partido tucano.
Apesar do final melancólico, um apagamento gradual do partido vem sendo feito, fruto de uma crise interminável que se arrasta há quase uma década. Espremido pela clausula de barreira, sem lugar definido no quadro político nacional, o PSDB agonizante entra em fase terminal, abandonando formalmente o que restava de sua identidade.
Não por acaso, sua crise existencial data da própria crise da Nova República, que levou o país a uma verdadeira “montanha russa” de situações políticas nos últimos dez anos. O PSDB (e de alguma forma o PT) é um dos “partidos-símbolos” da Nova República, erguida sob a concertação que teve lugar no final da ditadura, entre a disposição de luta dos trabalhadores em ascenso e a necessidade das elites em se adaptarem para a nova situação política.
A história do PSDB não é só a história da “Revolução Passiva” à brasileira. É a história da própria decadência do pacto da Nova República. E dos novos arranjos entre as classes e seus representantes.
Ecos da crise orgânica
O PSDB está em queda livre há bastante tempo. Para entender sua crise, mais do que apenas traçar uma linha do tempo, é preciso compreender seu papel na articulação e consolidação do regime da Nova República.
Na primeira década do século XXI, o grande pensador marxista brasileiro Carlos Nelson Coutinho chegou a criticar o risco de “Americanização” da política brasileira. Sábio e com repertório teórico sólido, um dos principais intérpretes de Gramsci no país, Coutinho expressava aquele momento em que os dois grandes partidos do Regime, PT e PSDB, dominavam quase 80% da cena política e eleitoral. Isso configuraria o auge da que Coutinho chamou de hegemonia da “pequena política”, ou seja, dentro da estabilidade das decisões macroeconômicas, reinava a escolha sobre quem seria o melhor “gestor”.
Ele retomou essa definição em entrevista para Caros Amigos, em 2009.
Obviamente o Obama não é o Bush, mas ninguém tem ilusão de que o Obama vai mudar as estruturas capitalistas dos Estados Unidos, ou propor uma alternativa global de sociedade. Então, o que está acontecendo no Brasil é um pouco isso, dando Dilma ou dando Serra não vai mudar muita coisa não. Até às vezes desconfio que o Serra pode fazer uma política menos conservadora, mas depois vão me acusar de ter aderido a ele. Eu até faço uma brincadeira, dizendo que a política brasileira “americanalhou”, virou essa coisa… Então, neste sentido eu entrei no PSOL até com essa ideia de criar uma proposta realmente alternativa.
A referência era em relação à política estadunidense, bloqueada por muitos anos entre dois partidos, Democratas e Republicanos, que conservavam diferenças na aparência, mas mantinham um núcleo de interesses comuns. Nem lá, contudo, essa imagem se manteve. O antigo modelo desmoronou, da pior forma possível, com os tijolos da onda Trump caindo na cabeça dos líderes Democratas. Aqui também foi erodida a polarização que marcou quase duas décadas de política, entre uma centro-direita “responsável”, o PSDB e o PT como centro-esquerda, reformista e de apelo popular.
Não é objeto dessa reflexão entender a resiliência do PT, aliás, mais de Lula do que do PT. E sim afirmar as razões para a liquidação do polo tucano dessa equação.
A partir da derrota de Aécio em 2014, numa eleição apertada e polarizada, o PSDB conhece seu declínio em espiral. De lá para cá, ladeira abaixo. Mas como explicar tal decadência, sobretudo para quem viveu a política brasileira nos anos 1990, onde uma verdadeira miragem de estabilidade atingia o PSDB, a frente do governo, com uma bancada federal que beirava os 100 deputados, sólida hegemonia no centro econômico e político em São Paulo?
Tudo que é sólido se desfaz no ar, não é? Assim se desfez a miragem noventista dos tucanos, a ilusão na fortaleza da Nova República e por fim, o próprio legado do PSDB.
Para tanto, inspirados em Coutinho, voltamos a duas categorias do marxista sardo que fundam a explicação da tríade “ascensão, apogeu e queda” do PSDB: as noções de “Revolução Passiva” e “Crise Orgânica”.
O ascenso dos anos 80 abriu caminho para liquidação do regime militar. A força das greves operárias, da articulação de um novo bloco histórico, congregado no PT e nas ferramentas renovadas da classe trabalhadora da juventude e do campo e da cidade: CUT, UNE, MST e a ampla gama de movimentos sociais e populares daí decorrentes, teve seu ápice no movimento nacional e democrático, das Diretas Já, que mesmo derrotada a Emenda Dante logrou conquistas. Um novo regime, maiores liberdades democráticas, eleições presidenciais livres, assembleia nacional constituinte. O arranjo das elites para acomodar interesses e responder às demandas populares atravessou diversas fases: desde Tancredo a um débil governo Sarney. O PMDB galvanizou o voto oposicionista, num verdadeiro arrastão eleitoral em 1986, onde ganhou 22 estados da federação, sepultando o PDS como partido majoritário. Efêmero, como o plano econômico, o governo Sarney viveu uma crise, com uma nova onda de lutas e greves operárias, abrindo fissuras dentro do próprio partido. O declínio do Plano Cruzado resultou em altíssima inflação, arrocho salarial e explosão do tema da dívida.
A crise social e política tensiona o PMDB, levando a uma fissura com o setor mais ligado aos intelectuais de centro-esquerda, sobretudo o núcleo paulista. O grupo nucleado ao redor do MUP (Movimento de Unidade Progressista) dá um passo, com FHC, Covas e José Richa, a frente, fundando o PSDB em junho de 1988, com 47 deputados constituintes assinando a ata fundacional. Nomes como José Serra figuram como centrais nessa articulação.
Fundado com base no núcleo paulista, o PSDB logo arregimenta nomes de projeção nacional e ligados a intelligentsia modernizante, que não se alinhavam com a esquerda e o movimento operário, mas expressavam interesses de uma burguesia que tentava uma saída de “compromisso democrático” para atualizar seu papel no Brasil e num mundo, onde em breve ruiria o Leste e o Muro de Berlim, como um país condicionado por liberdades democráticas reprimidas por mais de 20 anos de regime militar. Dentro desse time entram nomes como Tasso Jeiressati, Pimenta da Veiga, Maria de Lourdes Abadia, Teotonio Villela, João Gilberto Lucas Coelho, entre outros.
O partido lança a ambiciosa candidatura de Mário Covas a presidente em 1989, num quadro de profunda fragmentação. Os resultados, ainda que à época tenha sido considerado “modestos”, com 11,5% dos votos, em quarto lugar na corrida presidencial, credenciam o PSDB para almejar disputar a hegemonia em breve. Covas no segundo turno apoia Lula. Interessante ver que, apesar de no programa “político”, os tucanos priorizarem as chamadas demandas democráticas, no nível econômico, já prefigura o programa da burguesia em aplicar o neoliberalismo à brasileira.
Após a tormenta com Collor, que “queimou fusíveis” para aplicar o plano neoliberal e deu tempo para os tucanos se prepararem, com FHC cumprindo um papel já no final do governo Itamar para soldar a partir de um ousado plano econômico a estabilidade necessária. O espelho reverso da hiperinflação e do desastre de confisco de Collor daria ao PSDB, apenas seis anos depois de sua formação a oportunidade de exercitar sua vocação para ser uma solução nos marcos da “revolução passiva” de Gramsci, retomado aqui em citação de Coutinho:
Podemos resumir do seguinte modo algumas das características principais de uma revolução passiva: 1) as classes dominantes reagem a pressões que provêm das classes subalternas, ao seu “subversivismo esporádico, elementar”, ou seja, ainda não suficientemente organizado para promover uma revolução “jacobina”, a partir de baixo, mas já capaz de impor um novo comportamento às classes dominantes; 2) esta reação, embora tenha como finalidade principal a conservação dos fundamentos da velha ordem, implica o acolhimento de “uma certa parte” das reivindicações provindas de baixo; 3) ao lado da conservação do domínio das velhas classes, introduzem-se assim modificações que abrem o caminho para novas modificações. Portanto, estamos diante, nos casos de revoluções passivas, de uma complexa dialética de restauração e revolução, de conservação e modernização.
Tal como em outros momentos da nossa história, o PSDB foi fundamental para “mudar” a estrutura política, sem que nada substancial mudasse. E dentro desse quadro, cumpriu o papel de introduzir o neoliberalismo de forma “coerente” e ir ajudando a disciplinar o PT nos marcos do capitalismo brasileiro.
Para fazer concretizar sua hegemonia, atraiu importantes nomes regionais, além de Tasso e Ciro no Ceará, como Lídice da Matta, eleita prefeita de Salvador em 1992, progredindo com Almir Gabriel no Pará, e entrando com força na disputa em São Paulo, diante da crise do quercismo, ainda na sucessão de Fleury, marcado pelo massacre do Carandiru e por ineficácia na lida com os interiores.
A vitória de FHC no primeiro turno, pegando carona no sucesso inicial da estabilidade prometida pelo Plano Real e na fragilidade estratégica da campanha Lula, que não responde aos eventos pós-1989, demora para entrar na campanha Fora Collor e tem postura ambígua durante a gestão Itamar, leva o PSDB e o Brasil a uma nova fase.
A correspondente paulista tem igual força, proporcionalmente falando: a vitória da chapa Covas e Alckmin inaugura toda uma “nova era”, a partir de então, ocupando o espaço vazio que vai da centro-esquerda à centro-direita, polarizando com um malufismo errático e com um PT enraizado, mas incapaz de responder à tumultuosa situação. SP retoma a hegemonia política do país, com FHC como ponte entre a era neoliberal que se fazia forte em todo mundo e os interesses da burguesia brasileira em busca de uma direção sólida.
Em seus quase quarenta anos de existência, o PSDB governou quase todos estados da federação. E se a explicação para sua ascensão e apogeu começa em Gramsci, a da queda também. Após o auge, se nota certa demora em se reposicionar quando Lula assume o governo e concretiza uma concertação capaz de acomodar as marcas “sociais” da era FHC, com a crítica ao neoliberalismo que arruinou seu capital ao longo da década de noventa. Lula mantem o tripé macroeconômico, o pagamento da dívida, e a aliança prioritária com os bancos, expulsando a ala mais radical do PT ocupando o posto hegemônico na viragem de uma segunda etapa da Nova República.
Podemos considerar a hipótese de que a queda dos tucanos se relaciona com a própria crise da Nova República, expressa em tela no descontentamento que levou às jornadas de Junho de 2013, com a linha de simulacro que a burguesia executou, na luta para tirar Dilma do governo, abrindo uma caixa de pandora que devorou seu próprio interlocutor privilegiado: o PSDB.
A crise orgânica que atingiu o Brasil, e não apenas o Brasil, mas boa parte das democracias liberais do mundo, quando depois da crise aberta em 2008, a extrema direita se posicionou como corrente de massas para capitalizar essas crises, teve como principal expressão partidária, o próprio fim do PSDB. Em Gramsci, crise orgânica nada mais é do que o esgotamento de dada hegemonia, quando há uma separação brusca (política ou eleitoral) entre representantes e representados.
O PSDB já não correspondia às três grandes mudanças operadas no Brasil: uma nova estrutura de classes, onde se avolumou o peso do Agro, deslocando o centro de gravidade de parte da burguesia do sudeste para o centro-oeste; a crise orgânica múltipla iniciada em 2008, que escalou na segunda década do século XX, dando terreno fértil para a extrema direita e o esgotamento dos projetos centrais do “bipartidarismo” da Nova República, ou seja os anos FHC e do PT.
Veremos isso melhor, examinando o auge e a decadência dos tucanos.
O “Príncipe” partido: FHC e os intelectuais da Nova República
Para compreender o papel histórico do PSDB, é fundamental refletir sobre suas principais lideranças e sobre o lugar que ocuparam na constituição da Nova República. Nesse sentido, nenhuma figura é tão emblemática quanto Fernando Henrique Cardoso.
Diferente do intelectual tradicional — aquele que se coloca como observador neutro ou cético diante da realidade, muitas vezes reproduzindo o senso comum das classes dominantes —, o intelectual “orgânico” é aquele que atua como dirigente político e formulador de um projeto coletivo, enraizado em uma classe social e em sua perspectiva histórica. FHC, nesse sentido, representou a forma específica pela qual parte da classe média intelectualizada brasileira, associada a setores da burguesia, buscou intervir no processo de transição do país após a ditadura.
Exilado durante a ditadura cívico militar, Fernando Henrique voltou ao Brasil trazendo consigo um olhar pessimista e pragmático. Essa geração via o intervencionismo estatal como herança do autoritarismo e associava o liberalismo econômico à superação da tutela militar. Daí construiu a ideia de que a abertura comercial, a valorização do real frente ao dólar e a inserção no mercado global seriam expressões da própria redemocratização. Propagou-se então a narrativa de que o Brasil da ditadura era “fechado”, “ineficiente” e “ultrapassado”, e que os produtos nacionais eram ruins por serem fruto de um regime autárquico e atrasado.
Essa visão orientou não só o discurso do PSDB, mas também suas políticas. O Plano Real, embora tenha estabilizado a economia e controlado a hiperinflação — o que beneficiou amplamente as classes médias e elites urbanas —, teve como contrapartida um forte ataque ao operariado e à indústria nacional. O fim do monopólio da Petrobras, a valorização do setor financeiro e a priorização dos serviços em detrimento da produção foram marcas do período. A paridade entre real e dólar gerou uma sensação artificial de prosperidade para setores médios, enquanto a economia aprofundava a desindustrialização e o desemprego estrutural.
Um dos elementos centrais da estratégia de FHC foi o de recolocar os militares em seus quartéis, subordinando-os ao poder civil e retirando-os da cena política como protagonistas. Esse gesto, importante e simbólico para a consolidação da Nova República, foi acompanhado por um processo silencioso, mas profundo, de reconversão conservadora da política econômica e social, com a naturalização das privatizações, da flexibilização trabalhista e do encolhimento do Estado como gestor direto de direitos.
O PSDB governou, portanto, com base em um pacto entre elites financeiras e uma tecnocracia liberal que via no Estado mínimo a superação do autoritarismo. Essa política foi acompanhada por terceirizações, cortes salariais e ataques sistemáticos aos direitos dos trabalhadores. O movimento operário, antes protagonista da luta contra a ditadura, perde centralidade. Em seu lugar, ganham força novos sujeitos políticos: o MST, reorganizando trabalhadores desocupados no campo, e a juventude estudantil, combatendo a privatização do ensino superior.
O marco desse processo foi a derrota da greve dos petroleiros, há exatos 30 anos atrás, em maio de 1995, quando FHC e o governo atuaram a “la Teatcher” para torcer o braço de uma das mais importantes resistências da classe operária.
Para buscar uma hegemonia, FHC se aliou a setores majoritários da oligarquia, expresso na aliança com Marco Maciel, colocando o PFL sob suas asas, além do parlamento. Assim, colocou em movimento a maioria fisiológica do congresso, a favor do seu projeto. Em momentos delicados, como o da aprovação da mudança constitucional favorecendo à sua reeleição, FHC contou com sua “tropa de choque” no Parlamento. O hoje esquecido Sergio Motta foi vital, porque era o operador político mais capaz para fazer circular no “baixo clero” as vontades majoritárias da política tucana e da coalizão do governo.
Diante das tensões sociais crescentes, o governo FHC incorporou políticas focais de assistência social, como o Vale Gás, a Bolsa Escola e outros programas coordenados por Ruth Cardoso. Essas iniciativas, embora importantes, marcaram a virada do paradigma dos direitos universais para o assistencialismo seletivo, destinado a públicos considerados “em situação de vulnerabilidade”. A própria política de Serra em relação aos medicamentos foi um ponto forte na “política social”.
O símbolo da vitória do neoliberalismo tucano está bem representado na famosa foto do Mercosul nos anos 1990, ao lado de líderes como Menem, Salinas de Gortari e Sanguinetti. Era o Brasil integrando-se ao capitalismo globalizado com um projeto que privilegiava commodities, desregulação e financeirização.
Por isso, FHC foi chamado por muitos de “Príncipe dos Sociólogos”: ele encarnava a figura do intelectual refinado, à maneira de Giddens, ao mesmo tempo pragmático e reformista — um verdadeiro “Tony Blair tropical”, como ironizou parte da crítica. Seu governo expressou de forma exemplar uma “modernização conservadora” — ou, em termos gramscianos, uma autêntica revolução passiva.
Compreender Fernando Henrique como intelectual é entender como se deu a hegemonia de um projeto político que propôs inserir o Brasil na ordem neoliberal global sem romper com os fundamentos estruturais da desigualdade. Um projeto elitista, que prometia estabilidade e consumo, mas que não mexia nos pilares do latifúndio, da concentração de renda ou da dependência externa. Ao contrário, os reforçava com novas roupagens.
Depois de 2013
O processo de queda do PSDB está diretamente ligado à crise da Nova República, quando o partido perde espaço, reduzindo sua influência e vendo a maior parte do seu eleitorado migrar para a extrema direita e o centrão.
O partido que governou os estados mais importantes da federação, chegou a quase 100 deputados na legislatura de 1999-2003, hoje se encontra agonizante, em meio ao impasse da crise de fusão com Podemos. Tem dois governadores, contando Leite que parece estar de saída, e apenas 13 deputados, uma bancada que em números se equivale ao PSOL, quando historicamente rivalizou com o PT.
Por mais que o centro visível da derrocada do PSDB se consolide após as jornadas de 2013, o processo de diluição tucana começou bem antes. Durante os governos do PT, o PSDB nunca conseguiu organizar uma oposição programática consistente. Isso se deve, em grande medida, ao fato de o PT ter incorporado pilares centrais da política econômica tucana, como o tripé macroeconômico (metas de inflação, câmbio flutuante e superávit primário), ao mesmo tempo em que expandiu os programas de assistência social, como o Bolsa Família, e implementou políticas públicas focais para os setores mais vulneráveis.
Ao se apropriar de parte significativa do legado do PSDB, o petismo reduziu o espaço político do partido tucano. A mudança estrutural na economia também jogou contra o PSDB: em 2008, os commodities passam a liderar a balança comercial, enquanto o setor financeiro acumula lucros recordes. O agronegócio e os bancos — setores que ganhariam ainda mais espaço na década seguinte — tornaram-se as novas âncoras do modelo econômico brasileiro. Paralelamente, o governo Dilma esvaziava ainda mais a base do PSDB ao estimular a criação do PSD de Kassab, ancorado no fisiologismo do “centrão”.
O ano de 2013, contudo, muda o tabuleiro político.
As manifestações de Junho colocam em xeque os fundamentos do pacto da Nova República. E o PSDB também se torna alvo: em São Paulo, estado sob domínio tucano há décadas, Alckmin é duramente criticado. A mobilização de massas abre uma nova conjuntura: milhões vão às ruas de forma independente, sem mediação dos partidos tradicionais, e o processo se espraia entre categorias como garis, rodoviários e servidores, além de milhares de coletivos auto-organizados que brotam das escolas, universidades e periferias. Uma nova cultura política se anuncia.
A repressão, contudo, vem logo. O governo Alckmin, com apoio do governo federal, age com truculência para conter a greve dos metroviários às vésperas da Copa do Mundo, demitindo dezenas de lideranças e ativistas. Ainda assim, as pesquisas mostravam o governo federal como o mais desgastado. O PSDB, interpretando mal os sinais, apostou que poderia vencer nas urnas em 2014 com Aécio Neves.
A derrota por margem apertada reforça uma falsa sensação de força. Mas o PSDB já não tinha mais o lastro social e político para capitalizar a crise da Nova República. Junho não era apenas uma crítica ao PT — era um esgotamento do regime como um todo. A candidatura Marina Silva, tragada no segundo turno e empurrada ao apoio a Aécio, foi um sinal disso. A novidade eleitoral de fato foi Luciana Genro (PSOL), que colocou em pauta, pela primeira vez em um debate presidencial, temas como a legalização do aborto, os direitos da população trans e as pautas LGBT. Ainda que sem força eleitoral, o PSOL começa a pautar o debate nacional por fora dos polos tradicionais.
Enquanto o PT tentava salvar o pacto da Nova República, parte da burguesia — já consciente da falência do PSDB — passou a construir outra resposta. Estruturalmente, a transição da burguesia industrial para uma hegemonia do agronegócio e do capital financeiro reconfigurava o bloco no poder. Com apoio da mídia, de frações do Judiciário e de setores do Estado, abriu-se a caixa de Pandora: surgem movimentos como o MBL e se inicia a mobilização em prol de uma saída reacionária. O que em 2013 foi mobilização difusa, radical e progressiva, em 2015 conhece seu simulacro: a direita toma as ruas com um discurso “antissistema”, mas profundamente conservador e ancorado na velha ordem.
O PSDB tentou, tardiamente, se reinventar. Com Doria, apostou em um perfil “fora da política”, o tecnocrata-empreendedor, e colheu sucesso em 2016. Mas o projeto não se sustentou. O partido não tinha base social renovada nem projeto nacional. Alckmin, seu nome mais longevo, começou a se desidratar. O golpe parlamentar contra Dilma e a ascensão de Temer representaram uma transição sem o PSDB no comando, mas com sua agenda: reformas, privatizações e desmonte de direitos sociais. No entanto, Temer, apesar de sua habilidade congressual, era um presidente sem carisma e profundamente impopular. A greve geral de 2017, que barrou a reforma da Previdência, mostrou os limites de seu governo.
Um setor da burguesia, então, começou a flertar com uma nova liderança: alguém com apelo popular, capaz de articular uma agenda liberal agressiva e, ao mesmo tempo, conectar-se com a base reacionária emergente — empresários, setores médios e parte da população empobrecida e ressentida. Foi nesse vácuo que Bolsonaro surgiu como improviso, e como figura viável, ao mesmo tempo.
Durante o governo Bolsonaro, Doria acreditava ser a saída modernizante de uma burguesia que se acreditava iluminista, com a temática da vacina contra o negacionismo da extrema direta. Porém, com todo apelo, não decolou. Não houve revival da “miragem dos anos 1990” e um setor da burguesia teve que se refugiar em Lula, “engolindo sapos” dos anos anteriores, num deslocamento de duas das suas figuras mais importantes: Alckmin, que seria o vice e Alexandre de Moraes, como garantista da tentativa de prolongar o pacto da Nova República, agora agonizante. Sem Dória e com seus quadros mais capazes hegemonizados pelo lulismo ressignificado, o prolongamento da Nova República custou um dos seus pilares: os tucanos estavam feridos de morte.
O bolsonarismo incorporou, de forma brutal, parte da base tucana. Em São Paulo, reduto histórico do PSDB, a eleição de Tarcísio de Freitas ao governo estadual em 2022 simbolizou a ruptura definitiva com o ciclo político inaugurado por Mário Covas em 1994. Pela primeira vez em quase três décadas, os tucanos foram derrotados em seu principal bastião político — não por uma alternativa progressista, mas por um candidato militar, outsider do estado, ungido por Bolsonaro e respaldado por uma aliança entre o agronegócio, os setores da segurança pública e o capital evangélico. O que antes era hegemonia tucana, ancorada em um discurso de modernização racional, tecnocrática e liberal moderada, cedeu espaço a um projeto ideológico mais agressivo, antiliberal no plano político, mas profundamente neoliberal na economia. O PSDB, sem projeto, sem base popular e sem imaginação histórica, não apenas perdeu São Paulo — perdeu o lugar de referência no centro-direita brasileira. Tarcísio representa não só a continuidade de políticas econômicas liberais, mas também a substituição simbólica dos tucanos como mediadores da elite paulista. Com ele, o PSDB deixa de ser protagonista da política nacional para tornar-se um apêndice irrelevante no novo bloco de poder da extrema-direita.
O capítulo melancólico mais recente foi a derrota na capital paulista, já perdida com a morte de Bruno Covas, onde a tentativa com Datena deu errado. Uma votação insignificante e sequer um vereador eleito, na outrora “cidade-santuário” dos tucanos.
Não haverá fênix tucana
Mesmo que se mantenha algum adereço, com fins de aplacar algum núcleo interno nostálgico, nas negociações entre Podemos e PSDB, o fato é que o PSDB enquanto tal não existe mais.
O que não está nítido é até que ponto estaríamos nos “estertores da Nova República”, e quanto tempo isso duraria. Lula e o PT, como contraparte da Nova República se mantém firmes, ao menos até a próxima eleição. A debilidade do atual governo e a idade avançada de Lula são elementos a serem considerados, para os próximos capítulos, em 2026 e além dele.
A crise do bolsonarismo – cercado política e judicialmente – demonstra que não há saída fácil para os setores mais à direita. A hipótese Trump – que voltou ao poder depois de derrotado eleitoralmente – parece não se aplicar ao Brasil, por agora.
Tarcísio busca herdar o espaço vazio, em atitude complementar e concorrente com Bolsonaro, já tendo conquistado terreno em SP. O PSD é outro “player” que herda votos e quadros tucanos, e sinaliza ao governo e à oposição, aos setores mais liberais e ao centrão. As novas federações, como a unidade entre PP e União Brasil, ou os diálogos entre MDB e Republicanos, mostram que terão mudanças no cenário dos partidos.
Estamos num impasse que se alimenta e a recém (re)começa. O PSDB parece figurar como uma página virada.