Por uma esquerda que não teme dizer seu nome
Uma contribuição ao debate programático do PSOL
Foto: Fernando Gomes/ALRS
Nestes tempos duros, de crise da esquerda e crescimento da extrema direita no mundo todo, a busca pela construção de uma esquerda consequente ou radical, no sentido que Marx deu ao termo, é uma tarefa estratégica. Afinal, existimos para remendar as feridas causadas pelo sistema ou para atacar o sistema pela raiz?
Esta pergunta é fundamental em um momento em que a força da extrema direita tem levado a um discurso de capitulação que se conecta facilmente ao senso comum de esquerda: temos que unir todos numa frente ampla contra o fascismo e para isso é preciso rebaixar nosso programa, pois o socialismo e a revolução não estão na ordem do dia. Entretanto, quanto mais a esquerda se deslocou para o centro, mas a extrema direita se fortaleceu. Basta olhar para o Brasil e para o mundo para comprovar essa afirmação.
Como escreveu Roberto Robaina em A ascensão da extrema direita e o freio de emergência (editora Movimento): “Diante da ameaça fascista, é imperativo defender a mais ampla unidade de ação, incluindo alianças táticas com a burguesia liberal e em defesa das liberdades democráticas. Mas a prioridade deve ser a organização da classe trabalhadora, buscando impulsionar a unidade com setores camponeses e populares, hegemonizando, com um programa de mudanças estruturais, os setores médios, o mundo da arte, da ciência, e todos que não aceitam o negacionismo climático, o genocídio na Palestina e podem ser parte de um muro antifascista”. (pág. 138)
Caminhamos no fio da navalha. Promover a unidade contra a extrema direita e, ao mesmo tempo, ser radical passa também por definir, afinal de contas, o que é ser de esquerda, o que é inegociável, o que compõe a nossa identidade. Esta não é uma questão apenas de princípios, mas é também fundamental para entender qual a nossa função, por que existimos enquanto partido e de que forma podemos tentar mover o descontentamento com o estado do mundo em nossa direção.
A extrema direita cresce por que ela oferece uma solução fácil – e falsa – para as crises multifacetadas que sufocam a humanidade. Diante da exclusão, que relega à indignidade uma parcela cada vez maior daqueles que ocupam a parte de baixo da pirâmide social, a solução apresentada é o “salve-se quem puder”. Cada um empreendendo a si mesmo, quem trabalhar duro vai ter mérito e vencer. Quem ficar para trás é porque não se esforçou o suficiente. A raiva diante de um Estado totalmente insuficiente em suas políticas públicas transforma-se, pela voz da extrema direita, em uma defesa do individualismo e da meritocracia. A frustração decorrente da corrupção generalizada e dos privilégios dos altos escalões da política e do Judiciário torna-se uma anti-institucionalidade reacionária.
No livro que leva o título deste artigo, publicado em 2012 e reeditado como um novo livro em 2025 (Editora Planeta), Vladimir Safatle propõe uma resposta para a pergunta O que é ser de esquerda? Sua resposta: É defender a igualdade radical e a soberania popular. Enquanto os políticos tradicionais em geral definem a política como a arte da negociação e do consenso, Safatle nos apresenta o “inegociável”.
Igualdade, diferença e liberdade
“Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres.” Esta é uma famosa frase atribuída a Rosa Luxemburgo que, embora não haja registro da sua existência nos escritos da revolucionária polonesa, é totalmente afim ao seu pensamento e uma bela síntese da conexão entre igualdade, diferença e liberdade. A igualdade social não implica em eliminar as diferenças humanas e a liberdade só pode ser verdadeira em uma sociedade onde não haja diferença hierárquica que implique em submissão. Caso contrário as diferenças serão vividas como desigualdade e dominação. Como escreve Safatle, “só uma sociedade radicalmente igualitária é livre” e “ninguém pode ser livre em uma sociedade não livre”.
Como explicou Marx, quando o capitalismo emergiu, os produtores foram transformados em trabalhadores assalariados e essa transformação foi, ao mesmo tempo, uma libertação da servidão e da coação nela contida, mas por outro lado houve a expropriação de todos os seus meios de produção, especialmente a terra. E a coação seguiu, agora disfarçada de igualdade jurídica para vender a sua força de trabalho ou para ser “empreendedor de si mesmo”, trabalhando muitas horas em escalas 6X1 (ou até piores) – mas o tempo de trabalho, por mais longo que seja, nunca é suficiente para garantir uma vida digna.
Quando escolhemos o nome do nosso partido – Partido Socialismo e Liberdade –, afirmamos um conceito fundamental que orienta nossa luta e o tipo de sociedade que almejamos construir. Não há socialismo, muito menos comunismo, sem liberdade, igualdade social e respeito às diferenças humanas. O que é, então, uma sociedade igualitária? Safatle recupera um conceito marxista fundamental: a autogestão da classe trabalhadora e o fim da hierarquia e separação entre o trabalho intelectual e o trabalho manual. Quem produz também tem que decidir. Essa é uma questão basilar na construção de uma sociedade verdadeiramente igualitária.
“Essa é a questão mais intocada de nossas sociedades capitalistas (acrescento eu, das que se dizem comunistas também). No entanto, ela é uma das chaves fundamentais para a luta pela igualdade radical. Trata-se da luta por reconhecer a igualdade das inteligências no trabalho. Sociedades que criam dispositivos de autogestão da classe trabalhadora ou de participação conjugada da classe trabalhadora no processo de gestão de empresas, corporações e espaços de produção têm melhores condições para realizar administrações voltadas ao interesse coletivo e ao enriquecimento coletivo.” (pág. 37)
Reconhecimento e igualdade
A luta pela igualdade também se expressa naquilo que muitos chamam de “lutas identitárias” e que eu prefiro definir, como faz Nancy Fraser, como “lutas por reconhecimento”. O reconhecimento, segundo Fraser, expressa a forma como a sociedade reparte o respeito e a estima, as marcas morais de pertencimento. Está relacionado com as hierarquias dos status sociais. Mulheres, negritude e comunidade LGBTQIAPN+ enfrentam a discriminação patriarcal, branca e heterocisnormativa diariamente. Nosso status social sempre foi inferior ao dos homens, brancos e (aparentemente) heterossexuais.
Em O velho está morrendo e o novo não pode nascer (Autonomia literária, 2020), Fraser explica que o bloco hegemônico anterior a Trump, designado como “neoliberalismo progressista”, trazia “um ethos de reconhecimento superficialmente igualitário e emancipatório. No centro deste ethos estavam os ideais de diversidade, empoderamento das mulheres, direitos LGBTQ+, pós-racialismo, multiculturalismo e ambientalismo. Esses ideais foram interpretados de uma maneira específica e limitada, totalmente compatível com a ‘Goldman Sachsificação’ da economia dos EUA”. (pág. 39)
Como bem aponta Fraser, o programa do neoliberalismo progressista se diferencia do seu equivalente reacionário justamente em uma agenda “humanizadora” do sistema. Ambos defendem a ordem e os interesses do capital, mas no caso dos reacionários essa ordem deveria ser racista, patriarcal, homofóbica, anti-imigrante e pró-cristã (numa concepção bem particular de cristianismo).
As lutas por igualdade para as mulheres, negritude e LGBTQIAPN+ não podem estar desconectadas da luta anticapitalista, como se houvesse uma ascensão possível para estes grupos com um todo dentro deste sistema. Não há, a não ser para alguns poucos, cuja ascensão pode servir de inspiração para uma luta universal contra o capitalismo e as opressões ou pode apenas reforçar o discurso meritocrático de que quem se esforça bastante “chega lá”. As lutas por reconhecimento e por redistribuição precisam caminhar juntas.
Como bem define Safatle: “É como se devêssemos aceitar que rupturas na ordem capitalista estão fora de discussão, que a luta pela realização concreta de macroestruturas de proteção não será mais o horizonte e que agora a luta é por criar um capitalismo mais humano, mais diverso, com representantes de setores vulneráveis em comitês de diversidade de grandes empresas, em publicidade de automóveis vendidos por ativistas, em espaços de celebração da cultura (ou de cultura de celebração) e em capas da Forbes. Não, isso não é uma vitória. É uma capitulação.” (pág. 50)
A luta pela igualdade e a soberania popular
O Congresso Nacional é um dos palcos no qual se desenvolve, neste momento, a luta contra a desigualdade econômica. Ao derrubar o aumento do Imposto sobre Operações Financeiras, os parlamentares deram uma sinalização contundente no sentido de que não estão dispostos a tolerar nenhum movimento do governo, por mais tímido que seja, no sentido de tributar mais fortemente o capital. Arthur Lira, relator do projeto que prevê isenção de Imposto de Renda para rendimentos até R$ 5 mil, segue sem dar o parecer, deixando este compromisso de campanha do presidente Lula irrealizado. A tributação das grandes fortunas, medida presente da Constituição, segue até hoje pendente de regulamentação.
Esta é a realidade do Congresso, uma casta que vive dando as costas para os interesses da maioria do povo e está apenas preocupada em reproduzir seus próprios mandatos e servir aos interesses dos ricos. A soberania popular vem sendo sistematicamente violada pelo Parlamento. Alguém acredita que, sendo corretamente informada, a maioria da população não apoiaria medidas para tributar mais fortemente os ricos e aliviar os pobres?
A democracia burguesa trata o povo como incapaz de decidir questões que seriam supostamente técnicas. Essa é uma falácia. Quem melhor do que os que vivem na pele os problemas econômicos para decidir quem deve pagar a conta? A inteligência prática dos efetivamente envolvidos nos processos cotidianos, como educadores, trabalhadores da saúde, assistentes sociais, é muito mais eficaz para definir políticas que efetivamente funcionem. Por exemplo, se o governo ouvisse a rede do SUAS – Sistema Único de Assistência Social –, jamais proporia as mudanças em curso no BPC, que vão dificultar o acesso a este benefício para as pessoas mais vulneráveis. A tecnocracia, e parte da casta política, coloca os interesses do capital na frente dos interesses do povo. Isto não é uma democracia real.
Vivemos em um sistema irracional, e a extrema direita se aproveita desta irracionalidade para defender suas pautas reacionárias e autoritárias. A esquerda que não teme dizer seu nome, isto é, a esquerda radical e coerente, não pode ser conivente com a casta política que engana o povo dizendo que é possível uma vida melhor preservando este sistema. Capitalismo é sinônimo de desigualdade brutal, de submissão da maioria aos interesses da minoria que comanda e detém o capital. Enfrentar o sistema político e sua lógica excludente impulsionando a mobilização popular é o único caminho para a conquista de uma verdadeira soberania popular.
O caminho, portanto, não é feito de etapas estanques. Ao mesmo tempo em que lutamos contra a extrema direita – e fazemos unidade de ação com todos os que estejam dispostos a enfrentá-la –, partindo de um programa de transição que incorpore as necessidades mais básicas do povo, afirmamos uma estratégia revolucionária ecossocialista, de mobilização e enfrentamento com os interesses do capital que ameaça a humanidade e a natureza, da qual somos parte.