A verdadeira personalidade de Lenin
Em 1937, o revolucionário belga escreveu sobre os últimos momentos da vida de Lenin e as angustias para com os males do regime que fundara.
Morreu esgotado polo seu labor sobre-humano a 21 de Janeiro de 1924. Havia por volta de dois anos que a doença o imobilizava na sua cadeira e tinha uma terrível expressão de angústia, de que algumas fotografias da época dão prova. Mas a sua inteligência continuava acordada e, de quando em quando, manifestava-se em potentes labaredas. Nesses momentos exprimia a sua grande ansiedade. Os males do regime que fundara, e que via com grande lucidez, angustiavam-no. Não há mada mais trágico que a história das suas últimas lutas contra a doenças, com o pensamento fixo em poder trabalhar novamente, em procurar soluções e aliados, em conter as ameaças. E, sem dúvida nenhuma, se Lenin tivesse vivido mais alguns anos, o rumo da revolução ter-se-ia visto profundamente modificado em sentido favorável.
É indubitável que a sua grande autoridade e a sua vasta inteligência teriam agido eficazmente no curso das coisas. Talvez tivesse podido orientar o Estado socialista para a inteligência com os camponeses e moderar assim, ou até ultrapassar, as tendências reacionárias do interior. Talvez tivesse sucumbido no longo prazo neste combate, como sucumbiu outra inteligência igual à dele. A História percorre o caminho servindo-se, segundo as circunstâncias, dos homens de gênio e dos medíocres. Depois de Napoleão, criou o homem de Sedan. O acaso e o inexorável vão misturados. A sorte das pessoas depende do acaso, a resultante social do inexorável, e este inexorável arrasta e quebra o acaso… tantas causas econômicas e históricas tenham contribuído para o desgaste da Revolução que se Lenin tivesse vivido mais tempo, provavelmente teria corrido uma sorte semelhante à dos seus companheiros das grandes jornadas revolucionárias. Mas o regime seria melhor.
Esse ponto de vista não é, de maneira nenhuma, pessimista. Para dominar a natureza, cumpre que o homem a perceba e se adapte a ela. Para construir o para-raios, cumpre saber que o raio vai cair e como vai cair. Não há que contar com as orações para o impedir. Para transformar a sociedade e discernir as suas vias, cumpre obedecer a necessidade mais forte, que é a necessidade econômica. Assim, na ciência marxista, Marx e Engels, investigadores honestos, ao atingirem o mecanismo moderno da produção, concluíram na necessidade do socialismo, aspiração das massas a um maior bem-estar e a uma vida mais justa, passando assim da utopia à ciência. Com Lenin, o socialismo passou da ciência à ação.
Pouco antes de Outubro, as circunstâncias simplificavam os problemas. A guerra reduzia tudo a algumas alternativas do gênero de ser ou não ser. Mas necessitava-se valor para o ver e, após tê-lo visto, agir audaciosamente. Mas já não se podia ser nem viver como no passado. Cumpria era romper com ele. E isto costuma ser o mais difícil para os homens, que são, via de regra, prisioneiros das suas rotinas e das suas ilusões. Os escritos de Lenin revelam grandes riquezas. Mas nunca tiveram tanto valor como nesses seis meses do ano 1917 em que ele foi o único que se orientou com passo certo no meio de acontecimentos tão caóticos, compreendendo que se vivia uma situação instável, entre duas ditaduras igualmente possíveis, a da reação e a da classe operária e que, portanto, não cabia mais eleição que entre a ação e o desastre. O critério dele não era fruto da paixão revolucionária, que poderia ter sido cega, como outra paixão qualquer; mas da convicção do político e do economista, fundada na análise cotidiana de uma dada situação.
Lenin levava tudo em conta: o estado da produção, as mudanças, as intenções e as possibilidades da burguesia, a mentalidade dos generais e dos advogados que estavam ainda no poder, as aspirações das massas na cidade e no campo. E, afinal, concluiu que chegara a hora. Estado refugiado numa cabana da Finlândia, na beira do mar, a inícios de Outubro, escreveu para o Comitê Central do Partido:
“Caros camaradas: os acontecimentos fixam-nos tão netamente o nosso dever que a espera resulta um crime. O movimento camponês desenvolve-se com uma força crescente. As tropas professam-nos uma simpatia cada vez mais acesa. Em Moscou podemos contar com 99% dos votos dos soldados: as tropas finlandesas e a frota som contra o Governo. Unidos aos socialistas revolucionários de esquerda, temos a maioria do País… nestas condições, esperar resulta um crime…”.
E ainda:
“A vitória é certa. Há uma percentagem elevadíssima de possibilidades de a obtermos sem efusão de sangue”.
Vi-o, em várias ocasiões um bocado mais tarde, na fase mais ardente da vida dele. Ninguém era mais singelo do que ele. Ninguém ficava mais longe de tudo o que fosse armar-se em homem de gênio que de modo verossímil era, o grande chefe, o fundador do Estado soviético. Todas estas palavras ditas a respeito dele teriam-no indignado. Quando se agravavam os desacordos no partido, a sua maior ameaça era:
“apresento a minha demissão ao Comitê Central, volto a ser um simples militante e a defender o meu ponto de vista na base”…
Levava ainda os seus velhos fatos de emigrante na Suíça. Quando se quis festejar o seu 50 º aniversário, quase se zangou: e só esteve 20 minutos na velada íntima que celebraram alguns companheiros.
Quando Kámenev lhe falou de editar as obras dele completas, contestou-lhe com certa contrariedade:
“Para quê? Tem-se escrito muita coisa em trinta anos! Não vale a pena!”
Não se tinha por infalível, e de não era tal. Cometeu grandes erros. E, amiúde, no curso da sua mais justa ação, uma parte de erro não diminuía a sua extraordinária perspicácia. Em conjunto, a sua obra fica como um novo ponto de partida na história, como um magnífico exemplo de desinteresse e de devoção à classe operária, como uma aplicação vigorosa do pensamento marxista à luta de classes. Para aí é que nós olhamos hoje como para uma luz, e não para os seus lúgubres restos, embalsamados sob um monstruoso mausoléu…
1937
Fonte: https://www.marxists.org/portugues/serge/1937/mes/personalidade-ga.htm