A miragem de um Estado palestino

A miragem de um Estado palestino

O reconhecimento por um número crescente de países de uma entidade hipotética chamada “Estado da Palestina” é positivo em termos de impacto simbólico. No entanto, os significados desse reconhecimento variam consideravelmente ao longo do tempo

GIlbert Achcar 12 ago 2025, 19:10

Publicado em CADTM

Os países que reconheceram o Estado da Palestina após sua proclamação pelo Conselho Nacional Palestino, reunido em Argel em 1988, na sequência da grande Intifada popular nos territórios ocupados em 1967, apoiaram o que era considerado na época um episódio importante na história da luta palestina. Foi assim que foi percebido, de fato, mesmo que a proclamação fosse, na verdade, um desvio da Intifada de seu curso inicial. Yasser Arafat e seus colaboradores à frente da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) buscavam perpetuar a ilusão de um “Estado palestino independente”, colocando a pressão popular a serviço de um processo de negociação diplomática patrocinado pelos Estados Unidos. Assim, a proclamação de 1988 foi imediatamente seguida pela vergonhosa aquiescência de Arafat à condição que Washington lhe impôs para negociar com ele. Ele declarou publicamente com grande alarde: “Renunciamos total e absolutamente a todas as formas de terrorismo” (declaração reiterada em uma coletiva de imprensa em Genebra em 14 de dezembro de 1988) [em outras palavras, Arafat aceitou qualificar como terrorismo as diversas iniciativas de resistência empreendidas no passado – red.].

A proclamação de um Estado na época tinha, no entanto, o caráter de um gesto de desafio e foi apoiada pelos países que efetivamente defendiam o direito do povo palestino nos territórios de 1967 de se libertar da ocupação sionista. Ao todo, 88 países reconheceram o recém-proclamado Estado da Palestina, incluindo quase todos os países árabes (com exceção do regime sírio de Assad, que era um inimigo ferrenho da liderança palestina), a maioria dos países da África e da Ásia (com algumas exceções naturais, como o regime do apartheid na África do Sul, aliado de longa data do Estado sionista) e os países do bloco oriental dominado pela União Soviética. Em uma divisão planetária notável, nenhum país do bloco ocidental, liderado pelos Estados Unidos, reconheceu o Estado da Palestina na época, com exceção da Turquia, nem nenhum país da América Latina, com exceção de Cuba e Nicarágua, os dois países rebeldes contra a hegemonia de Washington.

Os reconhecimentos continuaram após 1988, abrangendo progressivamente os outros países da Ásia e da África — com algumas exceções (Camarões e Eritreia, por razões opostas) — e da América Latina. Os primeiros Estados-membros da OTAN a reconhecer o Estado da Palestina – além da Turquia e dos países da Europa Oriental que antes estavam na órbita da União Soviética e, portanto, o haviam reconhecido antes de aderir à aliança – foram a Islândia em 2011 e a Suécia em 2014. Outros Estados-membros da OTAN só seguiram esse caminho quando a magnitude da guerra genocida de Israel na Faixa de Gaza se tornou evidente. A Noruega, a Espanha e a Eslovênia reconheceram o Estado da Palestina em 2024, seguidos pelo resto dos países da América Latina (o mais recente sendo o México este ano).

Até que o presidente francês anunciasse sua intenção de reconhecer oficialmente o Estado da Palestina em setembro próximo, quando a Assembleia Geral da ONU se reunir, todas as potências do Ocidente geopolítico – em particular os Estados Unidos, a Alemanha, a Grã-Bretanha, Itália, Japão e Austrália – recusaram-se a fazê-lo e ainda hoje se recusam, invocando vários pretextos, em particular o argumento muito hipócrita de que esse reconhecimento poderia prejudicar os esforços de paz. [Este artigo foi escrito antes do anúncio condicional de Keir Starmer de que o Reino Unido também reconheceria o Estado da Palestina em setembro, a menos que Israel aceitasse um cessar-fogo e uma melhoria da situação em Gaza.] A pressão pública está aumentando nesses mesmos países em relação ao genocídio em curso em Gaza, num momento em que o caráter deliberado do crime atingiu seu auge com a atual fome organizada da população de Gaza. Isso pode levar a novos reconhecimentos e já levou a uma pressão crescente sobre Israel para que permita a entrada de ajuda alimentar na Faixa de Gaza.

Na realidade, aqueles que esperaram que Israel cometesse as atrocidades em curso à vista de todo o mundo antes de reconhecer o Estado da Palestina estão principalmente tentando esconder sua cumplicidade tácita com a ocupação sionista da Cisjordânia e da Faixa de Gaza durante quase sessenta anos. O despertar de última hora do primeiro-ministro britânico e do chanceler alemão, e sua decisão de participar do lançamento aéreo de ajuda na Faixa de Gaza, realizado pela Jordânia e pelos Emirados Árabes Unidos – uma decisão condenada por organizações humanitárias como um ato simbólico inútil – merecem apenas desprezo, tanto mais que os dois países da OTAN mencionados estão entre os mais importantes colaboradores militares do Estado sionista depois dos Estados Unidos.

O que deveria ser óbvio é que os esforços atuais para estabelecer um Estado palestino, como a conferência realizada em Nova Iorque sob o patrocínio da França e da Arábia Saudita, têm agora um significado muito diferente do reconhecimento de 1988. Naquele ano, o povo palestino viveu as melhores condições políticas desde a Nakba de 1948. A Intifada despertou a simpatia popular internacional e provocou uma grave crise moral na sociedade e no exército israelenses. Ela criou as condições para o retorno ao poder do Partido Trabalhista Sionista e sua conclusão dos acordos de Oslo com a liderança de Arafat, o que era inimaginável antes dessa época, embora os referidos acordos incluíssem condições profundamente injustas que Yasser Arafat aceitou por pura ilusão.

No entanto, o que parecia ser um Estado hipotético, mas viável em 1988, e mesmo em 1993 (embora o processo de Oslo estivesse fadado ao fracasso), é hoje menos realista do que uma miragem no deserto. É provável que um décimo ou mais da população da Faixa de Gaza tenha sido morta, e pelo menos 70% dos edifícios do enclave tenham sido destruídos, incluindo 84% dos edifícios da parte norte e 89% dos edifícios de Rafah (de acordo com uma recente pesquisa geográfica realizada pela Universidade Hebraica de Jerusalém). Então, de que tipo de Estado palestino eles estão falando? Os mais generosos entre eles o veem como regido pelo acordo de Oslo, que resultou em uma Autoridade Palestina sob tutela israelense, cuja “soberania” nominal é limitada a menos de um quinto da Cisjordânia, além de Gaza. Outros consideram uma entidade ainda mais limitada, após a reconquista por Israel da maior parte da Faixa de Gaza e a expansão dos assentamentos sionistas na Cisjordânia.

As condições definidas pelo consenso nacional palestino em 2006 (o “documento dos prisioneiros”) como requisitos mínimos para o estabelecimento de um Estado palestino independente – ou seja, a retirada do exército e dos colonos israelenses de todos os territórios palestinos ocupados em 1967, incluindo Jerusalém Oriental; a libertação de todos os prisioneiros palestinos detidos por Israel; e o reconhecimento do direito de retorno e de indenização para os refugiados palestinos — foram relegadas ao esquecimento como reivindicações “extremistas”, embora tenham sido originalmente concebidas como condições mínimas, expressando uma vontade de compromisso. Na verdade, qualquer entidade palestina que ignore essas condições básicas não será nada mais do que uma versão renovada da vasta prisão a céu aberto na qual o Estado sionista confina o povo palestino nos territórios de 1967, em uma área geográfica cada vez mais reduzida e com uma população que continua diminuindo como resultado do genocídio e da limpeza étnica.

Gilbert Achcar, professor da SOAS, Universidade de Londres.
Tradução pelo autor de seu artigo semanal no jornal em língua árabe Al-Quds al-Arabi, com sede em Londres. Artigo publicado em 29 de julho de 2025.

Fonte: https://alencontre.org/moyenorient/le-mirage-dun-etat-palestinien.html

Traducão: Alain Geffrouais


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