“Os jovens estão rejeitando o capitalismo e o genocídio” – Entrevista com Charlie Muller sobre a juventude do Democratic Socialists of America

“Os jovens estão rejeitando o capitalismo e o genocídio” – Entrevista com Charlie Muller sobre a juventude do Democratic Socialists of America

Entrevista com Charlie Muller, ativista da juventude do DSA, sobre as perspectivas do movimento estudantil nos Estados Unidos, os desafios da luta contra o governo Trump e a importância do internacionalismo

Nessa semana, nossa coluna apresenta entrevista com Charlie Muller, ativista da juventude do DSA (YDSA). A entrevista foi realizada após Convenção Nacional da YDSA, realizada no início de agosto. Na conversa, Charlie aborda o significado desse encontro, as perspectivas do movimento estudantil nos Estados Unidos, os desafios da luta contra o governo Trump, e a importância do internacionalismo.

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FLCMF: Charlie, obrigado pela entrevista. Você pode começar nos contando sobre a Convenção Nacional da Juventude do DSA e suas principais conclusões?

Charlie Muller: Young Democratic Socialists of America (YDSA) é a ala estudantil e de juventude do Democratic Socialists of America (DSA), a maior organização socialista dos EUA. Isso faz da YDSA a maior organização de juventude socialista do país, com núcleos em centenas de campi em todo o território nacional.

Neste agosto, realizamos nossa convenção nacional em Chicago, onde centenas de delegados se reuniram para debater os rumos do nosso movimento, como avançar na organização nos campi e além deles. Também elegemos uma nova direção nacional.

O movimento estudantil hoje é fortemente marcado pela luta pela Palestina. Nos últimos dois anos, esta geração foi moldada pelo movimento de solidariedade à Palestina, assim como pela resistência a Trump e ao programa de extrema direita que ataca estudantes, imigrantes e trabalhadores. As universidades tornaram-se um espaço central dessa luta.

Dentro da YDSA, estudantes estão se organizando em várias frentes. Um desenvolvimento importante tem sido a construção de um movimento sindical nos campi, não apenas em solidariedade a professores e funcionários, mas também enquanto trabalhadores estudantis. Nos Estados Unidos, estudantes desempenham funções essenciais em moradia, serviços de alimentação e outras áreas da vida universitária. Nos últimos anos, trabalhadores estudantis organizaram sindicatos e lideraram lutas importantes por salários, melhores condições de trabalho e gestão democrática das universidades.

Um exemplo marcante foi a greve do Sindicato de Trabalhadores Estudantis da Universidade de Oregon, representando quase 4 mil estudantes de graduação. Eles exigiram melhores salários, proteção contra assédio e direitos políticos mais amplos para todos os estudantes. Obtiveram conquistas significativas em seu primeiro contrato, mas também aprenderam que o movimento sindical, por si só, não é suficiente para alcançar demandas políticas mais amplas.

Na nossa convenção, um dos principais debates foi sobre os Diretórios Centrais de Estudantes (DCEs), isto é, organizações amplas e de massa de estudantes, comuns em outros países, mas raras nos EUA. Na esteira do movimento dos acampamentos pró-Palestina, alguns campi experimentaram formas de DCEs, conquistando vitórias como o desinvestimento de fabricantes de armas na San Francisco State University e mobilizações contra cortes em programas de Diversidade, Equidade e Inclusão na Virginia Tech.

Outra proposta importante que adotamos foi a campanha por campi-santuário: manter o ICE fora das universidades, defender a liberdade de expressão, a liberdade acadêmica e o direito de protestar. A YDSA se unificou em torno da luta contra os ataques de Trump aos imigrantes e em defesa da Palestina.

No fim, a convenção rejeitou a proposta de buscar formalmente a construção de DCEs em escala nacional. Muitos sentiram que isso subestimava o papel de uma organização socialista. Os defensores da proposta argumentaram que os DCEs são essenciais para unir centenas ou milhares de estudantes em lutas comuns, enquanto os socialistas podem exercer um papel de liderança dentro deles.

A convenção também reafirmou a identidade da YDSA não apenas como um grupo estudantil, mas como a ala de juventude de um movimento socialista mais amplo. Começamos a recrutar jovens trabalhadores não universitários, especialmente em locais como Milwaukee, e a coordenar entre campi para construir coalizões estaduais.

Por fim, um dos desfechos mais importantes foi a adoção de um programa político, a ser emendado a cada convenção. Isso dá à YDSA uma identidade mais clara e uma forma de se apresentar nos campi.

FLCMF: Desde o ano passado, que importância a luta em solidariedade à Palestina adquiriu dentro do movimento estudantil?

Charlie Muller: Na primavera de 2024, testemunhamos uma mobilização massiva em solidariedade à Palestina diante do genocídio em Gaza, apoiado pelos Estados Unidos e por Israel. Estudantes em todo o país — e também em várias partes do mundo — montaram acampamentos nos campi, ocupando espaços e exigindo o desinvestimento dos fundos universitários ligados a fabricantes de armas cúmplices do genocídio.

Essa tática se espalhou rapidamente porque era fácil de replicar, permitindo que estudantes recém-organizados se engajassem e criando a sensação de uma resistência em massa nos EUA. Também se expandiu globalmente, ajudando a construir um movimento estudantil internacional. Embora as vitórias concretas em torno do desinvestimento tenham sido limitadas, os acampamentos desempenharam um papel decisivo na formação da consciência política do movimento estudantil atual.

Para a YDSA, foi a primeira vez que participamos de uma luta estudantil mais ampla do que nossos próprios núcleos ou alianças com jovens democratas e progressistas. Passamos a atuar ao lado de uma “esquerda palestina” distinta, uma força política em si mesma, e a nos engajar não apenas com ativistas, mas também com estudantes comuns que estavam se radicalizando em torno da resposta ao genocídio, e se abrindo para a luta política.

Desde então, porém, o clima político mudou bruscamente em direção à repressão. O governo Trump mirou o movimento estudantil pró-Palestina — de forma mais dramática com o sequestro de Mahmoud Khalil — enviando uma mensagem clara de que a resistência em massa à sua agenda, fosse por estudantes, movimentos sociais ou até mesmo pelo movimento sindical, seria enfrentada com dura repressão.

Em resposta, o movimento estudantil teve de se adaptar. Um dos desafios tem sido compreender esse novo momento e desenvolver táticas e palavras de ordem que abordem a crise central: os ataques de Trump contra estudantes, a classe trabalhadora e as comunidades imigrantes. Esses ataques têm assumido a forma de operações de deportação, ofensivas contra o ensino superior e repressão violenta.

A principal lição dos acampamentos pró-Palestina é que precisamos vincular a energia radical contra o genocídio a um movimento de massa mais amplo contra Trump. É nesse campo que boa parte da luta política deverá se desenvolver nos próximos anos.

FLCMF: Uma diferença entre o primeiro e o segundo mandato de Trump tem sido uma ofensiva sistemática contra as instituições de ensino superior. Muitas burocracias universitárias cederam à chantagem, causando ainda mais indignação dentro das comunidades acadêmicas. Você pode nos contar como isso se apresenta em nível nacional?

Charlie Muller: Trump lançou um ataque em larga escala contra o ensino superior e contra a educação pública em geral. Isso começou com ataques diretos ao movimento estudantil, particularmente na Universidade Columbia, que havia sido um dos centros mais visíveis de protesto contra o genocídio em Gaza. O sequestro de Mahmoud Khalil simbolizou o início dessa repressão.

Sob pressão de Trump, Columbia capitulou, convocando uma repressão policial violenta por meio do Departamento de Polícia de Nova York (NYPD) contra os estudantes em protesto. A universidade chegou a assinar um acordo antidemocrático com o governo Trump, pagando 200 milhões de dólares e aceitando reformas abrangentes de governança: mudanças nas regras de conduta estudantil, restrições aos direitos dos estudantes e a introdução de uma nova força de segurança no campus com poderes de prisão. Na prática, Columbia foi militarizada. Um processo semelhante ocorreu na Universidade Brown, que também assinou um acordo envolvendo reformas estruturais.

Esse padrão mostra como Trump tem conseguido forçar as universidades a intensificarem a repressão aos movimentos estudantis. Criou-se um ciclo vicioso: os protestos provocam repressão; a repressão gera novos protestos; e as administrações, sob pressão federal, reprimem ainda mais rápido para evitar atenção nacional. Para os ativistas, isso deixa claro que as universidades não são apenas pressionadas por Trump, mas também cúmplices, muitas vezes dispostas a se alinhar à sua agenda autoritária.

Além da repressão policial, a ofensiva de Trump está remodelando o próprio ensino superior. As universidades estão sendo reestruturadas de acordo com sua visão mais ampla para os EUA, atacando os espaços de produção de conhecimento crítico. Humanidades, ciências sociais e até algumas ciências naturais — áreas em que se estudam desigualdade, opressão e exploração — estão enfrentando forte austeridade. Financiamentos de pesquisa estão sendo cortados quando vinculados a termos como “diversidade”, com bolsas retiradas e turmas inteiras de doutorado eliminadas. Programas estão desaparecendo tanto em universidades públicas quanto privadas.

O resultado é uma combinação de austeridade intensa, repressão política e ataques à liberdade acadêmica, especialmente contra aqueles que se mobilizam em torno da Palestina. O projeto de Trump é transformar as universidades de modo que elas deixem de servir como incubadoras de lutas democráticas ou espaços de questionamento da sociedade. Em vez disso, ele busca empurrar os trabalhadores para fora de possíveis empregos de classe média e profissional que exigem diploma, forçando-os a ocupações de baixa remuneração e consideradas de “baixa qualificação”, como parte de uma reconfiguração mais ampla da classe trabalhadora norte-americana.

Como socialistas, acreditamos em defender a educação pública e o ensino superior como um direito universal: gratuito, totalmente financiado e de alta qualidade. Isso significa mobilizar tanto o movimento estudantil quanto o movimento sindical para resistir à austeridade e à repressão de Trump, e lutar pelos recursos de que as universidades necessitam, em nível estadual e federal.

FLCMF: Como você vê a conexão entre a YDSA e campanhas políticas mais amplas, como a de Zohran Mamdani na cidade de Nova York?

Charlie Muller: A vitória de Zohran Mamdani nas primárias do Partido Democrata em Nova York foi uma das mais significativas conquistas socialistas de toda uma geração. Ela mostrou que a maioria da classe trabalhadora da cidade apoia suas propostas econômicas e está disposta a votar em um socialista que se coloca abertamente em solidariedade com a Palestina. Isso prova que existe espaço dentro da política eleitoral para a esquerda ser radical, apresentar seu programa e conquistar apoio real.

Mamdani fez campanha com um programa voltado às necessidades imediatas da classe trabalhadora: tornar os ônibus rápidos e gratuitos, lutar por um congelamento de aluguéis em apartamentos estabilizados, expandir o acesso universal à creche e baratear os alimentos. Essas demandas respondiam diretamente às lutas cotidianas das pessoas. Sua vitória veio após um ano em que muitos trabalhadores em Nova York — especialmente no Bronx e em Queens — ou votaram em Trump ou boicotaram as eleições, refletindo frustração com o fracasso dos democratas em enfrentar os problemas econômicos. Trump explorou essa raiva ao se apresentar como uma alternativa radical a Biden, Harris e aos democratas neoliberais. O programa de Mamdani, por outro lado, dialogava com essas mesmas frustrações, mas oferecia uma alternativa genuinamente voltada à classe trabalhadora.

Isso faz da vitória de Mamdani um triunfo não apenas contra a extrema direita e contra Trump, mas também contra a austeridade do Partido Democrata. Demonstra que as eleições podem ser um caminho para trazer centenas de milhares de pessoas para a política socialista. A DSA desempenhou um papel central em sua campanha, preparando o terreno que mobilizou 50 mil voluntários, percorreu a cidade em ações de porta a porta e, ao final, conquistou mais de meio milhão de votos.

O desafio agora é governar. Vencer as primárias foi apenas o primeiro passo. Para aprovar seu programa — como taxar os bilionários de Nova York para financiar creches e moradia — será preciso um movimento de massas capaz de enfrentar o lobby imobiliário, as elites corporativas e os políticos hostis. Isso significa mobilizar para além das urnas: nos locais de trabalho, nos campi, nos bairros e nos sindicatos. De forma encorajadora, já vimos surgir grupos como Educators for Zohran e Service Workers for Zohran, ao lado de organizações comunitárias, apontando para uma visão participativa e de baixo para cima da política.

Alguns camaradas propuseram criar uma formação militante mais ampla — algo como um proto-partido — que pudesse unificar aqueles que apoiam a agenda de Mamdani mesmo que ainda não estejam prontos para entrar na DSA ou se comprometer com a política socialista. Vitórias como essa podem servir de trampolim para o crescimento da política socialista, eventualmente lançando as bases para um partido independente da classe trabalhadora, rompendo com os democratas e avançando em direção ao socialismo.

É claro que Mamdani enfrentará enorme pressão para ceder uma vez no cargo. Em vez de focarmos em censurar ou criticar socialistas eleitos quando vacilam, nossa prioridade deve ser construir um movimento de massas forte o suficiente para lhes permitir se manter firmes: para defender a Palestina, enfrentar Trump e resistir à repressão. Somente sustentando a mobilização de base poderemos garantir que vitórias como a de Mamdani não permaneçam isoladas, mas se tornem parte de uma transformação mais ampla.

FMFLC: Além de ser um ativista, você também é pesquisador de experiências internacionais no movimento estudantil. Como você vê a importância do internacionalismo entre os jovens?

Charlie Muller: O capitalismo é um sistema global e, para enfrentá-lo e construir o socialismo, precisamos organizar a classe trabalhadora internacionalmente, atravessando fronteiras e nações. Isso significa nos orientar para a classe trabalhadora como o verdadeiro agente de mudança — não para governos, partidos ou Estados, mas para os movimentos sociais e de massa, para os sindicatos e para a organização de base capaz de transformar a sociedade.

Hoje, com a eleição e o retorno de Trump ao governo, enfrentamos uma ofensiva da extrema direita internacional. Essa força reacionária vem ganhando espaço em todo o mundo: na América Latina, com figuras como Milei na Argentina e Bolsonaro no Brasil; e na Europa, com a ascensão eleitoral de políticos de extrema direita. A extrema direita se apresenta como uma alternativa radical, canalizando a raiva diante das crises do capitalismo — colapso ecológico, guerras, genocídios, fome — para o nacionalismo branco, o chauvinismo e o ódio a imigrantes, pobres e comunidades marginalizadas, incluindo pessoas trans, queer e negras. Seu programa é retirar direitos e liberdades, atacar a democracia e levar a sociedade ao retrocesso.

Isso representa uma ameaça existencial à classe trabalhadora e aos povos oprimidos, não apenas nos EUA, mas globalmente. Para os socialistas nos EUA, no coração do imperialismo, nossa tarefa é confrontar o imperialismo norte-americano, derrotar Trump e construir um movimento de massas contra sua agenda. Mas essa luta também deve se conectar com movimentos em todo o mundo: contra Trump, contra o imperialismo e contra o autoritarismo, construindo uma frente unida antifascista.

A juventude tem um papel fundamental nesse processo. Ela tem sido protagonista em levantes ao redor do mundo, contra regimes autoritários, contra o genocídio em Gaza, contra a extrema direita e contra o próprio capitalismo. Construir um movimento internacional de juventude e estudantes, capaz de coordenar lutas e demandas, é essencial, pois os desafios que enfrentamos são comuns, além das fronteiras.

Vemos que as políticas de Trump — tarifas, guerras comerciais e agressão imperialista — afetam não apenas os EUA, mas também países como o Brasil, onde sanções econômicas têm sido usadas como ferramentas políticas para apoiar golpistas e minar a soberania. Essas medidas, em última análise, punem a classe trabalhadora em todos os lugares. É por isso que precisamos desenvolver palavras de ordem compartilhadas, estratégias e solidariedade na luta contra o imperialismo e o fascismo.

Os jovens estão rejeitando o capitalismo e o genocídio, lutando por seu futuro e mostrando que, por meio da luta comum internacional, é possível mudar o mundo.


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