Ondas de resistência
Da brutalidade colonial à solidariedade global, a luta palestina reafirma que resistir é existir — e que nenhum império pode silenciar a força dos povos
Foto: IRNA/Fotos Públicas
Nas últimas horas, acompanhamos, com apreensão e raiva, o sequestro de camaradas pelo Estado sionista que seguiam na Sumud Flotilla rumo a Gaza, levando ajuda humanitária. A captura ilegal é mais um gesto de arrogância colonial, de quem age acima das leis internacionais e da própria ideia de humanidade. Quando somamos esse ato às cenas de morte, de corpos soterrados sob os escombros, ao assassinato de bebês e crianças, à fome sistêmica provocada pelo sionismo, o quadro é devastador. Não surpreende que muitos camaradas se sintam tomados pela impotência e pela resignação. Mas é justamente contra essa sensação de derrota que escrevemos: para lembrar por que lutamos e como chegamos até aqui.
O sistema que enfrentamos não é novo. A expansão capitalista foi sustentada pelo colonialismo, pelo racismo, pelo extermínio. Nas Américas, populações inteiras foram dizimadas para que a Europa acumulasse riquezas e financiasse a sua revolução industrial. Na África, criaram o tráfico transatlântico, a escravidão e, mais tarde, o neocolonialismo que repartiu o continente como mercadoria. Na Ásia, a Índia foi devastada pelo domínio inglês; o Sudeste Asiático explorado pela França; a China invadida e humilhada pelas potências ocidentais; e o Japão, por sua vez, reproduziu a lógica imperial no Oriente. Em todos esses casos, milhões de vidas foram destruídas em nome do lucro, da expansão territorial e da manutenção de hierarquias raciais. O que vemos hoje em Gaza não é uma exceção, nem obra apenas da perversidade de Netanyahu. É a atualização de uma lógica histórica: massacres e genocídios são constitutivos do sistema capitalista, e é por isso que nós resistimos.
O que marca a diferença hoje, e talvez explique a dimensão do nosso assombro, é a queda da máscara. Como apontaram Petro e outros governantes do Sul Global, a retórica ocidental dos direitos humanos ruiu. As redes sociais expõem, quase em tempo real, a máquina de extermínio. O sistema ONU se mostra esvaziado, incapaz de deter a carnificina. A promessa de uma ordem democrática e ética, que sustentou o imperialismo por décadas, desmorona diante dos escombros de Gaza. Não há mais verniz possível: a violência estrutural do sistema está nua.
É justamente aí que reencontramos a razão da nossa luta. Se o capitalismo sempre avançou sobre cadáveres e ruínas, cabe a nós afirmar a vida. Gaza não é apenas o retrato do horror, é também o grito de resistência que conecta todos os povos massacrados ao longo da história da dominação. Lembrar disso é o que nos impede de sucumbir à apatia, é o que transforma a impotência em força coletiva. É por isso que seguimos.
Na queda desse suposto moralismo ocidental, dessa ideia de excepcionalidade civilizatória que os brancos europeus e norte-americanos construíram para justificar suas guerras, vemos nascer algo novo. Assistimos ao fortalecimento da sociedade civil internacional, dos povos em todo o mundo que se levantam contra a barbárie. As ruas da Europa têm reunido centenas de milhares; nos Estados Unidos, dezenas de milhares; e aqui no Brasil vivemos as maiores manifestações pró-Palestina da nossa história.
Neste sentido, a chamada proposta de paz apresentada por Trump e Netanyahu não é uma solução justa nem atende às demandas históricas do povo palestino. Pelo contrário, mantém intacta a lógica de dominação, ocupação e apartheid. Mas o simples fato de colocarem uma proposta na mesa já demonstra algo importante: não é fruto de bondade, mas da necessidade de reagir ao crescimento da resistência e ao fortalecimento da solidariedade internacional. O que chamam de paz é, na verdade, uma concessão arrancada pela luta, ainda que insuficiente e marcada por contradições.
Por isso devemos olhar com esperança para os acampamentos estudantis que explodiram nas universidades norte-americanas e europeias e que agora também começam a surgir em nosso país. Talvez esse seja o símbolo mais potente: a juventude que não aceita o silêncio, que ocupa os espaços e recusa a normalidade do genocídio. E não é só. A pressão atravessa também o mundo artístico: músicos, atores, diretores, prêmios como o Emmy e o Oscar se transformaram em palco de denúncia.
No esporte, as rachaduras são cada vez mais visíveis. A UEFA está sob pressão inédita: discute-se, em alto nível, a suspensão de Israel de suas competições — algo que, mesmo adiado por manobras diplomáticas, já significa uma ruptura simbólica no coração do futebol europeu. No ciclismo, os protestos são cotidianos: no Tour de France, ativistas invadiram etapas com bandeiras palestinas e gritos de “Israel out of the Tour”. Na Vuelta a España, manifestações massivas forçaram o cancelamento da etapa final em Madri e transformaram o time Israel–Premier Tech em alvo de contestação permanente, acusado de usar o esporte para lavar a imagem de um Estado genocida.
E as brechas não estão só no esporte. Nos portos italianos, a classe trabalhadora deu um passo decisivo. Em Gênova, portuários declararam que nenhum navio com destino a Israel sairia do cais caso se perdesse o contato com a flotilha humanitária. Não foi apenas uma ameaça: em setembro, durante uma greve nacional pró-Palestina, impediram de fato o embarque de mercadorias, sobretudo armamentos, destinadas ao Estado sionista. A iniciativa não ficou isolada. Começa a articular outros portos do Mediterrâneo e aponta para uma rede de solidariedade internacional que conecta trabalhadores além das fronteiras. Esse processo é ainda mais expressivo porque acontece em um país onde, há mais de três décadas, a esquerda não consegue mobilizar forças significativas no campo institucional, dominado pela direita e pela extrema direita. Mesmo assim, a organização direta encontra caminhos: não foram apenas os portuários de Gênova, mas mobilizações que se espalham como pólvora por todo o país e ecoam em outros cantos da Europa. É desse chão que emerge uma resistência concreta, capaz de interromper a engrenagem da guerra e expor suas contradições.
Ou seja, a resistência não se limita a governos ou a cúpulas diplomáticas. Ela nasce do chão de fábrica, dos hospitais, das redações, dos cais, das universidades, das ruas do Brasil e do mundo. Quando a classe trabalhadora se movimenta e diz não à barbárie, ela mostra que ainda existe uma força capaz de interromper a engrenagem da guerra.
Existir, para o povo palestino, já é resistir. Por mais que queiram ceifar vidas ainda nos úteros, antes das primeiras palavras ou dos primeiros passos, não se apaga um povo. O genocídio busca destruir não apenas corpos, mas também símbolos, histórias, línguas, canções e futuros. Mas cada criança que nasce em Gaza, cada poema escrito no exílio, cada bandeira levantada nas ruas do mundo reafirma a herança de um povo que insiste em existir. E é justamente essa herança que hoje encontra eco global: a resistência palestina não está isolada, ela é fortalecida pelo apoio internacional que diz, em uníssono, que nenhum muro, cerco ou massacre poderá apagar a Palestina.
Assim como vimos na derrota do apartheid na África do Sul, não foi um raio em céu azul que derrubou um Estado altamente militarizado, detentor de armas nucleares e parceiro estratégico de Israel. Foi a combinação de uma resistência interna incansável, articulada por décadas, com uma pressão internacional crescente, movida pela sociedade civil organizada em campanhas de boicote, sanções e desinvestimento. Esse duplo movimento — de dentro e de fora — foi capaz de isolar o regime sul-africano e expor a sua ilegitimidade diante do mundo.
É nesse mesmo horizonte que situamos a luta palestina hoje. A resistência popular em Gaza, na Cisjordânia e no exílio se conecta com manifestações que explodem em centenas de cidades, com greves de trabalhadores, com boicotes culturais e esportivos, com pressões que chegam até mesmo a governos que, como o de Meloni na Itália, são símbolos da extrema direita europeia. Ainda que relutem, esses governos se veem forçados a se posicionar diante do avanço de um movimento global que não para de crescer.
Desde o início, sabíamos que a flotilha encontraria obstáculos quase intransponíveis para chegar a Gaza com alimentos, mantimentos e medicamentos. Mas a sua missão vai além da carga que transporta. Ela carrega em seus ombros a esperança de um mundo que já não aceita a barbárie e o genocídio como algo natural. A flotilha é mais que barcos em direção a um porto sitiado: é símbolo de que a solidariedade entre os povos resiste, atravessa fronteiras e desafia impérios.
E é nessa esperança, construída na luta e na resistência coletiva, que seguimos. Porque, assim como no apartheid da África do Sul, sabemos que também na Palestina a história será escrita pela força dos povos contra esse sistema.