Quilombo São Miguel: resistência e sobrevivência em meio ao agronegócio
Roberto Potacio Rosa

Quilombo São Miguel: resistência e sobrevivência em meio ao agronegócio

Entre o veneno do agronegócio e a força da ancestralidade, o Quilombo São Miguel resiste para preservar seu território, sua cultura e sua dignidade

Fotos: Arquivo pessoal

No coração do Rio Grande do Sul, em Restinga Seca, encontra-se o Quilombo São Miguel, território marcado pela história e resistência da população negra. Fundado entre os séculos XIX e XX por Geraldo de Carvalho e seu sobrinho Ismael Cavalheiro, abriga hoje cerca de 216 famílias que lutam para preservar sua cultura, identidade e direitos, enfrentando desafios do agronegócio, da expansão urbana e da marginalização histórica.

Tradição e resistência cultural

A comunidade mantém vivas tradições culturais e religiosas de matriz africana, frequentemente alvo de preconceito e demonização. Para o líder local Roberto Potacio Rosa, a luta quilombola vai além da defesa do território: envolve resgatar memórias, conhecimentos e práticas ancestrais. 

“A cultura de matriz africana ainda é muito demonizada, mas é parte da nossa existência. Preservar isso é resistir”, afirma.

A visibilidade da comunidade é essencial, não apenas para mostrar sua realidade, mas para construir respeito e reconhecimento, seja na mídia, seja nas discussões públicas. Compreender o Quilombo São Miguel é entender a trajetória de um povo que, mesmo diante de perdas e dificuldades, mantém firme a resistência e a identidade.

Uma vida marcada pelo trabalho e aprendizado

Roberto nasceu em uma família quilombola, filho de Leonir Rosa, que perdeu a visão ainda jovem, e neto de Alciria Rosa, benzedeira e parteira da comunidade. Cresceu cercado pela religiosidade de matriz africana e pelo trabalho no campo. 

“Com oito anos, eu já ia trabalhar puxando um animal com uma capinadeira, limpando a terra, ajudando nos engenhos de produção da mandioca. Estudei até a quinta série e, aos 12 anos, precisei sair da escola para trabalhar”, lembra.

Ele trabalhou na lavoura, corte de lenha, construção civil e metalurgia. Hoje, aos 69 anos, reflete sobre sua experiência: 

“Apesar de não ter tido muita escolaridade, contribuo para a sociedade, construindo políticas públicas e debatendo a distribuição de direitos e renda. O que você faz, deixa sementes. Se não plantar, as ervas daninhas continuam dominando.”

Migração, retorno e crescimento

Muitas famílias migraram para cidades como Porto Alegre e São Leopoldo, mas mantêm vínculo com o quilombo. 

“Hoje tem aquela coisa da lei do retorno: as pessoas estão voltando, foram, mas não perderam o domínio, o vínculo. Hoje estamos aí com um total de 216 famílias”, explica Roberto.

O período pós-abolição deixou a população negra à margem da sociedade. 

“Em 13 de maio houve a falsa abolição, que não foi concluída. Em 14 de maio, toda essa população estava sem direção, sem documentos, pensando num lugar pra ir. E os lugares que precisaram procurar, ocuparam, foram esses lugares de difícil acesso. Aqui foi uma trajetória diferente, porque Ismael Cavalheiro era escravo de Martins Pintos. Depois migrou para outra fazenda dos Carvalhos Bernardes, que tinha outra forma de tratamento, com moradia digna e condições para sair da situação anterior”, relata.

Espoliação e o negócio espúrio: perda histórica de território

Durante o processo de emancipação, a área total do território quilombola chegou a ser cerca de 300 hectares, entretanto, atualmente a área ocupada é de 127 hectares. 

“As condições impostas para essas pessoas, tudo aquilo que foram adquirindo, elas iam perdendo na sequência, porque não amenizava a sua situação porque sempre as condições eram cada vez mais cruéis”, destaca Roberto. 

Quanto ao processo de redução de área, Roberto destaca que a desapropriação do território ocorreu por meio de mais um processo colonialista, o negócio espúrio:

“Eles conquistaram esse espaço e aos poucos foram cedendo. A necessidade lhe impunha. E aí, comprava, arrumava emprestado esse recurso com alguém. Alguém dizia: ‘Eu tenho uma cabeça de gado, eu vou plantar aquele pedaço ali um ano, dois anos’. O pedaço que era tomado em conta do valor emprestado não condizia com o valor que tinha emprestado. Ele era dez, doze vezes maior. E assim foi. Essa questão de troca: ‘me dá uma sacola de comida que eu lhe dou uma tira de terra; eu lhe alugo por tanto tempo’”.

Foto: Arquivo pessoal
Estrada divide o terrotórrio: à esquerda, área sendo preparada para cultivo de soja; à direita, residências

Agricultura, subsistência e desafios do agronegócio

A produção agrícola sempre foi voltada para subsistência, com atividades comerciais pontuais como a venda de farinha de mandioca e milho. 

“Antes, havia excedente que podia ser vendido”, lembra Roberto. Com o tempo, a pressão do agronegócio, a perda de terras e a diminuição do solo fértil reduziram a capacidade produtiva. “O pouco que tem hoje são terras que produzem muito pouco, com muito pouca força para uma produção mais satisfatória”.

O uso de sementes transgênicas e pesticidas nas lavouras vizinhas impacta diretamente a produção local. 

“Algumas lavouras de soja dentro do território prejudicam nossas plantações. Nós tínhamos aqui dois pés de abacate grandes, foram destruídos pelo veneno. O milho, o feijão, a mandioca… tudo sofre. A comunidade é cercada pelo veneno”, relata.

A preservação de sementes crioulas é uma estratégia de resistência. “Sempre guarda um pouco para plantar na próxima safra”, afirma Roberto, mas observa que hoje isso é escasso e muitas vezes a qualidade do grão colhido não é boa. Ele também destaca conflitos internos e externos sobre o uso da terra: 

“Essa questão de ter lavouras mesmo dentro da comunidade, essas áreas foram invadidas ou é tipo arrendamento de uma pessoa que não mora na comunidade. É aí que, nesse caos, entra o veneno no meio. Isso prejudica até as pequenas hortas familiares”.

Direitos, políticas públicas e infraestrutura

O acesso a políticas públicas e infraestrutura básica ainda é limitado. O RS Rural foi o único programa com algum suporte, mas não foi pensado para a população quilombola: 

“O RS Rural não era para a população preta, muito menos para a população quilombola.”

Avanços em habitação, água e saneamento são parciais, e o acesso a recursos e linhas de crédito continua dificultado. A água consumida pela comunidade vem de um poço de captação de água subterrânea, considerado a fonte mais segura. 

“É água de subsolo, muito boa, leve, e não apresentou nenhum problema de saúde”, afirma Roberto. No passado, vertentes naturais eram usadas, mas foram abandonadas devido à degradação ambiental.

A educação também enfrenta obstáculos. A escola local atende do ensino fundamental até a nona série, mas recentemente turmas foram transferidas sem consulta à comunidade. 

“Entramos no Ministério Público, mas a resposta foi ineficaz. Muitos recursos ficam parados ou desviados”, explica Roberto, destacando que o racismo e a falta de reconhecimento influenciam essas decisões.

Preservação cultural e religiosa

A preservação da cultura e da religião de matriz africana é central para a comunidade. 

“Nós, no Estado do Rio Grande do Sul, somos a única ou a segunda comunidade que guardamos essa identidade religiosa”, diz Roberto. 

Tentativas externas de imposição de outras religiões, principalmente evangélicas, são resistidas pela comunidade. 

“Aqui na comunidade tinha uma menina que veio de Porto Alegre construir uma igreja, mas depois parou. A presença evangélica sempre existiu, mas não pode demonizar o que a gente conhece.”

Roberto ressalta o respeito a diferentes concepções do sagrado: 

“Quantos Deuses têm? Um só? Não necessariamente. Cada cultura leva para o único sagrado sua forma de pensar, sem extinguir a relação entre as pessoas.”

Além da dimensão espiritual, saberes tradicionais como agricultura, benzimento e uso de plantas medicinais são transmitidos de geração em geração. 

“O que sobra dentro de uma comunidade humanizante são fragmentos de uma presença ancestral africana que trouxe ricas contribuições para cá”, explica.

Engajamento comunitário e esperança

A Associação Comunitária Vovô Geraldo, formada em 2001, é o principal instrumento de representação e defesa de direitos. Roberto destaca o papel da entidade na luta por políticas públicas e na regulamentação do artigo 68 da Constituição, que garante direitos às comunidades remanescentes de quilombos: 

“Participamos da construção do decreto 4.987 e ajudamos a rever a Convenção 169, garantindo consulta prévia e informada às comunidades.”

Mesmo diante de desafios históricos e atuais, a comunidade preserva práticas agrícolas, luta pela subsistência e mantém a identidade cultural e religiosa. Roberto conclui: 

“Quanto mais pessoas se engajarem, mais sementes plantaremos, e as ervas daninhas da desigualdade não dominarão nosso território.”

Sua trajetória pessoal se entrelaça com a história da comunidade, refletindo a resistência, o cuidado com a memória ancestral e o compromisso com a preservação cultural e territorial do Quilombo São Miguel. A vida de Roberto e da comunidade mostra como, mesmo diante de dificuldades sociais, econômicas e ambientais, é possível cultivar raízes, memória e dignidade.


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