Violencia aos terreiros: intolerancia ou racismo religioso?
Nomear a violência aos terreiros como Racismo Religioso é dimensionar o problema para a luta política antirracista
O Racismo Religioso não é meramente um ato isolado de desrespeito à crença, mas sim uma manifestação específica do racismo estrutural brasileiro (Munanga, 2020).
O processo histórico de formação e resistência das Comunidades de Matrizes Africanas no Brasil é uma narrativa complexa e dolorosa, que se inicia com a colonização e a escravização forçada de milhões de africanos, a partir do século XVI. Longe de serem meros sujeitos passivos, os africanos escravizados trouxeram consigo um vasto e diversificado conjunto de saberes, cosmologias e práticas culturais/religiosas (incluindo o culto aos Orixás, Voduns e Inquices), que se tornaram o cerne da sua resistência cultural e espiritual em um ambiente de total desumanização e violência.
Sob a escravidão, a Igreja Católica e o Estado colonial impuseram o Cristianismo como a única fé válida, classificando as práticas religiosas africanas como bruxaria, superstição e magia negra, pavimentando o caminho para a perseguição sistemática. A repressão era brutal, e a necessidade de criar ferramentas de resistência e sobrevivência era urgente. Assim, o chamado sincretismo religioso, a associação de divindades africanas a santos católicos, foi em grande medida importante para a existência dos povos escravizados, garantindo que pudessem manter a prática dos seus ritos e cultos ancestrais.
Apesar da abolição formal da escravidão em 1888, a perseguição não cessou. Durante o Brasil República, especialmente sob a Primeira República (1889-1930), a repressão policial aos terreiros de Candomblé e Umbanda era uma prática comum e legitimada pelo poder público. O terreiro, que funcionava como um verdadeiro quilombo urbano, um espaço de reorganização social e da identidade e cultura afrodiaspórica, era rotineiramente invadido, tendo seus objetos sagrados apreendidos e seus líderes e adeptos presos, muitas vezes sob a acusação de charlatanismo ou prática ilegal de medicina (Miranda, 2019).
Essa repressão, amparada por leis e códigos que criminalizavam a religiosidade não-cristã e não-europeia, demonstra que o problema ia muito além de uma simples “divergência teológica”; tratava-se de um esforço estatal para anular as heranças africanas e indígenas na cultura e na identidade nacional, reforçando a supremacia branca e cristã. A sobrevivência e a expansão dessas comunidades, apesar da marginalização e da violência, atestam a força inabalável e a centralidade da matriz africana na formação sociocultural do Brasil.
É neste contexto histórico de violência sistemática e estrutural que se torna necessário o uso da categoria “Racismo Religioso” no que diz respeito às violências sofridas pelas comunidades de terreiros, em detrimento do termo mais genérico “Intolerância Religiosa”. Embora a intolerância religiosa seja um problema grave, referindo-se à não aceitação ou desrespeito a qualquer crença distinta da própria e coloque a questão sobre o indivíduo, usando-a de forma neutra de qualquer fé e a histórica; ela não captura a especificidade e a dimensão racial da violência sofrida pelas Comunidades de Matrizes Africanas. A perseguição direcionada ao Candomblé, à Umbanda e a outras manifestações afro-brasileiras não é acidental, mas sim estrutural, sendo indissociável do racismo que marca a sociedade brasileira. O ataque a um terreiro, a perseguição pelos sons dos atabaques, a depredação de um barracão, a demonização de Orixás em pregações neopentecostais ou a discriminação a um indivíduo por usar trajes de santo, não são apenas manifestações de “não gostar” de uma crença; são manifestações de um racismo que hierarquiza e inferioriza as religiões por estarem intimamente ligadas ao povo negro e à ancestralidade africana. Como aponta o sociólogo Reginaldo Prandi (2004), o processo de demonização dessas religiões está intrinsecamente ligado à inferiorização do povo negro após a escravidão. Trata-se de um mecanismo de manutenção do status quo colonial, onde o corpo negro e sua cultura são sistematicamente desumanizados. O ataque ao terreiro é, portanto, um ataque à negritude, à sua cosmologia e aos seus espaços de resistência.
O conceito de Racismo Religioso reconhece que as crenças afro-brasileiras são atacadas porque são negras, e não apenas porque são “diferentes”. A violência contra essas comunidades é uma extensão direta do racismo que desumanizou os africanos escravizados, classificando suas práticas como primitivas e demoníacas em contraste com a civilização e a “verdade” cristã europeia.
Nomear como Racismo Religioso é dimensionar o problema para a luta política antirracista, que expõe o problema racial ainda existente na nossa sociedade e faz uma exigência por igualdade e direitos das religiões afro-brasileiras e o reconhecimento da identidade e valorização da história e cultura negra. O uso do termo “Racismo Religioso” confere a essa violência a sua devida gravidade e especificidade, deslocando o debate para o campo do crime de racismo e da violação de direitos humanos fundamentais. É uma ferramenta de luta política e acadêmica, indispensável para a criação de políticas públicas eficazes, como as previstas no I Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, que visam não apenas punir agressores, mas, sobretudo, promover a reparação histórica e a valorização plena da herança religiosa e cultural africana no Brasil. Adotar essa terminologia é um passo para o reconhecimento pleno da dívida histórica do país e a promoção da igualdade material para a população negra.