O ‘Canto da Sereia’ do medo
Como a extrema direita se alimentou da decepção com Boric
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O Chile se encontra, mais uma vez, em um momento decisivo de sua história. O primeiro turno das eleições presidenciais de 2025, que consagrou a comunista Janette Jara e o ultradireitista José Antonio Kast como finalistas, é muito mais do que uma disputa eleitoral, é o reflexo de uma crise profunda que tem suas raízes no mal-estar social acumulado e na incapacidade das forças progressistas de converter a rebelião de 2019 em um projeto transformador sustentável. Para compreender como um candidato que em 2017 era uma figura marginal da extrema direita hoje se apresenta com reais chances de conquistar La Moneda, é preciso revisitar a sequência de desencantos que pavimentou seu caminho.
A semente do cenário atual foi plantada durante o segundo governo de Sebastián Piñera, iniciado em 2018. Seu mandato representou a consolidação de uma direita pinochetista com roupagem tecnocrática. As revoltas que eclodiram no Chile em 2019 foram a explosão social inevitável contra três décadas de um modelo neoliberal radical, herdado da ditadura de Pinochet e mantido pelos governos posteriores. O aumento de 30 pesos na passagem do metrô foi apenas o estopim que simbolizou o abuso de um sistema que havia mercantilizado direitos básicos como água, previdência, saúde e educação, gerando uma vida de custos altos e endividamento para a maioria. A repressão estatal desproporcional ao protesto inicial, com graves violações de direitos humanos, aliado a diversas declarações desastrosas de membros do governo com a nivel de empatia comparável de Bolsonaro diante da COVID19, amplificou a revolta, transformando-a em um movimento massivo que rejeitou a classe política e exigiu, com o lema “Não são 30 pesos, são 30 anos”, o fim desse modelo e a garantia de direitos sociais universais por meio de uma nova Constituição.
Foi nessa brecha de esperança que Gabriel Boric, atual presidente pela Frente Amplia, ascendeu ao poder em 2022. Ele chegou a La Moneda não como um político tradicional, mas como a encarnação das demandas das ruas, um líder estudantil que prometia ser o construtor da casa nova cujos alicerces foram demandados nas mobilizações. No entanto, o presidente Boric rapidamente se viu enredado na teia de contradições do Estado que jurara transformar. Seu governo, aos poucos, se transmutou no gestor de uma crise orgânica do capitalismo chileno, capitulando de forma progressiva às pressões do grande capital e traindo, na prática, as bases que o levaram ao poder. Sob um discurso progressista, a essência do modelo neoliberal permaneceu intocada. A militarização dos territórios Mapuche, que beneficiou diretamente o complexo industrial da segurança privada, o aprofundamento do extrativismo e a manutenção das concessões ao capital financeiro internacional marcaram seu mandato. Um dos exemplos mais simbólicos dessa submissão foi a revelação, pelo CIPER Chile, de que as Administradoras de Fundos de Pensões (AFPs), sob sua gestão, investiram 34 milhões de dólares em empresas como a Elbit Systems, fabricante de armas utilizadas no genocídio em Gaza, uma afronta à maior comunidade palestina fora do Oriente Médio, que reside justamente no Chile.
Seu fracasso mais estratégico, contudo, foi a incapacidade de conduzir o processo constituinte a um desfecho vitorioso. A derrota da proposta de nova constituição, afundada por uma combinação tóxica de desinformação maciça e uma campanha de terror da direita, representou o colapso do principal canal institucional para as demandas do Estouro Social. Boric, o jovem político que escutava as ruas, mostrou-se incapaz de construir uma narrativa poderosa o suficiente para enfrentar a máquina de medo da direita e forjar uma consciência de classe que identificasse oneoliberalismo como o verdadeiro inimigo da classe trabalhadora e combatesse as fakenews em torno da nova constituinte. O resultado foi a desmobilização do campo popular, a manutenção da Constituição de Pinochet e a abertura de um vácuo político que a direita soube preencher com maestria.
Eleições 2025: as consequências da falta de resposta do governo Boric
Foi nesse terreno fértil de desencanto e frustração que as ideias reacionárias de José Antonio Kast, antes confinadas aos extremos do espectro político, encontram eco. Em 2017, transferiu seus votos para Piñera, garantindo a unidade da direita. Em 2021, foi derrotado quando setores da direita moderada, alarmados com seu radicalismo, apoiaram Boric. Agora, a situação se inverteu. José Antonio Kast, que obteve 23,93% dos votos no primeiro turno das eleições presidenciais no último dia 16. Filho imigrante alemão que em 1942 filiou-se à juventude hitlerista e se instalou no Chile após a Segunda Guerra Mundial , irmão de Miguel Kast que foi ministro na ditadura de Pinochet, Kast ainda é admirador de Trump e de Bolsonaro. Entre suas posições mais conservadoras, destacam-se a defesa de um forte reforço no aparato de segurança, com maior participação das Forças Armadas em funções de ordem interna com a proposta de instalar fossos e barreiras na fronteira norte para conter fluxos migratórios e a intenção de flexibilizar normas trabalhistas e ambientais vistas como entraves ao crescimento econômico. Kast também prioriza uma agenda centrada no modelo de família tradicional e propõe revisar ou reduzir políticas de igualdade de gênero. Soma-se a isso seu histórico de declarações contrárias aos movimentos feministas, chegando adizer, em relacao ao aborto legal, em 2016, “É uma maquinação intelectual dizer que a mulher tem direito sobre seu corpo”
O Partido Republicano, fundado por ele, já é a força hegemônica na direita chilena, e sua estratégia é um manual da nova extrema direita latino-americana: a instrumentalização do medo. Apesar de indicadores econômicos relativamente sólidos no pós-pandemia, Kast alardeia que o Chile está desmoronando, promete “fossos” na fronteira norte e busca criminalizar a resistência Mapuche, equiparando-a ao terrorismo para beneficiar o multimilionário setor madeireiro do sul do país, controlado por seus aliados. A grande mídia, que dedica mais de 70% de sua cobertura à criminalidade, atua como cúmplice na criação desse pânico moral, permitindo que Kast se apresente como uma opção moderada quando comparado a figuras ainda mais radicais, como o ultranacionalista Johannes Kaiser.
A baixa capacidade que Boric apresentou de entregar e realizar as reformas estruturais que prometeu, facilitou que Kast fosse visto mais como uma negação do governo Boric, recebendo muito mais por conta disso do que por um apoio concreto às propostas da extrema-direita.
Ainda assim, a candidata apoiada por Boric, Janette Jara, do Partido Comunista, com uma trajetória sólida e origem popular, conquistou um digno 26,85% dos votos. A candidata do PC Chileno, ocupou diferentes funções entre elas a Subsecretaria de Previsão Social durante o governo de Michelle Bachelet. No período de 2022 a 2025, integrou o gabinete do presidente Gabriel Boric como ministra do Trabalho e Previdência Social. Proveniente de um contexto popular, consolidou sua atuação política em torno da agenda da justiça social e, em 2025, foi apresentada como candidata presidencial pela coalizão de esquerda Unidad por Chile.
Jara enfrentará, no segundo turno, justamente José Antonio Kast obteve 23,93%. Sozinho, esse percentual não seria alarmante. A força de Kast, porém, reside na transferência de votos de outros dois candidatos. Tanto Kaiser (13,94%) quanto Evelyn Matthei (12,46%), esta última uma ministra de Piñera que se vende como centro, já declararam seu apoio incondicional. Juntos, este bloco reacionário soma 50,33% dos votos do primeiro turno. O grande trunfo de Jara, e a esperança para frear o avanço da extrema direita, reside na capacidade de conquistar uma parcela significativa dos eleitores do populista de direita Franco Parisi, que ficou em terceiro lugar com 19,71% dos votos. Parisi, que se autointitula “nem facho, nem comunacho” e reside nos Estados Unidos, é a encarnação do oportunismo político. Sua recusa em apoiar formalmente qualquer candidato esconde uma agenda neoliberal que, na prática, tende a alinhar-se com Kast, e sua bancada de 14 deputados atuará como um cavalo de troia no Congresso, dificultando qualquer agenda progressista, mesmo que Jara vença.
Diante da ameaça concreta de um projeto ultrarreacionário retornar ao poder, uma centelha de unidade começa a reacender as ruas. A divulgação dos resultados do primeiro turno foi seguida por um movimento quase orgânico de rearticulação: sindicatos, coletivos feministas e organizações de base anunciaram imediatamente assembleias e atos para construir uma barreira popular intransponível em apoio a Janette Jara. Há, no ar, a promessa de que a potência social que parecia adormecida nos anos de desgaste do governo Boric pode reemergir, transformando o medo em combustível para uma mobilização massiva. A tarefa histórica que se impõe é clara: reconectar a campanha eleitoral com a energia do Estouro Social, canalizando o descontentamento que permanece latente em uma força capaz não apenas de derrotar Kast nas urnas, mas de reabrir o caminho para as transformações que ficaram pela metade.
Apesar do cenário preocupante, a história do Chile é pródiga em ensinar que as horas mais escuras costumam preceder as alvoradas mais vigorosas. O mesmo povo que derrotou Pinochet no plebiscito de 1988, que ergueu as bandeiras da justiça social com Salvador Allende e que paralisou o país em 2019 para exigir dignidade, guarda em sua memória coletiva a semente da resistência. A experiência recente na região, com a derrota de Bolsonaro no Brasil, demonstra que o projeto da ultradireita não é invencível. O Chile de 2025 não decide apenas seu futuro, mas sinaliza o rumo para toda a América Latina. A encruzilhada é agora, e a esperança, por mais frágil que pareça, ainda reside na capacidade do povo chileno de escrever, mais uma vez, um capítulo de coragem e resistência em sua história.