Doze notas sobre o 25 de novembro

Doze notas sobre o 25 de novembro

As palavras que a Revolução escreveu, o 25 de novembro não apagou

António Louçã e Carmo Vicente 21 nov 2025, 11:34

Os dois autores deste texto militaram, na década de 1980, no grupo que publicava a revista “Versus” e de então ficou um empenhamento comum, que tem aqui uma das suas expressões. Não se trata, neste texto, de um testemunho, nem de um trabalho de investigação, e sim da afirmação de alguns pontos que temos por fundamentais. 

1. O 25 de Novembro não foi uma imitação abortada do “golpe de Praga”. O PCP não tinha qualquer veleidade de transformar Portugal num país do Leste, e menos ainda numa “Cuba da Europa”. Ele identificava-se plenamente com a estratégia soviética de desanuviamento e com a aposta nos Acordos de Helsínquia. Os mesmos que censuram ao PCP uma incondicional obediência a Moscovo não podem simultaneamente censurar-lhe uma suposta estratégia putschista sem caírem em gritante contradição: qualquer tentativa para tomar o poder em Portugal seria incompatível com o desejado sucesso da política de Helsínquia. A estratégia do PCP consistia em defender as suas posições no aparelho de Estado e em estabelecer algum tipo de entendimento com o Grupo dos Nove, no espírito do Comité Central de Alhandra, de 10 de agosto.

2. Negar que houvesse uma estratégia do PCP para tomar o poder não implica negar que o socialismo e o poder popular tenham estado no horizonte da revolução. Ambos eram vistos como uma possibilidade concreta e palpável no dia-a-dia das massas e como um perigo credível para as classes possidentes. Uma alternativa de poder popular tinha começado a desenhar-se quando as massas, logo em 25 de abril de 1974, teimaram em ignorar as ordens de confinamento do MFA, e tinha continuado a desenvolver-se em cada greve, em cada ocupação de casas, de terras e de empresas. Durante mais de um ano e meio, as forças policiais raramente se atreviam a sair das suas esquadras e as forças militares enviadas em missões repressivas quase sempre acabavam a confraternizar com os trabalhadores. A situação era intolerável para a burguesia, que sentia de forma premente a necessidade de fazer alguma coisa. 

3. Na primeira fase do PREC, os grupos económicos portugueses e as potências ocidentais tinham apostado em soluções golpistas de tipo chileno, mas a derrota sofrida no 11 de março desacreditou Spínola como dirigente e forçou esse bloco social a uma maior prudência. Paralelamente, a configuração de uma maioria PS-PPD nas eleições de 1975 permitiu-lhes agregar sob a bandeira da Constituinte um vasto conjunto de forças contra-revolucionárias, do ELP ao MRPP, passando pelas direitas parlamentares e pela social-democracia. Com essa bandeira, puderam também romper a precária unidade do MFA, promover a criação do Grupo dos Nove e conquistar a hegemonia dentro do Conselho da Revolução. Os partidos e militares “moderados” chegaram às vésperas do 25 de novembro aliados a forças da contra-revolução mais extrema e armados de uma determinação inflexível. A invocação táctica da legitimidade eleitoral não os fazia perderem de vista o objectivo de uma contra-revolução inadiável. Sob a luva de veludo da Constituinte, escondia-se o punho de ferro da guerra civil que, em caso de necessidade, já estava preparada e encomendada.

4. Em todo o caso, instruído pelos fracassos de Spínola, o bloco novembrista absteve-se de alguma nova aventura golpista e apurou-se principalmente na arte da provocação. Aquilo que a esquerda sempre soubera, e que sempre a arredara com naturalidade de tomar alguma iniciativa militar (exceptuado o próprio 25 de Abril, que não foi a bem dizer uma iniciativa só da esquerda), tornara-se agora matéria de consenso: “O primeiro a saltar, perde”. Se a esquerda, remetida à defensiva desde a derrota eleitoral de abril de 1975, compreendia melhor do que nunca essa verdade de sempre, a direita tinha urgência em fazer culminar a sua ofensiva num desenlace final, guardando-se embora de alguma nova precipitação que lhe comprometesse a dinâmica de vitória. 

5. Durante o verão e outono de 1975, a direita política e militar conspirou, portanto, mas não saltou. Agitou na praça pública, encheu a Alameda, assaltou sedes de partidos e sindicatos, manobrou nas secretarias e preparou febrilmente a guerra civil. Em vésperas do 25 de novembro, foi ao ponto de cortar o país a meio, em Rio Maior, de iniciar a transferência da capital, deslocando para o Porto grande parte dos seus quadros políticos – ministros que fariam funcionar o Governo e deputados que reuniriam como Constituinte. Mário Soares viria mesmo a admitir mais tarde que preparavam no Porto a marcha sobre a “Comuna de Lisboa”. Mas a estratégia continuava a consistir em provocar a esquerda para alguma acção exasperada que pudessem rotular como “golpe”.

6. A grande provocação para fazer saltar as unidades da esquerda militar e do COPCON era a substituição de Otelo por Vasco Lourenço à frente da Região Militar de Lisboa. E, com efeito, essa provocação acertou na mouche e causou enorme agitação nas unidades de Lisboa. Mesmo assim, o frenesí assembleário e deliberativo desencadeado pela jogada do Conselho da Revolução tardava em ocasionar qualquer iniciativa militar. A direita parecia ver frustradas as suas expectativas de fazer saltar as unidades mais identificadas com a esquerda, e tudo teria ficado por aí se uma outra provocação, menos planeada, não tivesse vindo juntar-se à primeira: a do chefe de Estado-Maior da da Força Aérea, general graduado Morais da Silva, ao determinar a dissolução do Regimento de Caçadores Páraquedistas, aparentemente sem prévia consulta ao restante CR. Embora as duas questões coincidissem no tempo, e Costa Martins tenha dito a certa altura que os páraquedistas também pretendiam impedir a destituição de Otelo, a verdade é que os páraquedistas saíram para se defenderem a si próprios contra a ordem de dissolução, surpreendendo tanto a direita como a esquerda.

6. A saída dos páraquedistas constitui portanto um equivalente das “Jornadas de Julho”, típicas dos processos revolucionários, quando até as cabeças mais disciplinadas e conservadoras, como era maioritariamente o caso dos páraquedistas, sofrem uma reviravolta e se passam para o lado da revolução que sempre tinham abominado. De repente, os páraquedistas, saturados por terem sofrido repetidas manipulações como tropa de choque da contra-revolução, ultrapassaram as unidades mais amadurecidas politicamente e ignoraram os cálculos tácticos que impediam a esquerda de cair na armadilha do CR. Lançaram então uma operação que exigia a demissão da cúpula da Força Aérea e que não tinha na manga qualquer governo-sombra ou algum outro requisito obrigatório dos golpes de Estado. Mas o contexto político tornava inevitável que o sentido dessa acção limitada fosse imediatamente desvirtuado pela direita, tão impaciente por um golpe da esquerda, que tardava, e tão disposta pegar em qualquer pretexto para fabricar a aparência desse golpe.

7. A ausência de uma direcção revolucionária traduziu-se, num primeiro momento, na incapacidade da esquerda militar e política para refrear a justificada impaciência dos páraquedistas e para impedi-los de caírem na provocação do CEMFA. O PCP não tinha posições tais na cadeia de comando que pudesse determinar ou impedir a saída dos páraquedistas, mas tinha suficiente influência a todos os níveis da tropa para alertar contra os perigos da aventura e para ser ouvido. Não o fez inicialmente, tendo, pelo contrário, emitido sinais ambíguos que cada um interpretaria como entendesse e que certamente encorajavam os mais afoitos a pegarem em armas para a luta final. 

8. Quem podia dar aos páraquedistas ordens num ou noutro sentido era o COPCON. É certo que na situação existente, os páraquedistas se decidiam pela saída e pediam o aval do COPCON para uma decisão já tomada. Mas Otelo deu a entender a sua concordância aos oficiais que lhe eram mais próximos e essa luz verde foi sendo transmitida por todos os escalões da cadeia, de modo que os páraquedistas ocuparam as bases da Força Aérea, eventualmente acreditando cumprirem uma ordem do COPCON e, no mínimo, com a convicção de poderem contar com o seu aval.

9. Apesar de todos os condicionamentos desfavoráveis que deviam ter levado o PCP e o COPCON a contrariarem o impulso de revolta dos páraquedistas, a verdade é que quase todas as bases importantes da Força Aérea foram ocupadas sem dar um tiro, numa operação tecnicamente perfeita, e o efeito de surpresa começou por desequilibrar a relação de forças a favor da esquerda. Com uma forte presença dos trabalhadores nas ruas, com uma clara superioridade militar da revolução na grande Lisboa e com o CR em Belém, à mercê de algum golpe de mão que o vizinho RPM se lembrasse de empreender, não admira que Costa Gomes tenha começado por enviar aos páraquedistas uma proposta satisfazendo praticamente todas as reivindicações da força rebelde. Fosse essa proposta um recuo autêntico ou mera astúcia de guerra para ganhar tempo até à declaração do estado de emergência, o certo é que ela reflectia o pânico que, por um instante, se apossou até de contra-revolucionários com a cabeça bastante fria para terem permanecido em Lisboa.

10. Nesse momento, jogava-se o tudo ou nada da revolução e era demasiado tarde para recuar. Mas, à esquerda militar e política, a quem faltara a presença de espírito para refrear o primeiro impulso da rebelião, faltava-lhe agora a audácia para explorar o sucesso inicial e para lutar por uma vitória que os imponderáveis da luta inesperadamente colocavam ao seu alcance. Otelo desapareceu durante a noite e a manhã do dia 25 e quando reapareceu foi entregar-se em Belém. O PCP negociou por intermédio de Melo Antunes garantias para a sua subsistência como partido legal, apelando, em troca, à desmobilização dos trabalhadores e reforçando as pressões para que os fuzileiros não interviessem.

11. Faltou portanto essa difícil combinação entre a paciência de resistir às provocações e a audácia de explorar um sucesso inicial inesperado. Mas houve pelo menos dois casos de dirigentes da esquerda militar que advertiram contra uma saída extemporânea dos páraquedistas e depois, perante o facto consumado, se colocaram incondicionalmente ao lado das tropas rebeldes, tudo fazendo para procurar garantir o seu triunfo: Varela Gomes e Diniz de Almeida. O primeiro, contactado por uma delegação de páraquedistas, desaconselhou-lhes com veemência a ocupação das bases; mas depois, perante o inexorável desenrolar dos acontecimentos, colocou-se ao lado da rebelião, procurando organizar no COPCON uma resposta das unidades revolucionárias. O segundo, tendo assistido à luz verde dada por Otelo para a saída dos páraquedistas, advertiu o comandante do COPCON sobre o caminho sem retorno por onde estava a enveredar, e recolheu à sua unidade, tentando fazer dela o pólo aglutinador das outras forças dispostas a resistir.

12. Como já em tempos sublinhámos nas páginas da revista Versus, o facto de ter havido quem procedesse acertadamente, como foi o caso destes dois militares revolucionários, não era, só por si, nem foi, uma garantia de sucesso, mas iria permitir pelo menos que se extraísse do 25 de novembro uma conclusão de importância decisiva: não faltaram boas ideias sobre o que haveria a fazer, faltou, sim, uma direcção revolucionária que as pusesse em prática. E, por muito que Varela Gomes, Diniz de Almeida e certamente outros se tenham esforçado, não poderiam nunca improvisar em poucas horas uma direcção revolucionária, que precisava de ter sido construída pelo menos nos meses anteriores, como expressão dos órgãos de poder popular. Só essa direcção poderia, até à véspera do 25 de novembro, fazer-se ouvir por uma vanguarda demasiado impaciente ou, não o conseguindo, só ela poderia criar uma cadeia de comando alternativa. Nenhum revolucionário agindo individualmente, pese embora ao heroísmo da sua acção, poderia colmatar com êxito a falta de uma direcção colectiva forjada no calor das lutas de massas.


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